A — As operações da INTELIGÊNCIA são espirituais.
(Cerruti, P., A Caminho da Verdade Suprema, Rio de Janeiro, pp. 260-267)
DEMONSTRAÇÃO
I. Argumento.
149. Pelo objeto da inteligência.
São necessariamente espirituais as operações com as quais são atingidos objetos imateriais, isto é, sem as condições da matéria.
Ora, com as operações da inteligência são atingidos objetos imateriais, sem as condições da matéria.
Logo, as operações da inteligência são espirituais.
Prova da MAIOR:
a) De um modo geral, a operação, sendo o meio de atingir o objeto ao qual se une como o movimento ao seu termo, está por sua própria natureza relacionada com seu objeto: assim a visão não é senão o movimento com o qual a faculdade visual atinge o objeto colorido, que é o seu objeto externo próprio; o pensamento não é senão o movimento ou atividade vital com a qual a inteligência atinge a natureza de um objeto; ora o meio deve ser proporcionado ao seu fim próprio para o qual tende por sua natureza, como o movimento ao seu termo próprio; deve pois a operação ter intrínseca proporção com o objeto formal que ela atinge e por conseguinte ser da mesma ordem que ele; donde somente uma operação imaterial poderá atingir objetos imateriais. (193)
b) No nosso ato cognitivo a união do objeto com a faculdade é obtida por meio de uma espécie impressa na faculdade (ns. 84 e 88). Quando a faculdade e o ato não são espirituais, mas intrinsecamente dependentes da matéria, esta espécie impressa contém as condições da matéria, pois está recebida numa faculdade não imaterial e tudo o que nela está recebido deve forçosamente ter o modo de ser desta faculdade: quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur. Ora, evidentemente uma espécie impressa encerrada nas condições materiais não pode representar um objeto que não tenha estas condições. Logo é impossível que com um ato não imaterial se possa conhecer um objeto imaterial. Donde, quando o objeto conhecido é imaterial, a operação é necessariamente imaterial. (194)
Prova da MENOR:
As propriedades da matéria são a quantidade e as outras determinações que dela resultam, como a individuação, a figura, a cor, a resistência, a temperatura, o peso, o lugar, o espaço, o tempo… Logo tudo o que não tiver estas propriedades não será material, mas imaterial. — Ora os objetos que a inteligência atinge com suas operações não têm estas propriedades. Assim:
1. — Pela Simples Apreensão são formados Conceitos
a) universais, essencialmente diferentes das imagens sensíveis: por ex., os conceitos de homem, planta, triângulo, etc. O que os sentidos percebem e as imagens representam ò sempre um singular concreto, este homem, esta planta, este triângulo particular, com suas condições concretas de tal figura, tal lugar, tal tempo… O conceito, pelo contrário, prescinde do hic et nunc e de todas as condições concretas individuais, representa uma natureza, um algo inteligível, com os caracteres de necessidade, de universalidade, de imutabilidade e de eternidade (n.s. 61 e 64), sem nenhuma das propriedades da matéria. (195) Donde, na simples apreensão, o que é atingido e conhecido é sempre algo de imaterial e mesmo os seres materiais são conhecidos de um modo imaterial.
b) de objetos existentes nos seres materiais, mas que entendemos poder achar-se também em seres não materiais; donde os conhecemos como não ligados necessária e intrinsecamente à matéria, isto é, como imateriais : ex., as noções de ser, causa, substância…
c) de objetos absolutamente fora da ordem material e sensível, que nos seus elementos não contêm nenhuma condição material : assim as noções de Deus, de alma, de dever, de justiça, de necessário, de contingente, de verdade…; assim também as relações entre os seres: igualdade, divergência, dependência…, pois a relação, como tal, não inclui nada de material.
Logo, os objetos atingidos pela primeira operação da inteligência — a elaboração dos conceitos — são imateriais e por conseguinte esta atividade, que se processa fora da ordem sensível, é imaterial.
Reconhecem-no os mesmos materialistas, que para fugir da conseqüência (a nossa alma é espiritual) negam a existência de conceitos em nós, afirmando, como o positivista Taine, que é uma “ilusão psicológica”. Afirmação absurda: como já vimos (ns. 39, 50), o reconhecimento da ilusão, como tal, supõe o conhecimento da realidade, como o do erro supõe a verdade. Donde a ilusão de termos idéias, supõe o fato de termos idéias. Como pode um ser material (qual seria o homem, segundo os materialistas) ter uma ilusão independente das condições da matéria, como é o pensamento? Seria como admitir que um jumento pudesse ter ilusões de cálculo infinitesimal. Afirmação contraditória: não é por meio de conceitos que negam os conceitos, admitindo com os fatos o que negam com as palavras?
Somente uma atividade espiritual da inteligência explica a LINGUAGEM : É lei constante que na ordem física as mesmas causas produzem regularmente os mesmos efeitos. Ponhamos que o homem todo seja só matéria. É claro então que impressões perfeitamente iguais feitas sobre esta matéria, por meio de sensações externas, produzirão sempre o mesmo efeito. E assim a palavra do homem, tomada materialmente, não sendo senão uma série de sons articulados, se no homem tudo é matéria, produzirá fenômenos diversos se variarem os sons; mas se os sons forem os mesmos, também os efeitos deverão ser os mesmos. “Ora, contrariamente à lei enunciada, palavras completamente diversas produzem no homem fenômenos perfeitamente semelhantes, e palavras perfeitamente semelhantes, produzem fenômenos de todo diferentes. Um francês me vem ao encontro e me diz: “Comment vous portez-vous ?” Eu respondo: “muito bem” e agradeço. Sobrevém um inglês e diz: “How do you do?” — Eu respondo: “muito bem” e agradeço. Um italiano: “Come stà?” Respondo também a ele: “muito bem” e agradeço. Um alemão, um russo, um otentote teriam a mesma resposta, se, perguntando-me também eles na sua língua “como estou”, eu compreendesse a sua linguagem, isto é, se compreendesse a relação que há nestes vários povos entre alguns sinais e sons e algumas idéias: relação para a qual a matéria bruta é absolutamente inapta. Receba embora impressões e sons quanto se quiser o nosso organismo; mas se tudo fosse matéria, nós nunca poderíamos dar a mesma resposta a sinais diferentes, produzindo impressões diversas…” (Monsabré, Exposição do Dogma, Quaresma 1875, Conferência XVI).
Vice-versa, as mesmas palavras, os mesmos sons sensíveis, podem suscitar reações muito diferentes. Ouçamos ainda Monsabrê na mesma conferência :
“Eu leio em qualquer história: “O rei voltou para a sua capital; foi aí “qu’il mourut”. Este “qu’il mourut” deixa-me completamente insensível. Mas leio em Corneille:
— Que vouliez-vous qu’il fit contre trois ?
— Qu’il mourut.
Logo sinto palpitar meu coração… e chorar meus olhos. Estas duas palavras qu’il mourut, comoveram todo o meu ser e penetraram até a medula dos meus ossos. Porque isso? Porque é que estava ainda há pouco tranqüilo, e porque é que agora não posso conter minha admiração? As palavras são as mesmas, a entonação não pôde mudar a impressão recebida, pois eu li silenciosamente. O mesmo órgão foi modificado do mesmo modo, deve ter produzido na massa cerebral a mesma reação. Eis a matéria apanhada em plena contravenção a suas próprias leis. Experimentai explicar este mistério de outra maneira que não pela ação de uma força transcendente que vê o que a matéria não vê, não o podereis.”
2. — No Juízo, num único ato conhecemos simultaneamente dois termos e comparando-os vemos o NEXO entre eles.
Ora os sentidos só podem perceber partes justapostas, sucessivas porém o nexo, o qual não tem nenhuma condição material (não tem tamanho, nem forma, nem cor…). Logo os sentidos não podem julgar. — Nos juízos universais, vemos este nexo como universal, abraçando todos os casos possíveis. Ora os sentidos, ligados ao material, só podem atingir as qualidades exteriores do que é “hic et nunc”, não a essência em si mesma, nem o que deve ser, o necessário, o universal. Logo, também o juízo transcende a ordem sensível e atinge o imaterial, e por conseguinte é uma atividade imaterial.
3. — No Raciocínio, quer dedutivo onde a inteligência vê o nexo entre as premissas e a conclusão (vendo os nexos de dois termos com um terceiro), quer indutivo onde ela vê a lei universal nas experiências realizadas, o que é atingido — os nexos, a ilação — é sempre algo destituído de qualquer condição da matéria, incapaz por conseguinte de impressionar os sentidos. Logo, também o raciocínio, que atinge o imaterial, é uma atividade imaterial.
4. — Ordenando lógica e harmoniosamente conceitos, juízos e raciocínios, a inteligência forma as diversas Ciências, teóricas e práticas, com as quais domina o mundo da matéria e o faz servir para a utilidade do homem; prescruta a natureza dos corpos, dos viventes, do homem mesmo, e de progresso em progresso, descobre as leis gerais e a ordem admirável do universo, subindo sempre das causas próximas e particulares para as mais gerais, até a mais universal, Causa Primeira, Primeiro Princípio e último Fim, Ser Supremo, diante do qual se inclina reverente num culto religioso de adoração e submissão.
— Quem poderá afirmar que uma tal atividade da inteligência se reduz à atividade sensível e material ? que entre elas a diferença é somente de grau, não de natureza ? (196) Parte, sim, a inteligência de dados fornecidos pelos sentidos, mas é somente com uma atividade estritamente imaterial que poderá “contemplar neles as essências despojadas da sua materialidade, subir ao conhecimento de coisas supra-sensíveis e imateriais, descobrir relações universais e constantes no fluxo incessante dos seres, abraçar o universo todo e descobrir-lhe as leis, prescrutar-lhe as causas últimas e elevar-se até à contemplação e adoração do absoluto, do eterno, cio infinito.” (197)
II. Argumento.
150. — Entre a atividade intelectual há também a reflexão completa, em que a inteligência se volta completamente sobre si mesma, tornando-se juntamente objeto conhecido e faculdade conhecedora. Acontece isso em todo juízo direto certo, e quando conscientemente nos percebemos pensando, julgando… (por isso essa consciência é chamada reflexa, auto-consciência = consciência de si mesma, a inteligência se conhece a Bi mesma). (198)
Ora uma tal reflexão completa não pode ser uma atividade material, pois : no ato cognitivo material, quem age é o órgão animado, isto é, o conjunto do órgão com a faculdade que o informa, e o ato reside neste conjunto do órgão animado; donde, para uma faculdade orgânica, refletir-se completamente sobre si mesma ou sobre o seu ato incluiria também a reflexão completa do órgão sobre si mesmo; ora isso é impossível, porque o órgão é extenso com “partes extra partes” incompenetráveis: pode o órgão dobrar uma parte sobre outra, não porém o todo sobre o mesmo todo, como é necessário para que seja juntamente objeto e instrumento de conhecimento; donde nenhuma faculdade orgânica pode conhecer-se a si mesma, nem ao próprio ato.(199)
CAP. I – ESPIRITUALIDADE DA ALMA
Logo o ato de reflexão completa é um ato imaterial.
151. CONFIRMAÇÃO da imaterialidade da atividade intelectual.
1. — Pelo domínio que o conhecimento intelectual tem
a) sobre si mesmo: a inteligência não só se conhece a si mesma e ao seu ato, mas conhece também as normas e as condições da sua atividade, e assim pode examinar, verificar os próprios processos e corrigi-los em caso de erro;
b) sobre o conhecimento sensível: ela pode controlar os dados dos sentidos, verificar se agiram nas devidas condições, corrigir os chamados “erros dos sentidos”, conhecendo-lhes o porquê (por ex., as leis da refração da luz), e assim pode julgar contra as aparências (por ex., julga intacta uma bengala que, meio imersa na água, lhe aparece como quebrada).
Ora, dirigir os próprios atos e o das outras faculdades subordinadas segundo ordens absolutas e imateriais, conhecidas reflexa e conscientemente, é uma atividade totalmente diversa, na natureza e no modo, da atividade material de uma faculdade orgânica, pois esta, dependendo inteiramente das impressões produzidas no órgão, não pode conhecer senão as aparências que impressionam este órgão.
Logo o nosso conhecimento intelectual é uma atividade imaterial. (200)
2. — No conhecimento material, sensitivo, o objeto vem impressionar o órgão e quando este objeto supera certa intensidade, fica o órgão lesado por ele e a operação impedida ou por algum tempo, ou mesmo para sempre: assim uma luz intensa pode cegar, uma explosão violenta pode ensurdecer, uma dor veemente pode causar a morte, uma sensação muito intensa torna durante certo tempo o órgão insensível a sensações menores; uma sensação muito repetida diminui, e como que se apaga. Pelo contrário, o estudo de um assunto muito difícil não só não lesa a inteligência, mas a dispõe melhor para compreender assuntos mais fáceis para os quais pode passar imediatamente. Donde — é a conclusão que já Aristóteles deduzia — a inteligência na sua atividade não depende de um órgão material, e por conseguinte, a sua atividade não é de ordem material. (201)
3. — Os casos dos surdo-mudos cegos, que partindo somente dos dados do tacto puderam chegar a conhecimentos universais, a noções espirituais, à consciência do dever, ao conhecimento de Deus e da vida futura : o que supõe neles um princípio ativo interno e uma operação espiritual infinitamente superior ao alcance do sentido do tacto. — Assim as Irmãs Religiosas de Larnay (Viena) educaram Martha Obrecht e depois Maria Heurtin (1885 — 1921). (202) Nos Estados Unidos é célebre o caso de Helen Keller, que chegou até a escrever livros como “História da minha vida”, “Minha chave de vida”.
* * *
(193) Cfr. Thonnard, obra cit., pp. 482-487. De fato, como compreender que uma operação, exercendo-se debaixo das condições da matéria, possa atingir um objeto situado fora da ordem material, onde nenhuma destas condições podo realizar-se?
(194) Cfr. BOYER, obra cit., II, p. 69
(195) O que conhecemos com a idéia de homem, de planta, de pedra, de peso… i. é, a natureza humana, a natureza da planta, da pedra, do peso, não tem forma nem cor, nem resistência nem peso, não ocupa lugar no espaço : a idéia de azul não é azul, a idéia de km não tem mil metros de comprimento, a idéia de quadrado não é quadrada, não tem peso, nem cheiro, nem cor… o que a idéia nos dá a conhecer é a natureza “absolute considerata” (n.° 73), desmaterializada pela abstração universalizadora (ns. 70-72).
(196) (Esta, irredutibilidade essencial entre o conhecimento intelectual e o sensível foi confirmada também pelas pesquisas experimentais. Cfr. DE LA VAISSIÈRE S. J., Eléments de Psychologie Expérimentale, Paris, Beauchesne, 1914, ns. 76 e 77.
(197) “É característica da inteligência a necessidade incoercível de ver, de saber; é uma sede — direi absurda ? direi sublime ? — de lua infinita. Ontem eu não existia, amanhã não existirei mais. Tenho somente um lampejo de inteligência. Uma nesga de céu, um astro, uma flor, deveriam bastar, parece, para absorvê-lo. Mas não : quero ver tudo, penetrar tudo, o meu espírito ultrapassa todos os tempos, todos os lugares, todos os espaços, todos os objetos criados, e, com o poeta que no momento de morrer bradava : Luz, mais luz !, depois de ter virado todas as páginas de um livro, especulado todos os astros, esgotado todas as ciências, ávido e ainda insatisfeito digo: E depois? Eis o espírito do homem”. BOUGAUD, O Cristianismo e os tempos presentes, Vol. I, cap. 1.
(198) Cfr. Thonnard, obra cit., pp. 791-792.
(199) Assim a vista não pode ver-se a si mesma nem ver a sua visão. Podemos nos sentir sentindo, porque há em nós (também nos animais) um sentido interno, o sentido comum (= consciência sensível), que tem por objeto as várias sensações dos sentidos externos e as suas diferenças. Nisso porém não há reflexão total de um sentido sobre si mesmo, nem sobre o ato próprio, mas somente conhecimento de atos produzidos por outros sentidos.
(200) Cfr. Santanna, obra cit. p. 213.
(201) Cfr, Santo Tomás, Contra Gentiles, 1. II, cap. 66; Boyer, obra cit., Vol. II, p. 70-1; E. Petazzi, Corso di Cultura Superiora Religiosa, Série II (1933-1934), pp. 27-28.
(202) Cfr. Arnould, Une ame en prison. Vide um resumo em Buysse, Vers la Croyance, pp. 213-217.