Bíblia: a autenticidade do texto bíblico hoje

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 228/1978)

Em síntese: O jornalista Paulo Francis publicou um artigo em “A Folha de São Paulo” de 8/08/78 em que diz que a abertura da Igreja efetuada pelos Papas João XXIII e Paulo VI levou os estudiosos a penetrar nos documentos básicos da Igreja (manuscritos do Novo Testamento), donde terão deduzido as conclusões mais revolucionárias possíveis a respeito de Jesus Cristo e dos textos originais dos Evangelhos e de São Paulo.

Ora esta asserção é de todo infundada, revelando total ignorância do autor a propósito do assunto. Os antigos manuscritos do Novo Testamento não estão encerrados no Vaticano, mas esparsos por bibliotecas do mundo inteiro, inclusive em Moscou e Leningrado. Cai assim por terra toda a construção filosófico-religiosa de Paulo Francis. As páginas subsequentes analisam, tópico por tópico, os dizeres do jornalista atinentes ao Novo Testamento.

***

Comentário: O falecimento de dois Pontífices em meses sucessivos deu ocasião a que a imprensa e a opinião pública dedicassem grande atenção à vida da Igreja dos nossos tempos. Os comentários tecidos pelos repórteres e vaticanistas a respeito dos Cardeais papabili foram os mais estranhos e diversificados; não faltou a consulta ao computador! Era evidente que os comentários estavam interessados em sensacionalismo mais do que na difusão da verdade pura e simples. Dentre as notícias mais falsas que nos chegaram, está um artigo assinado pelo jornalista Paulo Francis de Nova York e publicado no jornal «A Folha de São Paulo» de 8/08/78 com o título «A espera de um sucessor de esquerda».

Dessa coluna de periódico, toda caracterizada por frases genéricas e infundadas, destacaremos um inciso, que, por suas surpreendentes afirmativas, merece especial atenção:

“Um dos resultados da abertura de João XXIII e Paulo VI é pouquíssimo conhecido do grande público. O acesso de eruditos modernos aos textos básicos da Igreja, examinados cientificamente, revela coisas espantosas que estarreceriam os fiéis, se as conhecessem. Cito as menos indolores: o primeiro Evangelho de São Marcos foi escrito em 112 A. D.

O aramaico de Marcos é de semi-analfabeto e apresenta uma versão totalmente falsa da Palestina no tempo em que Jesus teria vivido (que ele descreve pastoral e idílica. Havia uma revolução por semana). São Paulo apóstolo, o verdadeiro fundador da Igreja, jamais usa (nos originais não adulterados por diligentes monges da Idade Média) a palavra ‘Jesus’; fala de ‘Cristo’, ‘Chresto’ no original, palavra vaga, ‘o ungido’ e, mais interessante, existiam seguidores de ‘Chresto’ com o sobrenome de ‘Chresto’ em Roma imperial, entre os escravos, antes do nascimento de Jesus Cristo. Não irei adiante. Adiro à conspiração de silêncio dos eruditos”.

Examinemos de perto os principais tópicos do trecho transcrito:

1. As pretensas descobertas

O articulista insinua que a renovação da Igreja apregoada por João XXIII e Paulo VI abriu aos eruditos os textos básicos da Igreja, levando aqueles a espantosas conclusões relativas à origem dos Evangelhos. Ora isto é totalmente falso a mais de um título:

1) O autor parece julgar que os mais antigos manuscritos dos Evangelhos e das cartas de São Paulo estavam encerrados nos arquivos do Vaticano; uma vez propostos ao estudo dos eruditos, estes teriam chegado a teses totalmente diversas daquelas que comumente se ensinavam sobre o surto e o conteúdo dos escritos do Novo Testamento.

Ora, para que o leitor possa averiguar a inverdade destas suposições e afirmações, basta-lhe abrir qualquer manual (católico ou não católico) de Introdução ao Novo Testamento. Verificará que os manuscritos do Novo Testamento estão esparsos por bibliotecas de diversas partes do mundo, só havendo um código, datado do século IV, no Vaticano.

Tenha-se em vista a relação abaixo:

a) Os papiros são os mais antigos testemunhos do texto do Novo Testamento [1].
Acham-se assim distribuídos pelo mundo:

Número do papiro, Conteúdo, Lugar onde é guardado, Data [2] (séc.)

p1 Evangelhos Philadelphia (U.S.A.) III
p2 Evangelhos Florença VI
p3 Evangelhos Viena (Austria) VI/VII
p4 Evangelhos Paris III
p5 Evangelhos Londres III
p6 Evangelhos Estrasburgo IV
p8 Atos Berlim IV

Em suma, existem 76 papiros do texto original do Novo Testamento, dos quais nenhum é guardado no Vaticano. Acham-se ainda em Leningrado (p11, p68), no Cairo (p15, p16), em Oxford (p19), em Cambridge (p27), em Heidelberg (p40), em Nova York (p59, p60, p61), em Gênova (p72, p74, p75) …

Desses papiros alguns datam de cerca do ano 200, o que é extremamente importante, desde que se leve em conta que o Evangelho de São João foi escrito por volta do ano 100. São, por exemplo, do ano 200 aproximadamente o papiro 46 (Chester Beatty) guardado em Dublin, o papiro 64 (Oxford e Barcelona), o papiro 66 (Bodmer II) guardado em Gênova, o papiro 67, guardado em Barcelona.

b) Os códices unciais são verdadeiros livros de grande formato, escritos em caracteres maiúsculos (unciais) [3]. Eis uma amostragem de sua distribuição:

Códice, Conteúdo, Lugar, Onde é guardado, Data (séc.)
Aleph 01 N. T. Londres IV
(Sinaítico)

A 02
(Alexandrino) N. T. Londres V

B 03
(Vaticano) N. T. (menos
o Apocalipse) Roma IV

C 04
(Efrém rescrito) N. T. Paris V

D 05 Evangelhos Cambridge VI
(Beza) Atos

D 06
(Claromontano) Paulo Paris VI

Em suma, há mais de duzentos códices unciais, espalhados por Moscou (K 018; V 031, 036), Utrecht (F 09), Leningrado (P 025), Washington (W 032), Monte Athos (H 015, 044), São Galo (037) …

Destes fatos deduz-se que a pesquisa e o estudo dos manuscritos do Novo Testamento não dependem da abertura ou concessão do Vaticano, mas são algo que sempre se realizou independentemente de autorização da Igreja Católica. Os manuscritos bíblicos são patrimônio da humanidade; muitos foram outrora levados do Oriente, por estudiosos e outros interessados, para bibliotecas de países ocidentais, onde se acham guardados até hoje. Vê-se, pois, que o jornalista Paulo Francis não tem fundamento para fazer as afirmações atrás mencionadas. A imagem que dos Evangelhos têm os exegetas, em nada foi modificada por pretensa franquia de arquivos do Vaticano.

2. O Evangelho segundo Marcos

O autor afirma: «O primeiro Evangelho de São Marcos foi escrito em 112 A. D.
O aramaico de Marcos é de semi-analfabeto».

Paulo Francis caiu em graves equívocos:

a) São Marcos não escreveu em aramaico, mas em grego, muito provavelmente quando estava na cidade de Roma, após ter acompanhado São Pedro em sua pregação.

Eis o testemunho dado por Papias, bispo de Hierápolis, em cerca de 130:

“Marcos, intérprete de Pedro, escreveu com exatidão, mas sem ordem, tudo aquilo que recordava das palavras e das ações do Senhor. Não tinha ouvido nem seguido o Senhor, mas… Pedro… Tinha só esta preocupação: nada negligenciar de tudo o que ouvira, e não dizer mentira” (Apud Eusébio, “Historia Eclesiástica” 111 39,15).

S. Ireneu († 202 aproximadamente), bispo de Lião (Gá-lia), deixou-nos o seguinte depoimento:

“Mateus compôs o Evangelho para os hebreus na língua deles, enquanto Pedro e Paulo pregavam o Evangelho em Roma e fundavam a Igreja. Após a morte deles, Marcos, discípulo e intérprete de Pedro, também nos transmitiu tudo o que fora objeto da pregação de Pedro” (“Adversus haereses” III 1,1).

Os mais antigos prólogos latinos dos manuscritos dos Evangelhos, que datam provavelmente do século II, confirmam a notícia de Ireneu:

“Após a morte de Pedro, Marcos escreveu este Evangelho quando se encontrava na Itália” (cf. de Bruyne, “Les plus anciens prologues latins des Evangiles”, em “Revue Bénédictine” 40, 1928, pp. 193-214).

Está, pois, evidente que Paulo Francis confundiu Marcos com Mateus. Este, sim, (e não Marcos) escreveu em aramaico a primeira redação do seu Evangelho, como atestavam S. Ireneu, atrás citado, e Papias no texto abaixo:

“Mateus, por sua parte, pôs em ordem os logia (dizeres) na língua hebraica, e cada um depois os traduziu como pôde” (Apud Eusébio, “Historia Ecclesiastica” III 39,16).

O texto aramaico de S. Mateus deve ter sido escrito por volta do ano 50 (antes do de Marcos, portanto!). Perdeu-se, porém, pois em 70 os judeus foram expulsos da Palestina e o texto aramaico do Evangelho foi caindo em desuso. Ficou-nos, porém, uma tradução grega do mesmo, ampliada e retocada, que data de 80 aproximadamente. Em hipótese nenhuma, porém, o texto de Mateus ou o de Marcos poderá ser atribuído ao ano de 112, como pretende Paulo Francis. Sabe-se hoje que o último escrito do Novo Testamento, na ordem cronológica, é o Evangelho segundo São João, que data do ano 100 aproximadamente. Esta tese foi brilhantemente confirmada quando em 1935 se encontrou no Egito um fragmento do texto de São João (19,31-34.37-39). Este papiro deve datar de 130 mais ou menos. Isto quer dizer que a redação do Evangelho terá ocorrido alguns decênios antes de 130, ou seja, em 100 mais ou menos.

Não há dúvida, o Evangelho segundo Marcos foi escrito em linguagem grega simples e tosca. Quanto à notícia, transmitida por Paulo Francis, de que na Palestina havia uma revolução por semana, é exagerada (como exagerada é a qualificação que o autor atribui à linguagem de Marcos: seria de um «semi-analfabeto»). Na verdade, o texto de Marcos não exclui agitações políticas no tempo de Jesus, mas simplesmente não as refere, porque não pretende ser uma historia da Palestina.

Passemos agora a

3. As cartas de São Paulo

1. O jornalista julga que os «originais das cartas de São Paulo foram adulterados por diligentes monges da Idade Média» …

O absurdo desta afirmação se evidencia desde que se tome em mãos uma edição critica do Novo Testamento. Os paleógrafos e filólogos, cristãos e liberais, têm-se dedicado ao estudo dos manuscritos do Novo Testamento nas mais diversas partes do mundo; em conseqüência, têm publicado edições do Novo Testamento grego que procuram chegar a uma imagem tão fiel quanto possível dos autógrafos paulinos; os resultados assim obtidos são dignos de elogios. Tenha-se em vista, entre todas, a edição intitulada «The Greek New Testament» aos cuidados de Kurt Aland, Matthew Black, Carlo M. Martini, Bruce M. Mezger e Allen Wikgren, em colaboração com o «Institute for New Testament Textual Reseach», sob o patrocínio de «United Bible Societies». Este texto foi publicado simultaneamente em Nova Iorque, Lonres, Edimburgo, Amsterdam e Stuttgart. Ora nenhum crítico conhece as mencionadas «adulterações do texto devidas a diligentes monges da Idade Média» (donde terá Paulo Francis haurido tal notícia?). É, antes, na base dos mais antigos códices que se edita hoje o texto grego das cartas paulinas, sem hesitações sobre a autenticidade global de tal texto.

2. São Paulo não foi o fundador da Igreja ou do Cristianismo, mas foi, sim, o apóstolo dos gentios, ou seja, o portador da Boa Nova aos povos não judeus. Foi ele quem tornou clara a tese de que a Lei de Moisés era um pedagogo que encerrara a sua missão logo que Cristo viera; por conseguinte, os gentios não estariam obrigados à circuncisão e às práticas rituais da Torah (cf. Gl 3,23-29). – Esta atitude de São Paulo não habilita o estudioso a dizer que São Paulo foi «o verdadeiro fundador da Igreja».

3. Quanto ao nome de Jesus, ocorre simplesmente sem o aposto «Senhor» ou «Cristo» uma dezena de vezes nas caras paulinas, conforme os melhores manuscritos. Assim, por exemplo, em

1Ts 4,14: «Jesus morto e ressuscitado»;
Gl 6,16-17: «Os estigmas de Jesus»;
2Cor 4,10: «…traços da morte de Jesus»;
2Cor 4,5: « … vossos servos por causa de Jesus»;
2Cor 11,4: « Se alguém vos prega um Jesus diferente daquele que vos pregamos… »;
Ef 4,21: « … a verdade em Jesus»;
1Cor 12,3: «Ninguém pode dizer ‘Jesus é Senhor’ a não ser no Espírito Santo».
Quanto às expressões «Senhor Jesus» ou «Jesus Cristo», são assaz freqüentes no epistolário paulino, como se depreende de uma leitura sumária do mesmo.

4. Paulo Francis diz que, «antes do nascimento de Cristo, existiam seguidores de Chresto… em Roma imperial, entre os escravos».

Eis outra noticia que não se encontra nos autênticos documentos dos historiadores romanos (Suetônio, Tácito…) e que resulta de outra confusão.

Com efeito. Suetônio, por volta de 120, relatava em sua biografia de Cláudio que o Imperador «expulsara de Roma os judeus, que se achavam em constantes agitações por causa de Chresto» («Vita Claudii» XXV). Neste texto, a palavra «Chresto» equivale ao vocábulo grego «Christós», que corresponde ao hebraico «Messias». Suetônio assim alude aos tu-multos que ocorriam entre judeus e judeo-cristãos a respeito de Cristo em Roma (Trastevere). Havia, pois, seguidores de Jesus em Roma, na classe dos escravos (os judeus em Roma eram antigos escravos levados para aquela cidade por Pom-peu em 63 a. C .) . Todavia esses seguidores de Chresto eram posteriores a Jesus Cristo (e não anteriores, como supõe Paulo Francis); na verdade, o Imperador Cláudio reinou de 41 a 54 d. C. e realizou o referido ato de expulsão em 49 d. C. (cf. At 18,2).

Interessa-nos agora dizer algo sobre a transmissão do texto original do Novo Testamento até nossos dias.

4. A transmissão do texto do N. T. através dos séculos

A crítica bíblica hoje em dia não questiona a autenticidade do texto do Novo Testamento comumente divulgado. Não há dúvida de que se tem, através do confronto de manuscritos antigos, o texto mesmo que os Apóstolos escreveram em sua substância. É o que havemos de averiguar a seguir.

4.1. As testemunhas do texto original

Verdade é que os autógrafos, escritos no século I, se perderam, visto que eram escritos em material frágil. Todavia há cópias desses documentos a partir do século II, como é o caso do fragmento papiráceo de Jo 19,31-34.37-39, que se encontra na Biblioteca Rylands de Manchester (Inglaterra) sob a sigla P. Ryl. Gk. 4.S7. Outros papiros datam do séc. III, como são os da coleção Chester Beatty, restos de doze códices, que contêm os livros sapienciais e proféticos do Antigo Testamento e o Novo Testamento inteiro. Os papiros da coleção de Bodmer, referentes ao Novo Testamento e aos apócrifos, são dos séculos II e III. Em suma, conhecem-se hoje cerca de 5.236 manuscritos do texto original grego do Novo Testamento, assim distribuídos:

Papiros …………………….. 81

Códices maiúsculos…….. 266

Códices minúsculos…….. 2.754

Lecionários…………………. 2.135

Notemos que os códices maiúsculos são geralmente mais antigos do que os minúsculos. Quanto aos lecionários, são coletâneas de textos bíblicos destinados à leitura na Sagrada Liturgia.

Quem compara esse tipo de testemunhas do texto original do Novo Testamento com o das obras dos clássicos latinos e gregos, verifica como realmente é privilegiada a documentação hoje existente para se reconstituir a face autêntica do Novo Testamento. Eis alguns dados a propósito:

Época, Intervalo entre o escritor e a primeira cópia de suas obras:

Virgílio 19 a.C. 350 anos
Tito Livio 17 d.C. 500 anos
Horácio 8 a.C. 900 anos
Julio César 44 a.C. 900 anos
Cornélio Nepos 32 a.C. 1200 anos
Platão 347 a.C. 1300 anos
Tucídides 395 a.C. 1300 anos
Eurípides 407/6 a.C. 1600 anos

Em síntese, o número de testemunhas do texto grego do Novo Testamento (mais de 5.200!) e a proximidade das mesmas em relação aos autógrafos são algo de inédito na transmissão de textos antigos, máxime se se leva em conta a precária transmissão dos escritos dos clássicos gregos e latinos.

Perguntar-se-á, porém: os copistas não introduziram falhas decisivas no texto do Novo Testamento tantas e tantas vezes copiado à mão? – É o que examinaremos.

4.2. E as variantes?

Não há dúvida, numerosas são as variantes do texto grego do Novo Testamento, as quais se devem a erros de copistas, tentativas, da parte destes, de corrigir o texto original que lhes parecesse obscuro, interferência de hereges desejosos de adaptar o texto as suas concepções, deterioração de manuscritos, etc.

Contam-se mesmo cerca de 200.000 variantes do texto grego do Novo Testamento. Todavia pode-se dizer que 7/8 deste são criticamente seguros; na oitava parte restante, as variantes consistem em diferenças de ortografia, diferenças gramaticais, diferenças na ordem das palavras, troca de partículas, omissão ou colocação de artigo…

Assim, por exemplo, em At 5,32, encontram-se as seguintes variantes:

«Nós somos testemunhas… »
«Somos testemunhas… »
«Testemunhas somos… »
«Somos dele testemunhas… »
«Nele somos testemunhas… »

Em Lc 13,27 tem-se:

«E falará dizendo-vos… »
ou «E falará dizendo… »
ou «E falará: ‘Digo-vos…’ »
ou «E falará: ‘Em verdade, digo-vos…’ »
ou «Falará a vós… »

Em 1Cor 12,9 acha-se:

«Em um só Espírito… »
ou «No mesmo Espírito… »
ou «No Espírito… »

Em Ap 5,1 lê-se:

«Livro escrito por dentro e por fora»
ou «Livro escrito por fora e por dentro»
ou «Livro escrito por dentro e na frente»
ou «Livro escrito por dentro, por fora e na frente».

As variantes mencionadas, como se vê, não alteram propriamente o sentido do texto. Há, porém, 200 variantes do Novo Testamento que chegam a alterar o sentido, não, porém, em matéria de fé. Eis alguns exemplos:

Rm 12,11: «Servi ao Senhor (kyriou) »
ou «Servi ao tempo (kairooi) »

1Cor 2,1: «Anuncio-vos o mistério (mysterion) de Deus»
ou «Anuncio-vos o testemunho (martyrion) de Deus»

At 12,25: «Barnabé e Paulo voltaram para Jerusalém»
ou « … voltaram de Jerusalém»
ou « … voltaram para Antioquia»
ou « … voltaram de Jerusalém para Antioquia»
ou « .. voltaram para Jerusalém e para Antioquia».

Apenas quinze variantes têm certa importância para a doutrina da fé. Eis as principais:

1Cor 15,51: «Nem todos morreremos, mas todos seremos transformados»
ou «Todos morreremos, mas nem todos seremos transformados»
ou «Ressuscitaremos, mas nem todos seremos transformados».

Em tais casos, deve-se procurar ponderar a autoridade e credibilidade dos códices e autores que atestam cada variante, e seguir aquela que mais abalizada pareça. No caso, é inegavelmente a primeira que merece a preferência; as outras se explicam pelo fato de que os copistas verificavam que todos os homens morrem, mas nem todos parecem ter levado vida reta e digna, merecedora de glorificação final. São Paulo tinha em vista os que estiverem vivos no dia da segunda vinda de Cristo (ele e muitos de seus leitores julgavam que a presenciariam, sem passar pela morte). Mais: quando o Apóstolo fala dos novíssimos, só costuma considerar a sorte dos bons ou a glorificação eterna. – São estes elementos que explicam tenha o Apóstolo escrito como refere a primeira variante atrás mencionada.

Mc 1,1: «Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus».

Há códices que omitem o aposto «Filho de Deus». A edição de Kurt Aland a insere entre colchetes. Está fundada em bons manuscritos, e costuma ser aceita pelos editores do Novo Testamento.

Mt 1,16: « … José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado Cristo»

ou «José, ao qual estava esposada a Virgem Maria, gerou Jesus, que é chamado Cristo».

Na verdade, a primeira variante é incomparavelmente mais sólida e fidedigna do que a outra. Em consequência, nenhuma edição do Novo Testamento (mesmo as protestantes) refere a segunda variante acima.

Lc 22,19b-20: «… que é entregue por vós. Fazei isto em memória de mim. Da mesma maneira, tomou o cálice depois que ceou, dizendo: `Este cálice é a nova aliança em meu sangue, o qual é derramado por vós’».

Alguns códices omitem estes dizeres, porque parecem duplicar a notícia da entrega do cálice aos discípulos; cf. Lc 22,17: «Tomando o cálice, deu graças e disse: `Tomai-o e distribui-o entre vós’ ». Todavia esta primeira entrega do cálice corresponde a um dos cálices rituais da ceia pascal, que Jesus quis celebrar de acordo com os costumes do seu povo; não se tratava do cálice eucarístico, que realmente só ocorre em 22, 20, quando o Senhor menciona o seu sangue e a nova aliança. De resto, os manuscritos abonam os versos 19b-20 sem deixar margem a hesitação. O motivo por que alguns copistas eliminaram tais versículos, deve ter sido, ao menos em parte, o uso litúrgico, que só conhece um cálice na ceia eucarística (os copistas omitiram então, erroneamente, a menção do segundo cálice, que é precisamente o cálice eucarístico).

Lc 22,43s: «Apareceu-lhe um anjo do céu reconfortando-o. E, entrando em agonia, orou com mais instância. E o seu suor se tornou como gotas de sangue que corria por terra».

Este texto foi muito controvertido entre os escritores e copistas dos primeiros séculos, pois tanto acentua a humanidade de Cristo que parece reduzir Jesus a mero homem.

Todavia há bom fundamento na tradição dos manuscritos e dos antigos escritores para guardar-se a autenticidade desses versículos, que parecem ter sido omitidos por copistas desejosos de tirar argumento aos que pretendiam negar a Divindade de Jesus baseados em tal passagem do Evangelho. Na verdade, os dizeres em foco não depõem contra a Divindade de Cristo, mas evidenciam que o Filho de Deus quis em tudo assumir a condição humana, com todos os seus afetos naturais e sadios, ficando apenas imune de pecado.

Jo 1,18: «O Unigênito Deus, que está no seio do Pai, revelou-O (= revelou Deus Pai) ».

Alguns códices omitem «Deus» após «Unigênito». Muita mais abalizada, porém, é a variante «Unigênito Deus».

Os outros casos de textos cujas variantes tenham significado teológico, são muito menos significativos.

Vê-se, pois, que somente quem não conhece o assunto pode escrever frases do teor daquelas oriundas da pena do jornalista Paulo Francis. Nenhum estudioso abalizado levaria a sério o que disse Francis … Por conseguinte, nem o grande público lhe há de atribuir importância!

Bibliografia

Kurt Aland e outros, The Greek New Testament Stuttgart 1968.

Josef Scharbert, O mundo da Biblia. Petrópolis 1965.
Domenico Grasso, O problema de Cristo. São Paulo 1967.

R. Schnackenburg e Fr. J. Schierse, Quem foi Jesus de Nazaré? Petrópolis 1973.

Lucien Cerfaux, Cristo na teologia de São Paulo. São Paulo 1977.

Vittorio Messori, Hipóteses sobre Jesus. São Paulo 1978.

T. Baliarini, St. Virgulin e St. Lyonnet, Introdução à Biblia, vol. IV: Os Evangelhos. Petrópolis 1972.

Frederico Dattler, Eu Paulo. Petrópolis 1974.

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NOTAS:
[1] Sabemos que os autógrafos, tais como saíram das mãos dos escritores sagrados (Mateus, Marcos, Paulo…), se perderam, dada a fragilidade do material utilizado. Todavia ficaram-nos cópias antigas desses autógrafos, que são os papiros, os códices unciais (escritos em caracteres maiúsculos sobre pergaminho), os códices minúsculos (escritos tardiamente em caracteres minúsculos) e os lecionários (antologias de textos para uso litúrgico).
[2] Indica-se a data aproximada em que cada papiro teve origem ou em que foi feita a cópia do texto bíblico apresentado pelo papiro respectivo.
[3] Uncial vem de uncla, polegada (em latim). A designação supõe exageradamente que as letras de tais códices tinham a dimensão de uma polegada.