(Revista Pergunte e Responderemos, PR 227/ 1978)
Em síntese: A imortalidade natural da alma humana se evidencia, no plano filosófico, a partir de três argumentos principais
– a alma humana, sendo espírito, é simples ou não composta; por conseguinte, não se decompõe ou não se dissolve por sua própria natureza. Deus, que a criou, poderia aniquilá-la, mas não o faz, pois isto contradiria à sabedoria e à justiça do Criador;
– a alma humana aspira naturalmente à vida, e à vida sem fim; ora tal desejo inato não pode ser frustrado, pois, se o fosse, a natureza seria absurda e suporia o absurdo em sua origem. Todavia não se pode crer que o ser humano seja o único absurdo em meio a um mundo cheio de ordem e harmonia naturais;
– a alma humana aspira naturalmente à justa sanção ou à retribuição devida ao bem e ao mal. Já que esta só ocorre precariamente na vida presente, deve haver outra vida na qual a justiça seja exercida. Em caso contrário, a história seria absurda, terminando com o espezinhamento (ao menos, parcial) do bem e da virtude e a exaltação (ao menos, parcial) do mal.
Verdade é que o composto humano (corpo e alma) aspira à vida imortal. Todavia o composto humano é, por sua natureza, perecível, de modo que o seu desejo de imortalidade é veleidade, incapaz de encontrar a sua resposta natural. A fé ensina que o Senhor Deus ressuscitará o ser humano depois da experiência da decomposição ou da morte, sendo Cristo o penhor e o exemplar da ressurreição de todos os homens.
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Comentário: Sabe-se que a morte não põe fim, por completo, à pessoa humana, pois os feitos desta continuam presentes aos pósteros; principalmente aquelas pessoas que contribuem mais eficazmente para a construção ou a destruição da humanidade, permanecem, de certo modo, atuando junto às gerações posteriores. É este o tipo de imortalidade que, por exemplo, o marxismo propõe ao ser humano a partir de suas premissas materialistas; a escola de Marx tenta reconfortar seus discípulos dizendo-lhes que a grandeza imortal do homem consiste em ser o carvão lançado na grande locomotiva da história da humanidade; destrua-se, contanto que faça avançar o comboio, em cuja marcha cada um se imortaliza.
Outras correntes de pensamento admitem a sobrevivência da alma humana; sustentam, porém, a tese de que esta perde a sua individualidade e se integra num grande todo que leva uma vida impessoal. É o que professa o hinduísmo em geral.
Há, porém, quem afirme que a alma humana é por si mesma imortal, de tal modo que, quando o corpo já não lhe oferece condições de exercer suas atividades psicossomáticas, a alma se separa do mesmo e subsiste em sua realidade individual e pessoal, exercendo os atos próprios da sua vida espiritual. É esta a tese clássica nas escolas de filosofia cristãs. Ultimamente, porém, alguns pensadores católicos, negando a distinção real de corpo e alma, asseveram que a morte extingue por completo o ser humano, mas Deus o ressuscita imediatamente após a morte!
Esta última tese não se sustenta desde que se admita, como se deve admitir, a distinção real de corpo e alma. No artigo anterior ficou comprovado que a alma humana é espiritual e o corpo material; a recusa desta afirmativa implica, ao menos implicitamente, profissão de materialismo.
Nas páginas subseqüentes, apresentaremos os argumentos em favor da imortalidade natural da alma humana, que é um ser distinto do respectivo corpo.
1. A natureza mesma da alma humana
A morte é a dissolução do ser vivo.
Um ser pode dissolver-se de duas maneiras: por si mesmo ou em razão de outrem. No primeiro caso, dissolve-se diretamente; no segundo caso, a dissolução ocorre em virtude da dependência em que tal ser se encontra em relação a outro que se dissolve.
Ora a alma humana não pode dissolver-se por si, porque não é composta de partes, mas é simples, como todo espírito é simples ou isento de composição. A quantidade e a extensão são propriedades dos corpos; um espírito não consta de partes justapostas.
A alma humana não pode dissolver-se em razão de sua dependência de outrem, ou, no caso, do corpo, porque ela não depende do corpo para existir; sendo espírito, e diretamente criada por Deus e pode subsistir sem o corpo, embora exista para se unir à matéria e constituir com esta um todo substancial que é o composto humano.
Objeta-se, porém: dado que a alma humana não existe necessária, mas contingentemente, não poderia ela deixar de existir ou ser aniquilada? Em outras palavras: Deus, que criou a alma humana, tirando-a do nada, não a poderia reduzir ao nada? Neste caso, a alma humana não se decomporia nem se dissolveria, mas simplesmente perderia a existência.
Eis a resposta adequada: Deus, que criou, pode certamente aniquilar qualquer criatura, pois seu ato criador é livre; Ele não é obrigado a conservar na existência qualquer criatura que seja. Se, porém, consideramos a Onipotência Divina não como atributo de Deus isolado, mas em relação aos outros atributos divinos, verificamos que a aniquilação de uma alma humana contrariaria à sabedoria e à justiça de Deus. Com efeito, seria uma espécie de contradição, pois Deus retiraria o ser de uma criatura depois de lhe ter dado uma natureza imortal; além disto, a aniquilação seria algo de injusto, pois tornaria impossível a aplicação das sanções merecidas pelo ser humano nesta vida.
Note-se, aliás, que esta última é a única razão que Kant (+ 1804) aceita para afirmar a imortalidade da alma. A sobrevivência da pessoa humana, diz este filósofo, é uma exigência da consciência moral, pois é evidente que a justiça não reina neste mundo: a virtude não costuma ser devidamente recompensada, nem o vicio adequadamente punido. Antes, o contrário ocorre com freqüência: o justo é perseguido, enquanto os maus prosperam. Ulteriores ponderações sobre este assunto seguir-se-ão sob o subtítulo 2 deste artigo.
Conclui-se, pois, que a alma humana é naturalmente imortal e não deixa de usufruir desta sua prerrogativa, pois Deus não subtrai às criaturas o que lhes outorgou como atributos próprios.
2. O desejo natural
Todo ser tende a se conservar e a perseverar na existência. Nos seres que usufruem de conhecimento, esse desejo é condicionado pelo conhecimento. O animal irracional conhece apenas a existência presente e não deseja outra realidade; não teme a morte porque não a conhece. O homem, porém, conhece o ser de modo absoluto, abstraindo do tempo. Deseja, em conseqüência, existir sem tempo ou, positivamente, conforme toda a duração possível do tempo – o que é existir sem limites de duração.
Ora o desejo natural de uma vida sem fim se deriva da própria natureza do homem; não é algo de convencional ou dependente de alguma forma de cultura. Tal desejo não pode ser frustrado ou vão; se o fosse, a natureza humana seria contraditória e absurda. Mais: ela suporia o Absurdo na sua origem, pois teria sido feita para a vida e a vida sem fim, mas não teria a capacidade de usufruir da imortalidade. Por conseguinte, a alma humana há de ser imortal, a fim de poder fruir da plenitude de vida à qual ela naturalmente aspira.
Dir-se-á, porém: se tal argumento é válido para a alma, há de ser válido também para o corpo, ou melhor, para o homem todo (composto de corpo e alma). Com efeito, o ser humano como tal deseja viver sempre e tem espontâneo horror à morte.
Em resposta, consideremos o seguinte:
O desejo de imortalidade do homem (ou do composto de corpo e alma), embora seja natural, não é senão uma veleidade ou uma aspiração ineficaz, pois o composto humano tende naturalmente a desgastar-se; os órgãos corpóreos se vão extenuando e tornando ineptos para a vida; no momento em que estão totalmente deteriorados, a vida nesse organismo se torna impossível e a alma humana se separa do mesmo.
Ao contrário, o desejo de imortalidade da alma humana pode ser eficaz, visto que a alma, não sendo composta, não se dissolve; além do mais, tem condições de sobreviver separada do corpo.
Há, pois, uma diferença entre o desejo natural de imortalidade do composto humano e o desejo natural de imortalidade da alma humana. Em conseqüência, diz a filosofia, o primeiro não tem conseqüências práticas, ao passo que o segundo as tem.
Estas afirmações hão de ser completadas pelos dados da fé. Esta ensina que o Senhor Deus, atendendo gratuitamente ao desejo natural de imortalidade do composto humano, instituiu a ressurreição física dos mortos. Jesus Cristo, Deus feito homem, tendo assumido a carne humana, quis padecer a morte do homem, a fim de vencê-la e ressuscitar como primícias de uma nova humanidade (cf. 1Cor 15,20). A ressurreição de Cristo é o penhor da ressurreição de todos os homens, a qual ocorrerá na consumação dos tempos, quando o Senhor vier em sua glória para dizer a última palavra da história.
Assim a fé ensina que o composto humano terá duração sem fim, pois, embora morra, o Senhor Deus lhe quer dar a vitória sobre a morte e conceder a plenitude da vida.
3. A sanção da justiça
O ser humano foi feito para a justiça, à qual aspira com toda a veemência. Contudo a justiça na vida presente é precária. Freqüentemente as pessoas retas e dignas são materialmente prejudicadas por praticarem o bem, ao passo que os criminosos e iníquos são materialmente beneficiados pela perversão; a justiça humana e o curso da história não raro «premiam» os maus e «castigam» os bons.
Ora, se a alma humana não fosse apta a sobreviver após a existência presente a fim de receber a sanção de seus atos, a justiça ficaria definitivamente violada e conculcada no caso de muitos homens. A história da humanidade terminaria com o triunfo (ao menos, parcial) da injustiça e da desordem sobre a justiça e o bem. A prática da virtude não seria reconhecida como tal, mas, antes, colocada em plano de desprezo e rejeição. Ora tais conseqüências suporiam um mundo absurdo, e, na origem deste mundo, um princípio de contradição e absurdo, conseqüências estas que não condizem com a ordem e a harmonia que se verificam em geral no universo. Daí afirmar-se que a alma humana é, por si, imortal e, por conseguinte, apta a receber na vida póstuma a justa sanção, que muitas vezes na vida presente lhe é negada.
Se nada houvesse que correspondesse às aspirações inatas à vida, à justiça, à verdade, ao amor… que todo homem traz naturalmente em si, teriam plena razão os que, mediante entorpecentes e psicotrópicos, procuram «paraísos artificiais», ou aqueles que põem fim a si mesmos no suicídio. Diz sabiamente Gabriel Marcel:
“Se a morte é a realidade última, todo valor se aniquila no escândalo puro; a realidade está como que ferida em seu coração”.
O que acaba de ser dito, pode ser ilustrado pela verificação de certos fenômenos ocorrentes na natureza. Esta parece excluir a frustração e o absurdo; com efeito,
se tenho olhos, é porque existe a luz para a qual o olho é feito;
se tenho ouvidos, é porque existem sons e melodias;
se tenho pulmões, existe o ar que lhes corresponde;
se tenho fome e sede, existem os alimentos de que preciso;
se a mulher tem o senso da maternidade e aspira a ser mãe, existe para ela a maternidade ou o poder tornar-se mãe.
Mais ainda:
se as águas do mar sobem por ocasião das marés, tornando-se agitadas e inquietas, sei que essa agitação não é casual, mas se deve ao atrativo sobre elas exercido pela Lua;
se a agulha magnética se agita dentro da bússola, posso estar certo de que existe um polo Norte (invisível, sim, mas muito real) que a atrai e só permite repouse quando devidamente voltada para o seu Norte.
Assim analogamente, se verifico em mim (anteriormente a qualquer reflexão filosófica ou religiosa) a sede de certos valores ou mesmo do Infinito, posso estar certo de que tais valores e o Bem Infinito existem no Além, em correspondência a tais aspirações.
Simone de Beauvoir, imbuída de existencialismo, escreveu muito acertadamente:
“Uma vida, para que seja interessante, deve assemelhar-se a uma ascensão: galga-se um patamar e, depois, outro…; cada patamar não existe senão em vista do patamar seguinte… Se essa subida, chegando ao auge, retrocede, ela se torna absurda desde o seu ponto de partida” (“Le sang des autres”).
Aprofundando um pouco mais estas reflexões, observamos: o universo se apresenta marcado por nota de profunda harmonia; é o que declaram os estudiosos de qualquer dos reinos naturais: mineral, vegetal e animal (irracional). Einstein experimentava admiração extática ao considerar a ordem do infinitamente grande. Aliás, as ciências naturais não seriam possíveis se o universo e a natureza não fossem inteligíveis ou não fossem o produto de uma Inteligência Suprema que concebeu cada uma das criaturas (grandes e pequenas) e seu maravilhoso inter-relacionamento. Pergunta-se, pois: somente o homem e sua existência sobre a terra seriam algo de absurdo ou destituído de explicação e razão de ser?
Vê-se que o absurdo consistiria, antes, em se admitir que somente o ser humano seja marcado pela nota do absurdo no conjunto das criaturas; parece desarrazoado que, colocado no todo harmonioso do universo, o homem, e somente o homem, não se beneficie da ordem que se exprime no conjunto e em cada um dos seus outros setores.
Em conclusão: certas interrogações e aspirações espontâneas em todo homem exigem resposta. Ora, já que tal resposta não é dada na vida presente por alguma das finitas criaturas que nos cercam, há uma vida póstuma, em que encontramos, sem disputa nem contestação, a resposta aos mais genuínos anseios do ser humano (resposta que é indissociável da fruição do Bem Infinito ou do Criador).
A propósito
R. Verneaux, “Filosofia do homem”. Livraria Duas Cidades, São Paulo 1969.
“Unwandelbares im Wandel der Zeit”, herausgegeben von Hans Pfeil. Band li, pp. 15-72. Aschaffenburg 1977.
PR 117/1969, pp. 372-385 (Deus existe ?);
PR 118/1969, pp. 411-416 (Absurdo ou Mistério ?).