Alma Humana: espiritualidade (I)

ESCOLA “MATER ECCLESIAE”

CURSO DE FILOSOFIA POR CORRESPONDÊNCIA

IV. PSICOLOGIA FILOSÓFICA

MÓDULO 19: A ALMA HUMANA—ESPIRITUALIDADE (I)

Estamos agora na segunda parte da Filosofia da Natureza. Com efeito; após estudar a Cosmologia Filosófica, consideramos a Psicologia Filosófica ou Racional.

Etimologicamente falando, Psicologia é o estuda da psyché ou da alma. Sabemos, porém, que a alma não pode ser encontrada “na ponta de um bisturi”, pois está intima­mente unida à matéria como princípio vivificante da matéria. Quem vê matéria viva, vê corpo e alma unidos para formar um único princípio substancial ou uma única natureza (a natureza vegetal da rosa, do cravo, a natureza animal do cão, do pássaro, a natureza racional do homem…). Por isto a Psicologia Racional ou Filosófica não pode prescindir da experimentação ou da observação dos fenômenos psíquicos.

Os nossos estudos, neste Curso, versarão diretamente sobre a alma humana, que é simultaneamente intelectiva, sensitiva e vegetativa.

Começaremos recordando, a título de sistematização, algumas noções já enuncia­das.

Lição 1: Generalidades — espírito, alma

1. A palavra “alma” provém do vocábulo latino anima; significa o princípio vital ou o princípio animador (vivificador) de um corpo organizado. Isto quer dizer que

<!–[if !supportLists]–>1) todo ser vivo tem alma;<!–[endif]–>

<!–[if !supportLists]–>2)distinguem-se tantos tipos de alma quantos são os tipos de vida. Ora há três tipos de vida:<!–[endif]–>

a) a vida vegetativa, cujas funções são nutrição, isto é, a faculdade de assimilar e incorporar ao próprio organismo determinadas substâncias;

crescimento, isto é, a capacidade de desenvolvimento homogêneo das partes do organismo, segundo um modelo impregnado na natureza mesma desse organismo;

reprodução ou faculdade de gerar outros viventes da espécie dos genitores;

irritabilidade ou capacidade de reagir a lesões, restaurando os tecidos prejudica­dos, em conformidade com o modelo impregnado no vivente;

<!–[if !supportLists]–>b) a vida sensitiva, cujas funções são as da vegetativa, acrescidas da capacidade de conhecer seres concretos e singulares mediante os sentidos externos (visão, audição, tato…) e os sentidos internos (estimativa, memória sensitiva, fantasia);<!–[endif]–>

<!–[if !supportLists]–>c) a vida intelectiva, que realiza as tarefas da vida vegetativa e da sensitiva e ainda é dotada do conhecimento de noções universais, abstratas, distinguindo o essencial e o acidental, para chegar a definições tão precisas quanto possível.<!–[endif]–>

Em conseqüência, distinguem-se:

a alma vegetativa (o princípio vital de um organismo de vida vegetativa), que se encontra nas plantas;

a alma sensitiva (o princípio vital de um organismo de vida sensitiva), que se encontra nos animais irracionais;

a alma intelectiva (o princípio vital de um organismo de vida intelectual), que ocorre nos viventes racionais ou intelectivos, ou seja, nos seres humanos.1

2. A palavra psique vem do grego psyché. É geralmente tida como equivalente a anima, alma. Verdade é que as escolas filosóficas e psicológicas hoje em dia atribuem matizes diversos ao vocábulo psique, matizes que não é nosso intuito recensear nestas páginas.

A Psicologia, por conseguinte, é o estudo do princípio vital em geral ou, segundo a acepção mais comum, é tão somente o estudo da vida consciente do homem.

3. Espírito é o ser real que não tem corpo, isto é, carece de extensão, quantidade, peso, tamanho…, mas é dotado de inteligência e vontade. Vê-se assim que a palavra espírito tem acepção mais ampla do que o vocábulo alma. A chave abaixo exprime a diferença:

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<!–[endif]–>

Espírito incriado, não unido à matéria: Deus criado,

não unido à matéria: anjo criado, unido à matéria, para nela se aperfeiçoar: alma humana (espiritual)

O espírito que é o princípio vital do organismo humano, é chamado alma humana. Esta, portanto, é espiritual ou não material. Se a alma humana é espiritual, também é imortal, pois a imortalidade é propriedade de todo espírito.

Procuremos agora considerar a alma humana em suas duas notas essenciais: 1) espiritualidade e 2) imortalidade.

Lição 2: Espiritualidade da alma humana

Pergunta-se: a alma humana é espiritual? — Tal pergunta já foi abordada nos Módulos 15, 16 e 17 deste Curso. Voltamos ao assunto, desta vez de maneira mais exaustiva.

Para averiguar se a alma humana é espiritual ou não, devemos levar em conta o seguinte princípio: o ser e o agir de determinada realidade devem ser correlativos entre si. Consequentemente, se vejo que determinada substância tem por efeito “salgar” alimentos, digo obviamente que o seu ser consta de cloro e sódio (NaCI); se outra substância é corrosiva, suporei que seja um ácido, como o ácido sulfúrico (H2SO4). Se, pois, desejo saber se a alma humana é espiritual ou se é material, devo examinar o seu agir ou as atividades que exerce; se estas são de ordem material, sem ultrapassar as capacidades da matéria, direi que a alma humana é material; se, ao contrário, as atividades da alma humana ultrapassam as virtualidades da matéria, concluirei que o próprio ser da alma humana é imaterial ou espiritual.

Analisemos, pois, as atividades da alma humana:

1) Percepção do universal

É certo que o ser humano, além de conhecer os objetos concretos, singulares e materiais que lhe ocorrem, é também capaz de conceber noções abstratas, universais, percebendo o essencial; é apto a reconhecer proporções, relações de dependência, de causalidade e de finalidade.

Com efeito, depois de ver um homem, uma mulher, uma criança, um ancião, um gordo, um magro…, a inteligência humana se emancipa das diferenças motivadas por cor, tamanho, sexo, idade… e define todos esses indivíduos como participantes da mesma essência ou natureza; são todos seres humanos, iguais entre si pela natureza (que a inteligência apreende), embora diferentes uns dos outros pelos aspectos que os olhos percebem.

Paralelamente, depois de ver diversos objetos belos (uma flor, uma paisagem, um animal, uma escultura…), a inteligência humana se emancipa dos elementos extrínsecos e concretos que apreende, e formula a definição da beleza. A partir da percepção de situações justas e injustas, formula as noções universais de justiça e injustiça.

A Psicologia Experimental, por sua vez, corrobora estas afirmações mediante a seguinte experiência:

Disponha-se uma série de vasilhas fechadas, na primeira das quais se coloca o alimento de um macaco. O animal, posto diante de tal série, não sabe onde encontrar a sua ração; o operador então abre a primeira vasilha e lhe mostra o seu alimento.

Repita-se a experiência, encerrando na segunda vasilha o alimento, e não na primeira. O animal, recolocado diante da série, é guiado pela memória sensitiva e, recordando-se do ocorrido no dia anterior, vai à primeira vasilha. O operador então o coloca diante do segundo recipiente, do qual o animal se serve.

Num terceiro ensaio, coloque-se o alimento fechado no terceiro recipiente: guiado pelas impressões sensíveis do ensaio anterior, o macaco se dirige para o segundo vaso… Caso se multipliquem as experiências, verifica-se que o animal procura de cada vez o recipiente em que no ensaio anterior encontrou o que lhe interessava. Nunca chega a abstrair dessas diversas experiências a lei da progressão que as rege. Nunca se desven­cilha das notas concretas da vasilha em que, por último, encontrou a sua ração, deduzindo que não é o fato de ser a segunda, a terceira ou a quarta vasilha que interessa, mas o fato de ser a vasilha n + 1 (fórmula em que n designa o número da experiência anterior). Ora uma criança sujeita a tal teste, depois de quatro ou cinco experiências, consegue abstrair a lei n + 1 do fenômeno.

Destes ensaios se conclui que o animal, por mais semelhante que seja ao homem, jamais se desembaraça da percepção do concreto, material; ele percebe o primeiro, o segundo, o terceiro objetos… postos à sua frente, mas é incapaz de perceber a proporção que há entre esses objetos:

<!–[if !supportLists]–>1 = n+1<!–[endif]–>

<!–[if !supportLists]–>2 =n+1<!–[endif]–>

<!–[if !supportLists]–>3 =n+1<!–[endif]–>

<!–[if !supportLists]–>4 =n+1<!–[endif]–>

<!–[if !supportLists]–>5 =n+1<!–[endif]–>

Na coluna da esquerda temos acima a lista dos termos concretos, particulares, ao passo que na coluna da direita temos a fórmula universal e a indicação de proporção. Ora passar da coluna da esquerda para a da direita, percebendo a constante n + 1 por debaixo das variações 2, 3, 4, 5… é algo que só a inteligência faz, porque só esta abstrai do concreto. O animal irracional não se eleva ao abstrato, universal. Por conseguinte, o irracional não tem princípio de conhecimento ou princípio vital imaterial ou espiritual; a alma do macaco ou do animal irracional é material. Ao contrário, o homem, que é capaz de abstrair do concreto singular, possui um princípio vital ou uma alma imaterial ou espiritual.

Observe-se também: não há transição entre o material e o imaterial (ou espiritual). O espiritual não é a matéria rarefeita ou gasosa energética, pois mesmo a matéria rarefeita e a energia elétrica são dimensionáveis mediante números ou estão sujeitas à quantidade, ao passo que o espírito não é quantitativo nem comensurável.

2) A consciência de si mesmo

Verifica-se que os animais têm conhecimento de objetos que os cercam, ameaçando-os ou favorecendo-os. O ser humano, além deste tipo de conhecimento, possui o conhecimento de si mesmo ou a autoconsciência; o homem não somente sente dor, mas sabe que sente dor ou que está lesado fisicamente; este fator aumenta enormemente a sua dor, pois o sujeito humano percebe que a sua moléstia o impede de trabalhar devidamente, o que pode prejudicar a sua família, a sua carreira, o seu ideal… Possuindo o conhecimento dos objetos e de si mesmo, o homem concebe o plano de ordenar o mundo e a si mesmo, dominando fatores estranhos ao seu ideal, superando paixões desregradas, cultivando boas tendências, etc. Isto tudo escapa às possibilidades de um animal irracio­nal, pois este conhece o seu objeto concreto, singular, e é incapaz de se emancipar das notas concretas deste e de se voltar para si mesmo de maneira sistemática a fim de se conhecer. O ser humano, ao contrário, realiza esta introspecção, porque o seu princípio de conhecimento (intelecto) é capaz de ultrapassar o seu objeto concreto, material para atingir o próprio sujeito…

3) A cultura e o progresso

Verifica-se que o homem intervém no ambiente natural que o cerca, modificando-o de acordo com as suas intenções e os seus planos; cria assim a cultura, que se sobrepõe à natureza, adaptando-a ao homem; assim é que surgem casas, estradas, cidades, fábricas, artefatos… Essa atividade científica e técnica, social e ética, artística e religiosa, não é o produto de processos fisiológicos apenas ou de fatores materiais e econômicos tão somente, mas se deve à ação intelectiva e planejadora da inteligência e à liberdade de arbítrio do ser humano. Com efeito, ao conhecer a natureza que o cerca, o homem apreende as relações entre meios e fins ou as proporções entre diversos termos e concebe projetos para melhorar o seu ambiente (o seu habitat natural, a sua alimentação, o seu vestuário, as expressões de sua arte, de seus sentimentos religiosos…); vai assim construindo civilizações sucessivas… Ora o animal é incapaz de progredir em suas expressões, porque é guiado por instintos; assim o animal, embora certeiro e apurado em seus movimentos instintivos, é incapaz de dar contas a si mesmo do que faz e dos porquês da sua atividade; é, por isto, incapaz de se corrigir ou de se ultrapassar. Em última análise, a raiz da diferença entre o comportamento do homem e o do animal reside no fato de que o homem tem um princípio vital ou um princípio de atividades imaterial ou espiritual, ao passo que o animal tem uma alma material ou confinada pelas potencialidades da matéria.

Os argumentos em prol da espiritualidade da alma humana continuarão a ser estudados no próximo Módulo, que tratará da linguagem ou do falar do homem.

* * *

[1] Observa-se uma diferença entre intelectivo e racional.

Intelectivo é todo ser que conhece noções universais, distinguindo essência e acidentes.

Racional é o ser cuja inteligência não é intuitiva, mas progressiva, passando de premissas a conclusões, para estabelecer novas premissas e chegar a ulteriores conclusões.

O ser humano, por exemplo, é intelectivo racional (aos poucos vai penetrando a verdade). Deus e os anjos são intelectivos não racionais, mas intuitivos.

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