(Revista Pergunte e Responderemos, PR 1-2/1957)
“Queira indicar alguns argumentos racionais que provem a imortalidade da alma”.
1)A alma humana possui o desejo inato de existir sem fim e exercer seus atos vitais sem ruptura nem cessação de si mesma. Este desejo se deriva do fato de que ela é capaz de conceber o ser simplesmente dito, abstraindo de notas que o tornem individual e restrito (assim o cavalo pode ser concebido pelo homem como um ser; da mesma forma, uma pedra, uma criança, o próprio Deus). Ora, concebendo o ser sem restrição, a alma humana não pode deixar de o apetecer espontaneamente; não pode deixar de desejar a existência sem termo algum.
A tendência a não perder a existência, inata como é em toda alma humana, só pode provir do Autor da natureza ou do Criador. Disto se conclui que não há de ser frustrada ou vã; o Criador sumamente sábio não teria feito uma criatura. Espontaneamente tendente a um objetivo que ela não possa, ou não deva alcançar; tal criatura seria uma contradição, um absurdo, que deporia contra o seu Autor
Resta, pois, afirmar que o desejo da alma humana de ser e viver conscientemente sem conhecer fim corresponde ao destino mesmo dessa alma. Ela é naturalmente imortal.
Note-se ainda o seguinte: embora o homem tenha horror a perecer ou morrer, ele, pelo fato mesmo de ser composto de corpo e alma, é contingente, traz em si o principio de sua decomposição ou morte. Sim; tudo que é composto, pelo fato mesmo de ser composto, tende a se decompor ou desagregar em virtude do uso ou desgaste das partes componentes. Por conseguinte, o desejo inato que o homem tem de não perecer, só se pode atuar (por via natural não suposta alguma intervenção extraordinária de Deus) na alma humana, que não possui partes componentes. A alma é, de resto, à parte característica do homem, parte que lhe dá a sua personalidade.
A fé acrescenta que Deus gratuitamente restaurará a união da alma e do corpo após a morte do homem, ou seja, no dia da ressurreição final.
2) A diferença do corpo humano, a alma não se compõe de substâncias químicas nem de matéria e espírito, mas é espírito só, substância simples. Em sua natureza, portanto, ela não traz princípio de desagregação, de destruição de si mesma (pois ela não é um agregado). Disto se segue que a alma humana por si não perece.
É verdade que Deus, O Qual a tirou do nada por criação, a poderia também reduzir ao nada; nenhuma criatura existe necessariamente ou por si; todo ser criado é contingente, só Deus é necessário. Contudo Este não aniquila a alma, pois usa da sua Onipotência de maneira sábia; tendo feito uma criatura desejosa de se conservar sempre no ser, Ele não contradiz a essa tendência.
«Que é a alma»
De modo geral, denomina-se alma o princípio vital que anima ou faz viver a matéria orgânica. Embora não se saiba definir exatamente em que consiste a vida, costuma-se dizer que é automoção ou <de si mesmo>>. Distinguem-se três graus de vida: a vida meramente vegetativa, cujas funções são nutrimento, crescimento e multiplicação da espécie; a vida sensitiva, que, além das funções anteriores, possui a faculdade de conhecer, mediante os sentidos (órgãos do corpo), objetos concretos, dotados de tamanho, côr, sabor, sonoridade, etc. só atinge objetos dimensionais; a vida intelectiva, que tem, a mais, a função de elaborar noções abstratas, depuradas das dimensões e outras notas concretas, contingentes, com que os seres aparecem na natureza; a inteligência, por exemplo, elaborando os dados recebidos pelos sentidos, chega à conclusão de que o <> não é somente Pedro, Paulo, João, mas todo vivente (branco ou negro, alto ou baixo, masculino ou feminino) capaz de raciocinar ou racional. Um dos sinais mais característicos da presença do intelecto ou da vida intelectiva num determinado sujeito é a faculdade de falar, a qual supõe sempre um poder superior aos sentidos, coordenador das impressões recebidas por estes («se o chimpanzé tem a possibilidade de falar, mas na realidade não fala, entenda-se que a função de falar, em sua essência, não é função orgânica, mas função intelectual e espiritual”. (G. Gusdorf, La Parole. Paris 1953,4). Outra característica do ser intelectivo é o riso, que supõe a admiração, ou seja, o conhecimento abstrativo e lento que se faz por meio do raciocínio)”.
Na base desta tríplice distinção, fala-se de alma (principio vital) vegetativa, alma sensitiva e alma intelectiva.
Cada indivíduo possui uma alma só, que satisfaz a todas as funções de sua vida.
A alma intelectiva é própria do homem. Difere da vegetativa e da sensitiva pelo fato de que, como acima dissemos, estas não têm funções que transcendam os limites da matéria; são materiais, por isto são produzidas pela potencialidade mesma da matéria e reabsorvidas por esta, quando cessam as disposições do corpo necessárias para que exerçam suas funções. A alma intelectiva, ao contrário, possui atividade superior à do corpo; é capaz de conhecer o que não cai diretamente sob os sentidos (embora se sirva do conhecimento sensitivo como de base das suas elucubrações); conhece, por exemplo, a causa invisível de um efeito visível, as relações entre os meios e determinado fim, aquilo que é essencial e perene em indivíduos diversificados por notas contingentes, etc. Por isto a alma humana não é material, mas “espiritual” (o modo de ser e o modo de agir de um indivíduo são estritamente correlativos entre si); o que mais precisamente significa: ela não tem extensão, nem tamanho, nem cor, nem sabor, nem figura, sem que por isto deixe de ser muito real (Deus também não tem figura nem cor). Daqui se segue, como melhor se dirá abaixo (n° 2), que a alma humana tem origem independente da matéria e pode subsistir fora ou independentemente desta.
Dada a transcendência da alma humana em relação à da planta e à do animal irracional, costuma-se reservar o nome alma para o que concerne ao homem, chamando-se simplesmente princípio vital (vegetativo ou sensitivo) o elemento que vivifica as plantas e os irracionais.
BETTENCOURT, Estevão. Revista pergunte e responderemos. Rio de Janeiro, 1957. N. 1 e 2. P. 23-24.
BETTENCOURT, Estevão. Revista pergunte e responderemos. Rio de Janeiro, 1957. N. 3. P. 3-4.