(Revista Pergunte e Responderemos, PR 374/1993)
Em síntese: Duas mulheres heróicas na Itália, Gianna Beretta Molle e Carla Levati Ardenghi, optaram por não se tratar de câncer a fim de não prejudicar a vida da criança que elas traziam em seu seio; ambas morreram vítimas de tal opção. A opinião pública tem criticado essas atitudes julgando estar aí subjacente um falso conceito de maternidade; a mulher seria simplesmente a reprodutora, que deveria sacrificar-se em qualquer hipótese, para gerar filhos. – Ora tal não é o modo de ver cristão: as duas mulheres poderiam ter licitamente escolhido o tratamento do câncer, ainda que este acarreta-se, como efeito secundário, a perda do feto. Não o quiseram, porém, por amor ao filho, amor que só pode dignificar a mulher, levando-a à imitação de Cristo, que morreu por todos. A maternidade humana está longe de ser uma função meramente biológica; ela participa da espiritualidade que existe em toda mulher, e, se esta é católica, participa da obra redentora de Cristo, como diz São Paulo em 1Tm 2,15. O testemunho de Gianna e Carla é um benéfico despertar de consciências neste mundo em que o amor gratuito e benévolo é cada vez mais raro, neste mundo em que a violência e a morte marcam profundamente o ritmo da sociedade.
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Nos últimos tempos tem estado em foco o caso de mães gestantes postas na iminência de se sacrificar para não perder o filho. Duas senhoras italianas aceitaram o sacrifício heróico, provocando os comentários desfavoráveis e favoráveis da opinião pública. Na Bosnia, o S. Padre dirigiu um apelo às gestantes estupradas para que não abortassem, o que também suscitou protestos da parte de jornalistas e outros profissionais.
Tencionamos abordar o assunto, detendo-nos especialmente na figuras de Gianna Beretta Molle e Carla Levati Ardenghi, heróicas personalidades, que foram injustamente criticadas precisamente por causa do seu heroísmo.
1. AS DUAS HEROÍNAS ITALIANAS
1.1. Gianna Beretta Molle
Médica pediatra, Gianna, aos 40 anos de idade em 1962, estava no início da gravidez de seu quarto filho, quando soube estar cancerosa; era-lhe indicada a extração do útero grávido como tratamento da moléstia. Recusou, porém, a cirurgia, que removeria o órgão doente, com a criança, e escreveu ao seu médico: “Se tiver de optar, não hesitarei. Exijo que a criança seja salva”.
A gestação foi levada adiante até o momento em que se pôde realizar a operação cesariana. O feto nasceu recebendo o nome de Gianna Emmanuela, que hoje é médica como a mãe. Acontece, porém, que, uma semana após o nascimento da filha, Gianna Beretta Molle veio a falecer não diretamente de câncer, mas de peritonite decorrente da intervenção cirúrgica necessária para o parto.
O S. Padre João Paulo II em 1992 beatificou Gianna Beretta Molle, reconhecendo assim a heroicidade das virtudes dessa mulher. O Postulador da Causa de Gianna observou que “o sacrifício consciente da mãe pelo filho que deve nascer, é apenas o gesto conclusivo de toda uma vida católica coerente, simples e generosa”. Com efeito; a façanha heróica da mãe no final da sua vida foi o coroamento de toda uma existência fiel e dedicada ao Senhor.
Não obstante, houve quem criticasse a atitude de Gianna e o gesto de João Paulo II, como se pode depreender do artigo “Apuros de Santo Novo” de VEJA, 06/01/1993.
1.2. Carla Levati
Muito mais recente é o caso de Carla Levati Ardenghi, casada com Valerio Ardenghi, natural de Albano Sant’Alessandro (Bergarno). Tinha um filho, Ricardo, hoje com dez anos de idade, quando, há três anos, foi vítima de melanoma ou tumor maligno de prognósticos sombrios. Foi imediatamente operada, de tal modo que se sentia bem, por isto julgou poder ter outro filho. Carla, de fato, concebeu, mas em dezembro de 1992 começou a sentir fortes dores na coluna, sintomas de que a metástese atacara a espinha dorsal. O tratamento proposto foi a quimioterapia; esta, porém, poria em grave risco a vida da criança. Por isto, de acordo com seu marido, Carla resolveu não aceitar tratamento algum, até que lhe nascesse o segundo filho. Aos 26 de janeiro de 1993 foi submetida a operação cesariana; mas faleceu oito horas depois do nascimento de Stefano, seu segundo filho. Tinha 28 anos de idade. Infelizmente a própria criança pouco sobreviveu à mãe, pois aos 4 de fevereiro de 1993 também faleceu.
Carla Levati era humilde senhora; teria podido tratar-se, mesmo com risco de vida para o filho. Com efeito, a Teologia Moral ensina que é lícito realizar uma ação que tenha duplo efeito – um bom, o outro mau – desde que
– o efeito bom não decorra do mau, mas seja diretamente atingido;
– o efeito mau não seja intencionado ou desejado, mas apenas tolerado, como conseqüência inevitável de uma ação que, como tal, não é má;
– o efeito bom compense, por sua importância, o efeito mau
– não haja outro recurso para obter o efeito bom.
Ora no caso de Carla Levati, como também no de Gianna Beretta Molle, o tratamento do câncer seria uma ação boa, visando à cura da paciente; o efeito mau seria a perda da criança, efeito não intencionado, mas apenas tolerado. A histerectomia ou a quimioterapia não seriam para matar a criança, mas para curar a mãe; seriam indicadas independentemente do fato de haver ou não uma gravidez em curso.
Carla e Gianna, porém, não quiseram atender a si mesmas, valendo-se licitamente dos recursos da medicina, para não fazer a criança correr o risco de perder a vida. Tal gesto é plenamente cristão, pois o Senhor Jesus no Evangelho ensina: “Não há maior amor do que o daquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15, 12s). Ao que São João acrescenta: “Nisto conhecemos o Amor; Ele deu a sua vida por nós; por isto devemos também nós dar a vida por nossos irmãos” (1Jo 3, 16). A atitude das duas mães que se sacrificaram, significaram a seqüela fiel de Jesus Cristo.
Além desta dimensão cristã, muito positiva, a conduta das duas senhoras tem profundo valor humano. Ambas quiseram viver a maternidade no seu sentido mais elevado de amor que dá a vida e se entrega para que haja vida. A maternidade é um processo de dar a vida que não pode deixar de ser doloroso; não há de ser exercida como uma função meramente racional ou cerebrina, mas, sim, como algo que procede da “inteligência do coração”; o coração tem suas razões que a razão ignora; não raro essas razões podem parecer paradoxais, mas na verdade inspiram-se em magnanimidade e generosidade que ultrapassam o frio cálculo da razão. A atitude das duas mulheres assinaladas vem a ser um referencial para todo ser humano que queira viver realmente o amor.
Embora os dois casos, heróicos como foram, mereçam a admiração da sociedade, tal não foi a reação de muitos setores da opinião pública. A seguir, referiremos alguns comentários de jornalistas da Itália relativos ao gesto de Carla Levati.
2. A IMPRENSA E CARLA LEVATI
No jornal II Messagero, de 29/01/93, A. Bevilacqua escreve:
“O heroísmo chega muitas vezes às raias do fanatismo… Devo declarar o meu pleno desacordo frente a tal episódio. Foi um sacrifício em favor da vida? Sim. Um ato heróico em prol de uma criatura que nascia? Sim. Todavia, a meu ver, embora seja desagradável, um egoísmo se manifestou, egoísmo de natureza materna, distorcido por uma deformação angustiada da esperança e por convicções religiosas exageradas até o fanatismo “.
Em La Repubblica, de 29/01/93, escreve Camilla Cederna:
“Eu me insurjo, sim, eu me insurjo profundamente contra a ‘moral’ que muitos querem deduzir dessa história… Mas quem pode dizer o que aquela pobre menina pensava?… Talvez julgasse que iria para o paraíso ou que a declarariam Santa. Sendo portadora de um tumor, devia resignar-se a abortar. Mas somos loucos? Ela colocou no mundo um filho órfão. Parece-me um sacrifício inútil, errôneo; morrer para deixar nascer um fetozinho que talvez não tenha condições de sobreviver. É coisa tão terrível como querer dar à luz com sessenta anos de idade. Nisto há ignorância, retardo cultural, um desejo de martírio que não posso entender”.
Mais dura ainda foi Dacia Maraini em entrevista ao mesmo jornal La Repubblica de 29/01/93:
“Não se fale de sublime sacrifício… A renúncia de Carla Levati reproduz a concepção arcaica segundo a qual a tarefa da mulher é a reprodução, mesmo às custas da vida própria. É inquietante observar como resiste fortemente essa perigosa mitologia, que remonta aos primórdios da civilização ocidental, grega e romana. A razão de ser e existir da mulher estaria na sua capacidade de garantir a prole, isto é, o futuro da humanidade. Evidentemente ainda há pessoas influenciáveis por feitiços desse gênero. Respeito as decisões individuais. Talvez Carla quisesse ter um filho a qualquer preço. Talvez levasse uma vida infeliz ou tivesse baixa consideração de si mesma. Não nos interessa explorar as motivações secretas que a levaram a rejeitar o tratamento e a pôr no mundo um filho órfão”.
A antropóloga Ida Magli também protestou no mesmo jornal e na mesma data:
“Quanto barulho, quanta exaltação! Mais uma vez a pressão social dita o significado dos acontecimentos. Mais uma vez tenta incutir no ânimo das mulheres a convicção de que o único valor para a mulher é a maternidade”.
A deputada Alessandra Mussolini, do Movimento Social Italiano confessou não querer julgar a opção de Carla Levati, mas acrescentou:
“Todavia creio que querer ter um filho a qualquer preço é ato de extremo egoísmo. A senhora de Bergamo, Carla Levati, já não tinha um filho? Agora acontece que teve outro, mas incapacitado de gozar dos cuidados maternos. A verdade é que deveríamos ter um pouco mais de normalidade ao passo que, segundo me parece, caminhamos para uma sociedade disposta a premiar sempre mais as exceções e as aberrações” (L’Unitá,29101193).
Em suma, verifica-se que os comentários tacharam o gesto de Carla Levati de “egoísmo” (A. Bevilacqua), “extremo egoísmo” (A. Mussolini), “sacrifício inútil, errôneo, fruto de ignorância e de retardo cultural” (C. Caderna), “compensação de quem levava vida infeliz e tinha baixa consideração de si mesma” (D. Maraini).
3. QUE DIZER?
3.1. Aberração: onde?
A aberração não está no gesto de Carla e de Gianna, mas, sim nos pareceres emitidos a respeito. Dir-se-ia que as pessoas que assim se exprimiram, são incapazes de compreender que o amor é querer bem ao outro – e não servir-se do outro -, querer bem a ponto de realizar grandes sacrifícios em favor do outro. Quem sustenta uma visão da vida centrada sobre seu próprio prazer e seus interesses, uma visão egoísta, não pode entender as atitudes altruístas de seus semelhantes. Seria para desejar, porém, que, mesmo que não entendam gestos de magnanimidade rara, os comentadores saibam guardar respeito e não os condenar como deformação psíquica.
Em compensação, podemos comunicar que, aos 30/01/93, vinte casais de diferentes países, reunidos em Roma para participar de uma reunião Plenária do Pontifício Conselho para a Família, escreveram uma carta ao marido de Carla Levati, em que diziam:
“O testemunho heróico de amor à vida prestado por Carla nos tocou no mais profundo do coração. É um exemplo luminoso para as famílias cristãs do mundo inteiro nestes tempos difíceis, nos quais são obscurecidos os valores da maternidade.
Julgamos que Carla representa um modelo, porque nela vemos uma mulher casada, como nós, que deu a vida por seu filho, e pedimos a Deus queira derramar a sua graça, mediante o testemunho de Carla, sobre todas as famílias do mundo”.
3.2. O conceito de maternidade
Os críticos do gesto de C. Levati quiseram basear sua censura num ridículo conceito de maternidade atribuído a essa senhora: Carla teria concebido a maternidade como mera função reprodutora a serviço da espécie humana, função de índole física apenas ou até animalesca, em nada distinta da maternidade no mundo animal. Tal seria uma concepção arcaica, mitológica, incompatível com o feminismo contemporâneo. Ida Magli afirma que a maternidade foi durante muitos séculos um trágico destino das mulheres: “Até o fim do século XIX as mulheres eram sempre obrigadas a morrer em lugar dos filhos, desde que houvesse que optar pela vida da mãe ou a da prole… Até a década de 1960 quem definia qual dos dois sobreviveria era o pai”. – Por conseguinte, a maternidade seria um trágico destino da mulher encarregada da função reprodutora.
A propósito devemos dizer que o Cristianismo sempre distinguiu a maternidade humana da maternidade meramente animal. O protótipo da Mãe para o cristão é a Santa Mãe de Deus, cuja função foi certamente colaborar na obra da Redenção; toda mãe cristã continua o papel de Maria a seu modo; ela gera filhos chamados à vida eterna, realizando no seu lar uma “igreja doméstica”; São Paulo chega a ver no exercício da maternidade o caminho de salvação da mulher: “A mulher será salva pela maternidade, desde que, com modéstia, permaneça na fé, no amor e na santidade” (lTm 2, 15).
Por certo, a maternidade não é única via de salvação da mulher; existe também a da virgindade consagrada a Deus. Como quer que seja, a vocação ao matrimônio está longe de condenar a mulher à função de reprodutora e de submetê-la, por isto, a trágico destino. Na verdade, a maternidade não é fato meramente carnal ou fisiológico, mas é também uma realidade espiritual; é amor que se exprime carnalmente e que eleva a carne a significar valores humanos muito superiores aos valores meramente animais. A maternidade, portanto, dignifica a mulher e não a reduz a mero instrumento destinado à reprodução da espécie.
Inegavelmente a grande dignidade de ser mãe, como qualquer outra dignidade, pode colocar a pessoa em situações difíceis e exigentes, com apelos ao sacrifício. Aceitar tais desafios com nobreza e coragem é a plena realização da mulher-mãe. Para que isto aconteça, a graça de Deus não falta à pessoa interessada, incutindo-lhe aquela concepção de amor que tem seu protótipo em Jesus Cristo.
Num mundo como o nosso, impregnado de interesses individualistas e egocêntricos, movido pelo anseio do prazer, especialmente no setor da sexualidade instintiva e cega (em muitos casos), ressoa de modo muito( significativo o sacrifício de Gianna e de Carla; o seu amor altruísta e puro fez algo que surpreendeu o mundo e pode despertar as consciências para o sentido do autêntico amor. Esse altruísmo ultrapassa os limite de um episódio de família para assumir a índole de uma “santa novidade’ para a sociedade contemporânea.
3.3. A morte de Stefano
O filhinho de Carla – Stefano – não sobreviveu senão poucos dias após a morte de sua mãe. Neste fato, particularmente, baseou-se a crítica de que o gesto de Carla foi tolo, inútil e desarrazoado.
Respondemos que a grandeza de uma atitude ética não pode ser avaliada simplesmente a partir do sucesso visível; mesmo que um sacrifício ditado pelo amor não atinja o objetivo colimado, tal sacrifício conserva seu pleno valor.
Nem se diga que o gesto de Carla foi inútil. Veio a ser um brado em favor da vida num mundo em que a violência e a morte têm dominado em várias regiões, instaurando a cultura da morte; sejam recordados os dolorosos episódios ocorridos na Bósnia (tragédia para a qual não se vê fim), as guerras fratricidas em países da África, as guerras e guerrilhas do Oriente Médio, os conflitos entre hinduístas e muçulmanos na Índia, a aprovação de uma lei em favor da eutanásia direta na Holanda (aos 10/02/9e), a política abortista do governo B. Clinton nos Estados Unidos… O gesto da modesta mulher Carla Levati, como também o de Gianna Beretta Molle, são sinais que podem e devem avivar a opinião pública para que tente promover outro tipo de comportamento social; matar por paixão e egoísmo não leva à felicidade, ao passo que a vivência do amor que pretente salvar o próximo será penhor de dias melhores.
Aos olhos dos incrédulos, a Cruz de Cristo será sempre loucura e escândalo como diz São Paulo (1Cor 1,18.23). Por conseguinte, não nos surpreende a incompreensão de muitos frente ao caso de Carla Levati e Gianna Beretta Molle. Mas continua o Apóstolo dizendo que o que é loucura aos olhos dos homens é sabedoria aos olhos de Deus (1Cor 1,25). Essa sabedoria de Deus é, não raro, revelada aos pequeninos e humildes, como foi Carla Levati, para que proporcionem aos sábios e poderosos a ocasião de repensar sobre o sentido da vida e da morte, do sofrimento e do amor.
Este artigo muito deve ao Editorial “Una testimonianza per la vita” de La Civiltà Cattolica, n° 3425, 06/03/1993, pp. 417-423.
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