(Revista Pergunte e Responderemos, PR 453/2000)Em síntese: Georges Huber, jornalista católico francês, disserta sobre o demônio e sua ação no mundo. Ao mesmo tempo que afirma a realidade dos anjos maus, enfatiza estarem eles subordinados aos sábios desígnios da Providência Divina; o demônio pode ladrar, mas só morde a quem se lhe chega perto. O autor segue fielmente a doutrina da Igreja numa época em que se contesta o artigo de fé relativo aos anjos bons e maus.
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Georges Huber é jornalista católico francês que se tem dedicado a escrever sobre os anjos. Após publicar duas obras sobre os anjos bons e seu ministério junto aos homens, oferece aos leitores um livro sobre o demônio e sua atualidade, seguindo fielmente as linhas da Tradição e do Magistério da Igreja[1]. A obra é apresentada pelo Cardeal Christopher Schoenborn, Arcebispo de Viena e um dos teólogos redatores do Catecismo da Igreja Católica. Este mestre bem sintetiza o conteúdo da obra em foco nos seguintes termos:
“O autor mostrou na sua obra sobre os anjos como estas esplêndidas criaturas espirituais estão totalmente às ordens da Divina Providência e como todo o seu ser consiste na adoração e no serviço de Deus. Esta mesma verdade encontra-se neste livro sobre Satanás. Porque os anjos caídos continuam a ser anjos; continuam a ser espíritos ao serviço de Deus, embora a contra gosto.
A presente obra não suscita em nós medo aos demônios; antes revela a fé no irresistível poder de Deus, que ordena cada coisa para os seus fins. É o que a fé nos ensina e a experiência cristã nos confirma. Os demônios empreendem uma luta impiedosa contra o homem e se esforçam por obstruir os planos de Deus: percorrem o mundo incessantemente a fim de levar as almas à perdição. No entanto, a sua ação está completamente subordinada aos planos de Deus.
A partir desta verdade fundamental, Georges Huber demonstra-nos que, se Deus permite que os demônios atuem, não é certamente para fazer mal aos homens, mas para ajudá-Lo a realizar os seus magníficos planos de salvação” (pp. 5s).
Após esta sucinta apresentação da obra, sejam destacados alguns dos tópicos mais significativos da mesma.[2]
1. A Conspiração do Silêncio
“‘Como se pôde chegar a esta situação?’
É a pergunta que fazia o Papa Paulo VI, alguns anos depois de se ter encerrado o Concílio Vaticano II, à vista dos acontecimentos que sacudiam a Igreja. ‘Pensava-se que, depois do Concílio, o sol brilharia sobre a história da Igreja. Mas, em vez do sol, apareceram as nuvens, a tempestade, as trevas, a incerteza’.
Sim, como se pôde chegar a semelhante situação?
A resposta de Paulo VI é clara e nítida: ‘Interveio uma potência hostil. Seu nome é o demônio, esse ser misterioso de quem nos fala São Pedro na sua primeira Epístola. Quantas vezes não se refere Cristo, no Evangelho, a este inimigo dos homens?’ E o Papa precisa: ‘Nós cremos que um ser preternatural veio ao mundo precisamente para perturbar a paz, para afogar os frutos do Concílio ecumênico e para impedir a Igreja de cantar a sua alegria por ter retomado plena consciência de si própria’. Para dizê-lo brevemente, o Papa tinha a sensação de que ‘o fumo de Satanás entrou por alguma fenda no templo de Deus’.
Assim se exprimia Paulo VI sobre a crise da Igreja em 29 de junho de 1972, nono aniversário do seu pontificado. Alguns jornais mostraram-se surpreendidos com essa declaração do Papa sobre a presença de Satanás na Igreja. Outros escandalizaram-se. Não estaria Paulo VI exumando crenças medievais que se julgavam esquecidas para sempre?
1.1. Uma das grandes necessidades da Igreja contemporânea
Sem recuar perante essas criticas, o Papa voltou a tratar do tema cinco meses mais tarde. E, longe de contentar-se com reafirmar a verdade sobre esse ponto, consagrou uma alocução inteira à presença ativa de Satanás na Igreja.
Logo de início, sublinhou a dimensão universal do tema: ‘Quais são hoje – perguntava – as necessidades mais importantes da Igreja?’ A resposta foi clara: ‘Uma das maiores necessidades da Igreja é a de defender-se desse mal que designamos por demônio’. A seguir, recordou a doutrina da Igreja sobre a presença, no mundo, de ‘um ser vivente, espiritual, pervertido e perversor, realidade terrível, misteriosa e temível’.
Depois, referindo-se a algumas publicações recentes (numa das quais um professor de exegese convidava os cristãos a ‘liquidar o diabo’), afirmou: ‘Separam-se do ensinamento da Bíblia e da Igreja aqueles que se negam a reconhecer a existência do diabo ou aqueles que o consideram um princípio autônomo que não tem, como todas as criaturas, a sua origem em Deus; e também aqueles que o explicam como uma pseudo-realidade, uma invenção do espírito para personificar as causas desconhecidas dos nossos males’.
‘Nós sabemos – prosseguiu o Papa – que este ser obscuro e perturbador existe verdadeiramente e atua sem descanso com uma astúcia traidora. É o inimigo oculto que semeia o erro e a desgraça na história da humanidade. É o sedutor pérfido e obstinado que sabe insinuar-se em nós através dos sentidos, da imaginação, da concupiscência, da lógica utópica, das relações sociais desordenadas, para introduzir nos nossos atos desvios muito nocivos que, no entanto, parecem corresponder às nossas estruturas físicas ou psíquicas ou às nossas aspirações profundas’.
Satanás sabe insinuar-se… para introduzir… Estas expressões não nos lembram a advertência de São Pedro sobre o leão que ruge e ronda, buscando a quem devorar (cfr. 1Pe 5, 8)? Para se apresentar, o diabo não fica à espera de que o convidem; antes, impõe a sua presença com uma habilidade quase infinita.
O Papa evocou também o papel de Satanás na vida de Cristo. Ao longo do seu ministério, Jesus qualificou três vezes o diabo como príncipe deste mundo (Jo 12, 31; 14, 30; 16,11), tão grande é o seu poder sobre os homens.
Paulo VI empenhou-se em apontar os indícios reveladores da presença ativa do demônio no mundo.
1.2. Lacunas na Teologia e na Catequese
Na sua exposição, o Santo Padre tirou uma conclusão prática que, para além dos milhares dos fiéis presentes na vasta sala de audiências, se dirigia aos católicos do mundo inteiro: ‘A propósito do demônio e da sua influência sobre os indivíduos, sobre as comunidades, sobre sociedades inteiras, faz-se necessário retomar um capítulo muito importante da doutrina católica ao qual hoje se presta pouca atenção’.
Por outras palavras, a Cabeça da Igreja afirma que a demonologia é um capítulo ‘muito importante’ da teologia católica e que hoje em dia é excessivamente esquecido. Existe uma lacuna no ensino da teologia, na catequese e na pregação. E essa lacuna pede que seja preenchida. Estamos perante ‘uma das maiores necessidades’ da Igreja no momento presente.
Quem o teria previsto? A catequese de Paulo VI sobre a existência e influência do demônio originou um inesperado sentimento de revolta na imprensa. Mais uma vez, acusou-se a Cabeça da Igreja de retornar a crenças já ultrapassadas pela ciência. O diabo estava morto e enterrado! Raramente os jornais se haviam levantado com uma veemência tão ácida contra o Soberano Pontífice.
1.3. O Inimigo Desmascarado
Faz-se necessário retomar o capítulo da demonologia: este tema de Paulo VI teve uma espécie de precedente na história do Papado contemporâneo.
Era um dia de dezembro de 1884 ou de janeiro de 1885, no Vaticano, na capela privada de Leão XIII. Depois de ter celebrado a missa, o Papa, como de costume, assistiu a uma segunda missa. Lá pelo fim, viram-no levantar a cabeça de repente e olhar fixamente para o altar, acima do tabernáculo. O seu rosto empalideceu e as suas feições tornaram-se tensas. Finda a missa, levantou-se e, ainda sob os efeitos de uma intensa emoção, dirigiu-se para o seu quarto de trabalho. Um dos prelados que o rodeavam perguntou-lhe:
– Santo Padre, sente-se cansado? Precisa de alguma coisa?
– Não – respondeu Leão XIII-, não preciso de nada…
O Papa encerrou-se no seu escritório. Meia-hora mais tarde, mandou chamar o Secretário da Congregação dos Ritos. Estendeu-lhe um papel com um texto manuscrito e pediu-lhe que o mandasse imprimir e o enviasse aos bispos de todo o mundo.
Qual era o conteúdo desse papel? Uma oração ao Arcanjo São Miguel, composta pelo próprio Papa. Uma oração que os sacerdotes recitariam depois de cada missa rezada, ao pé do altar, após a Salve-Rainha já prescrita por Pio IX:
“São Miguel Arcanjo, defende-nos no combate, sede o nosso amparo contra a maldade e as ciladas do demônio. Instante e humildemente vos pedimos que Deus impere sobre ele. E vós, Príncipe da milícia celeste, com esse poder divino, precipitai no inferno Satanás e os outros espíritos malignos que vagueiam pelo mundo para a perdição das almas”.
Leão XIII confidenciou mais tarde a um dos seus secretários, mons. Rinaldo Angeli, que durante a missa tinha visto uma nuvem de demônios que se lançavam contra a Cidade Eterna para atacá-la. Daí a sua decisão do mobilizar São Miguel Arcanjo e as milícias celestes para que defendessem a Igreja contra Satanás e os seus exércitos, e, de modo particular, para que se resolvesse o que então se chamava ‘a questão romana'[3]” (pp. 8-13).
2. Como um Cão preso por uma Corrente
2.1. Nunca sem Luz verde
“É significativo que Deus estabeleça cuidadosamente os limites dos poderes que concede a Satanás. Não lhe dá uma ‘luz verde’ incondicional. Assim como o Criador põe limites ao fluxo do mar enfurecido – Não irás mais longe […], aqui se quebrará o orgulho das tuas ondas (Jó 38,11) -, do mesmo modo impõe limites ao ódio e à inveja de Satanás.
O Evangelho de São Mateus revela-nos que os demônios têm necessidade de ‘luz verde’ mesmo para uma operação sem maiores conseqüências, ainda que insólita, como entrar num rebanho de porcos que pastam na terra dos gerasenos. Havia a uma certa distância um grande rebanho de porcos que pastava. E os demônios suplicaram a Jesus: ‘Se nos expulsas, envia-nos a esse rebanho de porcos’. ‘Ide’, disse-lhes Jesus. Saíram então e foram para os porcos, e eis que, do alto da escarpa, todo o rebanho se precipitou no mar; onde se afogou (Mt 8, 30-32).
O relato da Paixão apresenta-nos um exemplo dramático dos limites impostos por Deus ao poder do diabo sobre os Apóstolos. Satanás tinha pedido a Deus que o deixasse pôr à prova os Apóstolos, sacudindo-os como o agricultor sacode o trigo. O Senhor só aceita esse pedido em parte. Como explica Garrigou-Lagrange, ‘o Senhor permitiu a Satanás que joeirasse os Apóstolos como se joeira o trigo, mas pôs um limite. Quem Satanás desejava sobretudo fazer cair era Pedro, o chefe dos Apóstolos. Jesus conhecia o perigo que ameaçava Pedro. Não quis preservá-lo completamente, mas com a sua oração protegeu-lhe a fé: a do Apóstolo, portanto, não desfalecerá, e, quando se recuperar da sua conduta errônea, caber-lhe-á confirmar os seus irmãos’. Garrigou-Lagrange cita a profunda observação de um exegeta protestante: ‘Preservando Pedro, cuja ruína teria arrastado os demais Apóstolos, Jesus preservou-os a todos’. É assim que Deus, Senhor da História, sabe utilizar a malícia de Satanás para a construção da Igreja.
São Tomás de Aquino insiste muito neste ponto: o diabo não pode tentar os homens tanto quanto deseja; só pode atormentá-los na medida em que Deus o permite. Nem mais, nem menos!
O relato da Paixão apresenta outro exemplo da submissão do demônio às disposições da Providência. Depois de ter dito que, na Última Ceia, Satanás tinha entrado em Judas, São João cita estas palavras de Jesus ao traidor: O que tens a fazer; faze-o depressa! (Jo 13, 27). Pode-se expressar mais explicitamente o controle de Deus sobre as maquinações de Satanás presente em Judas? É verdade, como explicam os exegetas, que as palavras de Jesus não eqüivaleram a uma ordem. Também não eram um estímulo à traição. Expressavam simplesmente, numa linguagem rigorosa, uma autorização” (pp. 80s).
2.2. Pode ladrar, mas não morder
“São Paulo assegura-nos: Deus não permitirá que sejais tentados além do vosso poder de resistência, mas, junto com a tentação, dar-vos-á os meios para suportá-la e a força para vencê-la (1Cor 10,13).
Existem dois movimentos na raiz das tentações do diabo: o amor de Deus pelos homens e a odienta inveja de Satanás. Deus permite a tentação por amor, para dar à criatura humana a oportunidade de elevar-se até Ele por atos de virtude; o demônio desencadeia a tentação por ódio, para fazer cair o homem. Deus oferece ao homem uma ocasião de subir e Satanás utiliza essa mesma ocasião para fazê-lo cair. Assim, por uma misteriosa ordem de Deus, sem o saber, sem o querer, contra a sua vontade e contra as inclinações de todo o seu ser, Satanás contribui indireta, mas realmente, para a expansão do reino de Deus sobre a terra. Não é esta, aliás, a razão da sua presença entre os homens até o Juízo final, antes de ser precipitado nas profundezas do inferno?…
A um sacerdote da Missão, a quem Satanás tinha razões para odiar, São Vicente de Paulo escrevia: ‘O diabo pode ladrar, mas não pode morder; pode atemorizar-vos, mas não vos pode fazer mal. Isto eu vo-lo garanto diante de Deus, na presença de quem vos falo’.
Também Santa Teresa de Lisieux se servia dessa imagem para mostrar os limites do poder de Satanás: comparava o demônio a um grande cão malvado que nada pode contra uma criancinha subida aos ombros de seu pai.
A este respeito, pode ser útil recordar mais uma vez as seguintes verdades:
A primeira é que o poder do demônio, embora grande, não é absoluto: nunca, nem sequer nos casos de possessão, … ele tem acesso direto às potências propriamente espirituais do ser humano, isto é, à inteligência e à vontade. Ou seja, não pode nunca, em nenhuma hipótese, obrigar-nos a pecar. Só há pecado quando há consentimento da vontade, isto é, quando o ‘eu’ decide ceder à tentação. Nada, nem a duração nem a intensidade de uma tentação, pode causar diretamente – nem, por outro lado, ‘autorizar’ ou desculpar – o consentimento.
A segunda é que é essencial saber que sentir não é consentir. As imagens podem ser muito fortes ou vividas, e as emoções encontrarem-se num estado de tumulto intenso, mas não há pecado enquanto a vontade não disser “sim”. E isso sempre se sabe no recôndito da consciência (N. do E.)” (pp. 82s).
3. Exorcismo
O missivista, no caso, refere ter ouvido dizer que a Igreja aboliu os exorcismos ou as preces feitas para expulsar o Maligno detentor das faculdades de um ser humano. – Em resposta nada de melhor se pode fazer do que citar o atual Código de Direito Canônico, que, supondo a possibilidade de haver possessão diabólica, regulamenta a prática do exorcismo:
“Cânon 1172 – §1. Ninguém pode legitimamente fazer exorcismos em possessos a não ser que tenha obtido licença especial e expressa do Ordinário local.
§2. Essa licença seja concedida pelo Ordinário local somente a sacerdote que se distinga pela piedade, ciência, prudência e integridade de vida”.
Por conseguinte, a Igreja crê na eventualidade da possessão diabólica. Apenas deseja que se examine atentamente cada caso de pretensa possessão para não se confundir doença psíquica ou física com a ação do Maligno. Uma vez diagnosticada, com séria probabilidade, a possessão por sacerdotes e médicos, recorra-se ao Bispo local ou ao Prelado respectivo para lhe pedir que delegue um sacerdote exorcista.
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NOTAS:
[1] O Diabo, hoje. Tradução e notas de Emérico da Gama. – Ed. Quadrante, São Paulo, 1999, 130 x l90mm, 108 pp.
[2] A oportunidade de tratarmos deste assunto é-nos oferecida por um leitor, que escreve: “Devemos afirmar a real existência do demônio como entidade capaz de influir no cotidiano humano, ou seria o demônio mera abstração? Há teólogos que defendem de público que o demônio é mais uma abstração, sem expressão real na vida concreta do homem, enquanto outros defendem que o demônio está sempre à espreita, tentando influenciar o comportamento humano. Fato é que houve uma banalização histérica, anacrônica, e mesmo mal intencionada, do que seja demônio por parte de igrejas evangélicas, a níveis que deixam de ser casos de teologia para entrar no terreno da psiquiatria. A razão de estar buscando este esclarecimento vem da inevitável convivência com pessoas de outras designações cristãs: de vez em quando, em algum debate a questão do demônio na história humana é levantada, e eu me vejo diante de uma dúvida: qual seria a posição da doutrina católica a respeito”.
[3] Chamou-se ‘questão romana’ ao problema criado por ocasião da unificação italiana, que suprimiu os antigos Estados Pontifícios. Por um lado, o ministro Cavour, artífice da unificação, insistia em que Roma ‘necessariamente’ tinha de ser a capital da nova nação; por outro, como preservar neste caso a necessária liberdade e independência da Santa Sé e dos seus organismos? A dificuldade era especialmente aguda num momento em que muitos dos dirigentes da nova nação se proclamavam abertamente maçônicos e anticlericais e não escondiam a sua pretensão de imiscuir-se nos assuntos internos da Igreja, ou, se possível, de suprimi-la inteiramente. Depois de sessenta e oito anos (1861-1929) de gestões diplomáticas e de tentativas de entendimento fracassadas, chegou-se por fim à solução definitiva, por meio do Pacto do Latrão e da criação do Estado do Vaticano (N. do E.).