Idade Média: Idade Média: o que não nos ensinaram

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 240/1979)

por Régine Pernoud

Em síntese: O livro de Régine Pernoud em foco sugere ao leitor uma revisão do conceito pejorativo de Idade Média que comumente é propalado. Tal noção se deve, em parte, a preconceitos de pensadores dos séculos XVI e seguintes, os quais, movidos por premissas anticató­licas e anticristãs, tinham interesse em denegrir a Idade Média. Esta não foi perfeita (pois nada do que é humano é isento de falhas); todavia não foi bárbara nem obscurantista, como freqüentemente se diz, mas teve gestos e valores que suscitariam rubor no homem moderno. Assim, por exemplo, a escravatura romana extinguiu-se no começo da Idade Média para ceder ao regime do servo da gleba (que respeitava os direitos do pequeno camponês); todavia foi restaurada no século XVI nas terras da América, onde vigorou o colonialismo. Régine Pernoud julga que o cultivo do Direito Romano (que teve início no século XI em Bolonha) contribuiu poderosamente para, aos poucos, desfazer as instituições e os costumes da Idade Média Ascendente; o Direito Romano finalmente fundamentou o menosprezo da mulher e outros males que tomaram pleno vulto a partir do século XVI.

O presente artigo tenta reproduzir a tese da autora e ilustra-a me­diante exemplos e dados colhidos no livro em pauta.

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Comentário: Régine Pernoud é especialista em estudos me­dievais. Sua primeira obra, “Lumière du Moyen-Age”, publicada em 1945, mereceu-lhe o prêmio Fémina-Vacaresco de Crítica e História. Em 1978, a autora editou “Pour en finir avec le Moyen-Age”, obra que lhe valeu o prêmio Sola-Cabiati da cidade de Paris e a consagração da crítica como sendo uma das mais notáveis conhecedoras da Idade Média. Tal obra foi traduzida para o português com o título “A Idade Média: o que não nos ensinaram”. Visto que convida o estudioso a rever as concep­ções comuns relativas à Idade Média, vamos, a seguir, propor as linhas mais características desse estudo, acompanhadas de con­clusão final.

1. Idade Média: preconceitos e lendas

A autora, no capítulo I, lembra o conceito que geralmente se tem até nossos dias com relação à Idade Média.

Esta equivaleria a mil anos de obscurantismo: … obscuran­tismo intelectual, moral, cultural…

A grande maioria das pessoas que falam sobre a Idade Média, nunca a estudaram devidamente. Mas apenas a conhe­cem por “fama”, fama esta que não corresponde aos resultados das pesquisas historiográficas dos últimos cento e cinqüenta anos.

Para ilustrar este fato, a autora cita alguns episódios:

Certa vez Régine Pernoud recebeu telefonema de uma do­cumentarista da TV, das mais especializadas em programas his­tóricos.

“Parece-me, disse-me ela, que a senhora tem dispositivos. Terá, por acaso, alguns que representem a Idade Média?

– ???

– Sim, que deêm uma idéia da Idade Média em geral: execuções, massacres, cenas de violência, fome, epidemias… Não pude deixar de rir” (p. 105s).

Conta ainda R. Pernoud:

“Era encarregada do Museu da França nos Arquivos Nacionais, há pouco tempo, quando chegou uma carta perguntando: ‘Poderia informar-­me a data do tratado que marca oficialmente o fim da Idade Média? ‘Havia ainda uma pergunta complementar: ‘Em que cidade se reuniram os diplomatas que prepararam esse tratado?’

…O autor pedia uma resposta rápida, pois, dizia ele, precisaria desses dois dados para uma conferência que pretendia fazer em data muito próxima” (p. 9).

Em suma, é freqüente ouvirem-se observações como “Não estamos mais na Idade Média” ou “É um retorno à Idade Média” ou “É uma mentalidade medieval”.

Aliás, a própria designação “Idade Média” implica um juízo pejorativo sobre os mil anos em pauta. Significa, sim, que entre a antigüidade greco-romana e o Renascimento da mesma no século XVI tenha havido um período neutro, sem cultura nem valores, mas torpe ou bárbaro. Note-se, aliás, que a divisão da história em três grandes períodos (Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna) foi proposta, pela primeira vez, pelos humanistas dos séculos XV/XVI; só no século XVII foi introduzida em livros didáticos de História

Universal’. Não há dúvida, os humanistas renascentistas ten­cionavam caracterizar a Idade Média como fase de escuridão e estagnação cultural.

Em nossos dias, porém, há estudos que dissipam tal ima­gem da Idade Média. O fato, pois, de continuarem em voga as concepções pejorativas sobre tal período deve-se a certa roti­na, que não se justifica. É o que Régine Pernoud observa:

“Há pouco tempo, um programa de televisão apresentava como histórica a frase famosa: ‘Matai-os todos, Deus reconhecerá os seus!’ durante o massacre de Béxiers em 1209. Ora, há mais de cem anos (exata­mente em 1866), em erudito demonstrou, acima de qualquer dúvida, que a frase não poderia ter sido pronunciada, já que não a encontramos em nenhuma das fontes históricas da época, mas apenas no Livro dos Milagres, Dialogus Miraculorum, um, cujo título fala por si mesmo sobre o que pretende dizer, composto aproximadamente sessenta anos depois dos fatos pelo monge alemão Cesário de Heisterbach, autor provido de imaginação arden­te e bastante suspeito quanto à autenticidade histórica. Desde 1866, nenhum historiador… levou em conta o famoso ‘Matai-os todos’; mas os escritores de história o utilizaram ainda. Isto basta para provar quanto as descobertas científicas, neste caso, custam a penetrar no domínio públi­co” (p. 16).

Dos subseqüentes capítulos do livro, escolheremos quatro, em que a autora aborda temas de especial interesse para o leitor.

2. A Idade Média e a mulher

Tal tema é considerado no capítulo VI sob o título “A mulher sem alma”.

Régine Pernoud costuma distinguir no período medieval duas fases divididas entre si pelo ressurgimento do Direito Romano. Este começou a ser cultivado em Bolonha, onde o célebre legista Irinério fundou célebre escola de Direito Ro­mano (1084). A influência do Direito Romano assim reavivado só aos poucos se fez sentir sobre a vida medieval. A aplicação de seus princípios à realidade civil e religiosa dos séculos XII e XIV modificou um tanto os costumes das épocas anteriores. Todavia somente na segunda metade do século XV o Direito Romano foi amplamente adotado pelos juristas – o que teve ulteriores conseqüências no modo de pensar e agir da sociedade em relação à mulher e a outros valores da sociedade.

“O Direito Romano… foi a grande tentação do período medieval; ele foi estudado com entusiasmo não só pela burguesia das cidades, mas também por todos os que viam nele um instrumento de centralização e de autoridade. Ele se ressente, com efeito, das suas origens imperialis­tas e – por que não dizer? – colonialistas. Ele é o Direito, por excelên­cia, dos que querem firmar uma autoridade central estatizada… Em mea­dos do século XII, o Imperador Frederico II, cujas tendências eram as de um monarca, fez deste tipo de Direito a lei comum dos países germâ­nicos” (p. 79s).

Feita esta observação, registramos com R. Pernoud o papel eminente que certas mulheres desempenharam na Idade Média:

2.1. Famílias reais

Na fase anterior à do Direito Romano (fase que a autora chama “tempos feudais”) a rainha era coroada, como o rei, geralmente em Reims, pelas mãos do arcebispo de Reims; atribuia-se à coroação da rainha tanto valor quanto à do rei (cf. p. 78).

A medida que o Direito Romano foi ascendendo, a coroa­ção das rainhas foi sendo considerada menos importante que a dos reis. A última rainha a ser coroada foi Maria de Médicis na véspera do assassinato do seu marido Henrique IV. No século XVII a rainha desaparece literalmente da cena em proveito da “favorita”!

Em sua época, Eleonora de Aquitania (+ 1204) e Branca de Castela (+ 1252) exerceram autoridade sem contestação nos ca­sos de ausência do rei, doente ou morto; tiveram suas chancela­rias, suas alfândegas e seus setores de atividade pessoal.

A primeira disposição que afastava a mulher da sucessão ao trono foi tomada por Filipe IV, o Belo (1285 – 1314), sob a influência de juristas romanos. Na verdade, o Direito Romano não era favorável à mulher nem à criança; era um Direito mo­nárquico, que exaltava o paterfamilias, pai, proprietário, chefe da família com poderes sagrados, sem limites no tocante aos filhos (tinha sobre estes direito de vida e de morte) e à esposa.

Note-se ainda a propósito que somente a partir de fins do século XVII a mulher toma obrigatoriamente o nome do ma­rido.

2.2. A Igreja e a mulher

É habitual dizer-se que a Igreja foi misógina ou hostil à mulher até época recente. A mulher terá sido considerada uma criatura sem alma! …

Ora R. Pernoud observa que, entre os mais antigos santos, se encontram as mártires Inês, Cecília, Águeda, Luzia, Blan­dina… Mais: Algumas mulheres (não necessariamente oriundas de famílias nobres) desempenharam notáveis funções na Igreja medieval. Assim certas abadessas eram senhoras feudais, cujos poderes eram respeitados como os de outros senhores; usavam báculo, como os bispos; não raro, administravam vastos terri­tórios com cidades e paróquias. Tenha-se em vista, por exemplo, a abadessa Heloísa, do Mosteiro do Paráclito, no século XII: além de exercer amplas funções administrativas, conhecia o grego e o hebraico, que ela ensinava às monjas.

Outro caso merece especial registro: o pregador de peni­tência Roberto de Arbrissel (+ 1117) conseguiu levar tanta gente à conversão que houve por bem fundar a Ordem de Fontevrault em 1100/1101, com base na Regra de S. Bento. Esta Ordem distinguiu-se pela penitência severa e pelos “mos­teiros duplos”: entre um cenóbio de homens e outro de mu­lheres achava-se a igreja, único lugar em que monges e monjas se podiam encontrar. Ora a direção suprema desses mosteiros duplos competia, em honra da Santa Mãe de Deus, à abadessa de Fontevrault: esta devia ser viúva, tendo feito a experiência do casamento!

Sabe-se também que havia na Idade Média Religiosas muito instruídas. Assim, por exemplo, a mais conhecida enci­clopédia do século XII é da autoria da abadessa Herrade de Landsberg; tem por título Hortus deliciarum (jardim de delí­cias) e nela os eruditos hauriam os ensinamentos mais corretos sobre o avanço das técnicas em sua época. Poder-se-ia dizer o mesmo com respeito às obras de Santa Hildegardis de Bingen. Outra monja, Gertrudes de Helfta, no século XIII, conta-nos como se sentiu feliz ao passar do estado de “gramaticista” ao de “teóloga”! Pode-se mesmo dizer que entrar para o mostei­ro era o caminho normal das jovens que desejassem desenvol­ver seus conhecimentos além do nível comum.

De resto, observe-se que a Idade Média se encerra com a figura de Joana d’Arc (+ 1431), jovem que, nos séculos seguin­tes, jamais teria conseguido obter a audiência e suscitar a con­fiança que lhe foram outorgadas no século XV.

No fim da Idade Média e depois, os legisladores foram retirando à mulher tudo o que lhe conferia alguma autonomia ou instrução. A mulher foi excluída da vida eclesiástica e da vi­da intelectual. O movimento se precipitou quando no começo do século XVI foi reconhecido ao rei Francisco I da França (1515 – 1547) o direito de nomear abades e abadessas; inspi­radas por critérios políticos, tais nomeações acarretaram a decadência de muitas casas religiosas.

2.3. Mães de família e camponesas

Através do documentário existente (cartulários, estatutos das cidades, documentos judiciários…), podem-se colher porme­nores relativos à vida cotidiana da mulher medieval. E surpreen­dente o quadro que se delineia a partir da concatenação desses dados.

Assim, por exemplo, as mulheres votavam. Por ocasião dos Estados Gerais de 1308 as mulheres são explicitamente cita­das entre as votantes em diversas partes do território francês, sem que isto venha apresentado como uso particular do lugar. É conhecido o caso de Gaillardine de Fréchou, que, diante de um arrendamento proposto aos habitantes de Cauterets nos Pireneus pela abadia de Saint-Savin, foi a única a votar NÃO, quando todo o resto da população votou SIM.

Nas atas de tabeliães é muito freqüente ver uma mulher casada agir por si mesma: abre, por exemplo, uma loja ou uma venda, sem ser obrigada a apresentar autorização do marido. Os registros de impostos, desde que foram conservados (como em Paris, a partir de fins do século XIII), mostram multidão de mulheres a exercer as funções de professora, médica, boticá­ria, estucadora, tintureira, copista, miniaturista, encadernadora, etc.

Somente no fim do século XVI, por decreto do Parlamento francês datado de 1593, a mulher foi explicitamente afastada de toda função do Estado. A influência crescente do Direito Roma­no finalmente confinou a mulher às suas tarefas peculiares de cuidar da casa e educar os filhos. No século XIX, mediante o Código de Napoleão, o processo de despojamento da mulher deu novo passo: deixou de ser reconhecida como senhora dos seus próprios bens, e, em casa mesmo, passou a exercer papel subalterno.

A reação a tal estado de coisas tem ocorrido nos últimos tempos, … mas de maneira decepcionante, pois a mulher parece preocupada exclusivamente na conquista de equiparação ao ho­mem: quer imitar o homem, exercer as mesmas funções que es­te, adotar os hábitos do seu parceiro, sem se questionar a respei­to do que ela reproduz, ou sem pensar em salvar a sua própria identidade e originalidade! Ora isto prejudica não só a mulher, mas também a própria sociedade, pois esta precisa de valores peculiares da mulher e da feminilidade!

Passemos a outro capítulo do livro em foco.

3. O servo da gleba

Tal tema é abordado no capítulo V, que traz o título “Rãs e Homens”.

Fala-se da escravidão vigente na Idade Média, sem levar em conta que a escravidão existente no Império Romano foi desa­parecendo a partir do século IV; cedeu a um regime diverso do da escravidão antiga. Infelizmente, foi restaurada no século XVI, nas colônias da América.

A instituição medieval do servo da gleba não pode ser com­parada à escravatura dos tempos romanos e coloniais, pois ela respeitava o servo (servus)[2] como pessoa, reconhecendo-lhe direitos. A origem de tal regime é a seguinte:

Na época das invasões bárbaras, muitos pequenos campo­neses viam-se constantemente ameaçados em suas terras. Daí o contrato que faziam com grandes senhores aptos a defendê-los mediante tropas e armas. Os camponeses se obrigavam a morar na propriedade do senhor e a cultivá-la. Era-lhes proibido deixar a terra, como também era vetado ao senhor expulsá-los. Assim os pequenos lavradores usufruíam de certa segurança, num pe­ríodo de instabilidade; eram-lhes reconhecidos os direitos de se casar e fundar família, de transmitir a terra a seus filhos depois da morte, assim como os bens que pudessem adquirir… O senhor feudal tinha conseqüentemente suas obrigações para com o servo; não era proprietário no sentido do Direito Roma­no, que reconhecia aos senhores o direito de usar e abusar (ius utendi et abutendi). Donde se vê que o regime medieval diferia essencialmente da escravatura, que feria a dignidade da pessoa humana, pois o escravo era tratado como coisa, sujeita a ser comprada e vendida a critério do patrão.

O estudo dos cartulários e arquivos medievais empreendido por Jacques Broussard [3] permitiu reconstruir a história de al­guns servos da gleba, entre os quais Constant Le Roux, que passamos a apresentar:

Constant era servo do senhor de Chantoceaux (Anjou) nos últimos anos do século XI. Trabalhava com afinco. As Reli­giosas do mosteiro de Ronceray lhe confiaram a guarda de um celeiro perto da igreja de Saint-Evroult e de vinhedos no lugar chamado Doutre. Depois a condessa de Anjou o presenteou com outro celeiro, perto das muralhas de Angers. As monjas de Rocenray, tendo recebido como legado uma casa, forno e vinhedos situados perto do celeiro de Constant, resolveram en­carregá-lo do conjunto, a título de renda vitalícia; pouco depois, aumentaram-lhe o lote, juntando-lhe as terras do Espan. – Constant casou-se; cansado de ser trabalhador meeiro, acabou por fazer um acordo com as Religiosas, segundo o qual as terras lhe seriam arrendadas. Aumentou ainda seu campo de trabalho, estendendo-o a um vinhedo em Beaumont e duas jeiras de prado na Roche-de-Chanzé. Mais tarde, não tendo filhos, conseguiu das monjas que suas terras fossem herdadas por seu sobrinho Gauthier, ao passo que sua sobrinha Isolda se casaria com o guardador do celeiro da Abadia, Rohot. Por fim, como aconte­cia não raro na época, Constant se fez monge na Abadia de Saint-Aubin e sua mulher entrou como religiosa na de Roncerav.

A pesquisa dos cartulários revela que o caso de Constant não foi isolado nem singular. Existe, por exemplo, uma certidão do fim do século XI (1089 – 1095) que refere como dois servos, chamados Auberede e Romelde, compraram sua liberdade em troca de uma casa que possuíam em Beauvrais, no lugar do mer­cado. Este fato dá a ver que os servos tinham a possibilidade de possuir bens próprios.

Compreende-se, porém, que a condição de servo da gleba, vantajosa na época de sua origem, se tenha defasado com o decorrer dos séculos. O camponês podia considerar válido o fato de viver em propriedade da qual não o poderiam expulsar; mas, desde que encontrasse meios de garantir sua própria subsistência com autonomia, preteriria a plena liberdade; esta lhe permitiria percorrer estradas e fazer comércio. Foi o que aconteceu princi­palmente na época da expansão urbana (século XI). Os cartu­lários apresentam numerosas certidões de libertação, que chega­vam a beneficiar centenas de servos de uma só vez.

A propósito observa H. Pernoud:

“Tive ocasião de recolher as confidencias de um velho operário agrícola a quem a idade não permitia mais trabalhar e que ia acabar seus dias num asilo: ‘Trabalhei esta terra toda a minha vida sem ter um metro quadrado de meu’. Comparando-o ao servo medieval, sua sorte pareceria infinitamente pior. Servo do senhor, em uma propriedade ele teria assegu­rado o direito de aí terminar a sua vida; nada lhe pertencia propriamente, mas o usufruto não lhe podia ser retirado… Ele tinha com a terra a mesma relação que o próprio senhor: este nunca possuía a propriedade plena, como nós a entendemos atualmente… ; ele não pode vender ou alienar senão os bens secundários que recebeu por herança pessoal, mas sobre o bem de raiz só tem usufruto” (p. 71s).

FOI NO SÉCULO XVI QUE INFELIZMENTE SE RESTAUROU O REGIME DA ESCRAVATURA ROMANA, QUE A IDADE MÉDIA NÃO CONHECEU, E QUE OERSISTIU ATÉ O SÉCULO PASSADO APESAR DOS PROTESTOS DE FRADES DOMINICANOS COMO BARTOLOMEU DE LAS CASAS E VITÓRIA…

Vê-se, pois, que, sob o aspecto focalizado, a Idade Média está longe de ter sido obscurantista…

Vem agora a questão de

4. Heresias e Inquisição Medieval
(“O Index Acusador”, c. VII )

O tribunal da Inquisição vem a ser outro motivo de acusa­ção aos medievais.

Régine Pernoud, sem deixar de reconhecer fraquezas hu­manas então verificadas, põe em foco alguns pontos importantes para se avaliar o fato da Inquisição.

Os medievais estimavam acima de tudo (ao menos em teo­ria) os valores da fé, colocando-os mesmo acima dos valores fí­sicos. Além disto, conjugavam entre si os valores profanos e os sagrados, de tal modo que os desvios doutrinários ganhavam extrema importância mesmo no andamento da vida civil. Por conseguinte, as heresias, na Idade Média, eram considera­das como ofensas não só à reta fé, mas também aos interesses da sociedade em geral.

Ora no século XI começou a aparecer no sul da França e no norte da Itália uma heresia dita dos cátaros (= puros), que professava o dualismo: o universo material seria obra de um Deus mau; somente os espíritos teriam sido criados por um Deus bom. Em conseqüência, condenavam tudo que se relaciona com a procriação, a começar pela casamento; os mais autênticos dos cátaros viam no suicídio a perfeição suprema.

Os primeiros a combater a heresia cátara foram os prín­cipes, os nobres e o próprio povo fiel. Assim em 1022 o Rei Roberto, o Piedoso, mandou queimar em Orléans hereges. Em 1077 um herege professou seus erros diante do bispo de Cambraia; a multidão de populares então lançou-se sobre ele, sem esperar o julgamento; encerraram-no numa cabana, à qual atearam fogo! Em 1144 na cidade de Lião o povo quis punir violentamente um grupo de inovadores que aí se reunira; o cle­ro, porém, os salvou, desejando a sua conversão, e não a sua morte. Entrementes as autoridades eclesiásticas limitavam-se a impor penas espirituais (excomunhão, interdito…) aos cátaros, pois até então nenhuma das muitas heresias conhecidas havia sido combatida por violência física. S. Bernardo (+ 1153) dizia: “Sejam os hereges conquistados não pelas armas, mas pelos argumentos” (In Cant. serm. 64).

Era, porém, inevitável que os bispos tomassem parte na represália aos cátaros. Por isto em 1184 o Papa Lúcio III, em Verona, instituiu a Inquisição episcopal, que atribuía aos bispos a faculdade de inquirir os hereges nas paróquias suspeitas; ajudá-los-iam nessa tarefa os condes, barões e as demais autori­dades civis. Em 1231 tal instituição se tornou mais ampla, pois o Papa Gregório IX confiou aos frades dominicanos a mis­são de Inquisidores; haveria doravante, para cada nação ou distrito inquisitorial, um Inquisidor-mor, que trabalharia com a assistência de numerosos oficiais subalternos, em geral indepen­dentemente do bispo em cuja diocese estivesse instalado.

Os efeitos da Inquisição têm sido descritos em termos imaginativos e exagerados… Na verdade, as penas aplicadas eram a de prisão ou, com mais freqüência ainda, a condenação a peregrinações ou ao uso de uma cruz de fazenda pregada à roupa. Nos lugares onde se encontraram registros da Inquisição, verificou-se que não foram tão numerosas as execuções capitais como se poderia crer. Em Tolosa, por exemplo, de 1308 a 1323 o Inquisidor Bernardo de Gui proferiu 930 sentenças, das quais 42 eram capitais – o que equivale à proporção de 1/22.

Régine Pernoud observa muito sabiamente que a Inquisi­ção foi alimentada pela ingerência do poder civil em questões religiosas. Sem querer desculpar os clérigos que se hajam exce­dido na repressão da heresia, deve-se registrar a forte influência do poder régio na conduta severa dos tribunais da Inquisição.

“Era, talvez, inevitável que em qualquer momento fossem insti­tuídos tribunais regulares, mas esses tribunais foram marcados por uma dureza particular, em razão do renascimento do Direito Romano: as constituições de Justiniano, realmente, mandavam condenar os hereges à morte. E é para fazê-lo reviver que Frederico II, tornado imperador da Alemanha, promulga, em 1224, novas constituições imperiais, que, pela primeira vez, estipulam, expressamente, a pena da fogueira contra hereges empedernidos. Assim se vê que a Inquisição, no que ela tem de mais é fruto de disposições tomadas, de início, por um imperador em quem se pode encontrar o protótipo do “monarca esclarecido”, apesar de ter sido, ele próprio, um cético e logo excomungado.

Resta notar que, adotando a pena de fogo e instituindo como pro­cedimento legal o recurso ao “braço secular” para os relapsos, o Papa acentuava ainda o efeito da legislação imperial e reconhecia, oficialmente, os direitos do poder temporal na perseguição às heresias. Sempre sob a influência da Legislação imperial, a tortura seria autorizada, oficialmente, no começo do século XIII – desde que houvesse o aparecimento de provas” (p. 102).

Ora as concessões feitas pelos Papas aos reis voltaram-se contra a própria Igreja. Com efeito, nota R. Pernoud:

“Ora, todo este aparelhamento de legislação contra a heresia não demoraria em ser dirigido pelo próprio poder temporal contra o poder espiritual do Papa. Sob Filipe, o Belo, as acusações contra Bonifácio VIII, contra Bernard Saisset, contra os Templários, contra Guichard de Troyes apóiam-se neste poder reconhecido no rei para perseguir os hereges. Mais do que nunca, a confusão entre espiritual e temporal joga a favor deste último. Só precisamos recordar aqui as conseqüências mais graves: a Inquisição do século XVI, a partir deste momento só nas mãos dos reis e imperadores, iria fazer um número de vítimas sem comparação com as do século XIII. Na Espanha, chegar-se-á à utilização da Inquisição contra os judeus ou mouros, o que equivalia a deturpar por completo seus objetivos” (p. 102).

Régine Pernoud tem razão ao mostrar que a Inquisição no foi um tribunal meramente eclesiástico. Na verdade, ela teve origem por convergência do poder eclesiástico com o poder civil na repressão das heresias; mas nesta aliança o poder régio foi, aos poucos, sobrepujando o eclesiástico, chegando a mani­pular a Inquisição para atingir objetivos políticos.

A autora encerra o capítulo lembrando um fato de sua experiência:

“Em 1970, uma transmissão de televisão foi consagrada à Cruz Vermelha internacional e a suas comissões de investigação nos campos de concentração. Seu representante foi interrogado por diversos interlocuto­res, entre eles um jornalista, que lhe propôs a seguinte pergunta: ‘Não po­demos obrigar os países a aceitarem a comissão de investigação da Cruz Vermelha?’

E, como o representante da instituição destacasse que as comis­sões de investigação não dispunham de nenhum meio para que suas obser­vações fossem registradas, observadas ou sancionadas, que antes essas próprias comissões não dispunham de nenhum direito de visita formalmen­te admitido ou reconhecido por todos, a mesma jornalista replicou: ‘Não se poderiam banir das nações civilizadas as que recusam as comissões de investigação?’

Escutando este diálogo, com referência à História, poder-se-ia dizer que, em sua indignação, por certo compreensível, esta jornalista acabava de inventar sucessivamente a Inquisição, a excomunhão e a in­terdição – porque ela as aplicava no domínio em que a concordância se faz unânime, o da proteção aos prisioneiros e internados políticos” (p. 107s).

Acrescenta, porém, R. Pernoud que não é necessário pro­curar comparações de tal tipo. Em nossos dias, observa a autora, aplica-se a Inquisição não aos delitos contra a fé, mas às dissi­dências em relação à opinião política predominante. “Todas as interdições, todos os castigos, todas as hecatombes parecem jus­tificadas em nossos tempos para punir ou prevenir os desvios e erros quanto à linha política adotada pelos poderes em exercício. E, na maior parte dos casos, não basta banir quem sucumbe à heresia política; importa convencer. Por isto ocorrem as lavagens cerebrais e os internamentos intermináveis que esgo­tam, no homem, a capacidade de resistência interior” (p. 108).

E conclui a autora:

“Quando se pensa no desperdício insensato de vidas humanas… pelo qual se consolidaram as revoluções sucessivas e o castigo dos deli­tos de opinião em nosso século XX, pode-se perguntar se… a noção de progresso não se encontra posta em xeque. Para o historiador do ano 3.000, onde estará o fanatismo? Onde a opressão do homem pelo homem? No século XIII ou no século XX?” (p. 108).

As ponderações de R. Pernoud merecem atenção… Se os medievais exorbitaram nas expressões do seu amor às verda­des da fé, os contemporâneos que os criticam, não têm menos motivos para se horrorizar do que em nossos dias vem sendo cometido em nome dos interesses políticos.

5. A arte medieval
(c. 11: “Deformados e Desajustados”)

O termo “Renascimento” (Rinascita, em italiano) foi uti­lizado, pela primeira vez, por Vasari em meados do século XVI. Significava que “as artes e as letras, que pareciam haver morrido no mesmo naufrágio que a sociedade romana, pareciam reflorescer e, depois de dez séculos de trevas, brilhar com novo fulgor” (Dictionnaire général des lettres, por Bachelet e Dezo­bry. Paris 1872).

Assim se manifestava um conceito pejorativo referente às artes e letras medievais. Estas nada mais teriam sido do que “deformações” e “falta de jeito”.

Ora tal juízo não leva em conta objetiva a realidade dos fatos. Com efeito,

– “o simples bom senso basta para fazer compreender que o Renascimento não teria sido possível se os textos antigos não houvessem sido conservados em manuscritos recopiados durante os séculos medievais” (p. 19) … “Para citar um exem­plo, a biblioteca do Monte Saint-Michel, no século XII, continha textos de Catão, o Timeu de Platão (em tradução latina), diver­sas obras de Aristóteles, de Cícero, trechos de Virgílio e de Horácio” (ib).

– As artes renascentistas reproduziam e imitavam os mo­delos antigos numa atitude muito pouco criativa. Os antigos pareciam ter realizado obras perfeitas, atingindo a Beleza integral.

– Eis, porém, que no setor da arte a admiração nunca de­ve levar a repetir formalmente o que se admira; a imitação nun­ca pode ser transformada em lei.

“A visão clássica que se impôs ao Ocidente, … não admitia outro esquema, outro critério que não fosse a antigüidade clássica. Mais uma vez, presumir-se-ia que a Beleza perfeita tinha sido atingida durante o sécu­lo de Péricles e que, por isso, quanto mais nos aproximássemos das obras daquela época, melhor atingiríamos a Perfeição” (p. 22).

Em contra-posição, observe-se que “o nome do poeta nos tempos feudais era trovador, o que encontra, encontrador, ou seja, inventor. O termo inventar adquire aqui sentido forte,… Inventar é pôr em jogo, ao mesmo tempo, a imaginação e a bus­ca, é o início de toda criação artística ou poética. Para as gera­ções de hoje, isto parece evidente. Resta saber que, durante qua­tro séculos, o postulado oposto é que se impunha com evidência semelhante” (p. 26).

A arte medieval, de modo geral, foi criativa. Basta lembrar as magníficas catedrais românicas e góticas que a caracteriza­vam… Mas é suficiente também apontar os manuscritos medie­vais: um simples mapa da época revela a capacidade de criação do artista (perfeição da escrita, distribuição de página, selo de autenticação…). Uma letra ornamentada (iluminura) mani­festa outrossim a criatividade do desenhista…

5. Conclusão

O livro de Régine Pernoud, embora tenha antecessores, vem em hora oportuna provocar uma revisão do conceito co­mumente propagado de Idade Média.

Esta é mal entendida, em parte porque a historiografia é o setor do estudo em que mais dificilmente os pesquisadores mantêm neutralidade científica. A partir do século XVI certas correntes de pensamento anticatólicas e anticristãs tiveram in­teresse em denegrir a Idade Média. Esta difamação nem sempre foi objetiva (embora não fosse de todo injustificada, pois tudo o que é humano, é falho), mas baseou-se freqüentemente em preconceitos. Seria para desejar, que os estudiosos contempo­râneos se livrassem destes e procurassem apontar outrossim tu­do que de grande, belo e nobre caracteriza a Idade Média.

Estêvão Bettencourt O. S. B.

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NOTAS:

[1] Cf. CRISTOPHORUS CELLARIUS, Historiae antiquae, mediae, novae nucleus. Senna 1675/6.

[2] Não poucos historiadores traduzem servus por escravo nos textos do século XII – o que revela e gera grave mal-entendido.

[3] La vie en Anjou du IX° au XIII° siècle, em Le Moyen èqe, t. LVI, 1950, pp. 29-68.