Bíblia: a bíblia na linguagem de hoje

(Revista Pergunte e Responderemos PR 326/1989)Em síntese: A “Bíblia na Linguagem de Hoje” é uma tentativa de traduzir em linguagem popular o texto sagrado para torná-lo acessível ao grande público.

A intenção dos tradutores é louvável, mas a obra é infeliz, pois, mais do que uma tradução, fizeram uma interpretação, por vezes nitidamente protestante. Além do quê, a adaptação do texto sagrado ao vocabulário popular faz que o novo texto deixe de apresentar termos bíblicos ricos de conotações e temas teológicos como ‘Aliança, justificação, depósito, mistério…”, assim se empalidece a mensagem bíblica em vez de ser levada ao povo simples. A solução para o problema da difusão da Bíblia está, antes, em conservar o vocabulário típico e rico do texto sagrado, munindo-o, porém, de notas explicativas em rodapé, a fim de que o leitor não iniciado cresça em cultura bíblica em vez de ser deixado na sua exígua cultura, com empobrecimento da mensagem sagrada.

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A Sociedade Bíblica do Brasil, de orientação protestante, editou em 1988 a Bíblia completa “na linguagem de hoje”[1]. Até aquela. data só existia o Novo Testamento em tal estilo. O trabalho conta com a colaboração das Sociedades Bíblicas Unidas e tem seus paralelos em outras línguas modernas, sem incluir os escritos deuterocanônicos (Tobias, Judite, Sabedoria, Baruque, Eclesiástico, 1/2 Macabeus, Ester 10,4-16,24; Daniel 3,24-90 13-14), que o catálogo católico considera Palavra de Deus ou partes integrantes da S. Escritura (o que é pouco atraente para os fiéis católicos). – Sem dúvida, toda tradução da Bíblia é importante; daí a pergunta espontânea: que valor tem essa nova tradução?

AVALIAÇÃO

Traduzir é sempre correr o risco de perder algo da força e do colorido do texto original. Isto não quer dizer que não se deva traduzir, mas, sim, que se há de traduzir levando em conta tal risco e procurando minorá-lo tanto quanto possível. Esse risco tem conseqüências especialmente sérias quando se quer verter a Bíblia fugindo intencionalmente da sua nomenclatura original e típica, a título de que é arcaica ou ininteligível ao homem de hoje; consequentemente utiliza-se um vocabulário tido como mais moderno e compreensível, mas certamente distante do teor e da pujança dos termos originais. Aos poucos, e insensivelmente, vai-se escrevendo um livro diferente ou uma obra de leitura fácil e agradável, mas incapaz de transmitir toda a riqueza da mensagem nativa.

O problema de tornar a Bíblia acessível à compreensão do grande público não se resolve pela adaptação do vocabulário típico (e, indiretamente, do teor característico) da Bíblia ao linguajar (e, consequentemente, ao pensar) do povo simples, mas soluciona-se, antes, pela elevação do nível de compreensão dos leitores ao nível de expressão e pensamento do texto sagrado. O grande público só poderá lucrar se se lhe acrescentar algo em matéria de cultura bíblica, em vez de ser deixado na sua exígua cultura religiosa.

Praticamente isto significa que uma boa tradução da Bíblia não se deve furtar ao emprego de termos típicos como “aliança, justificação, parábolas, carne e sangue…”, mas, respeitando-os, o tradutor deverá explicar o seu sentido em notas de rodapé; assim o texto guardará as suas feições características semitas ou helenistas e, não obstante, se tornará inteligível.

Em particular, uma das razões pelas quais é indispensável guardar o vocabulário típico da Bíblia, é a seguinte: muitos termos bíblicos têm sua história, suas conotações, suas assonâncias na cultura antiga (hebraica, aramaica ou grega); consequentemente, se se trocam tais termos por outros, pode-se perder a noção da riqueza e das implicações semânticas de tais vocábulos.

Passemos agora a exemplos que ilustrarão quanto dissemos e que têm sua ocorrência na “Bíblia na Linguagem de Hoje”.

1. Tradição

Tradição tem seu equivalente literal ou semântico no grego pará-do-sis, que significa “dar ou passar adiante”. O vocábulo no Novo Testamento supõe a transmissão de uma doutrina de geração em geração dentro de um clima de respeito e veneração que os antigos dedicavam à Palavra de Deus ou ao depósito (parathéke) sagrado (ver subtítulo seguinte).

Ora a BLH troca tradições por outros termos:

1Ts 2,5: “Fiquem firmes e guardem aquelas verdades que ensinamos a vocês nas nossas mensagens e nas nossas cartas”. Literalmente dever-se-ia dizer em absoluta fidelidade ao texto e sem prejuízo para a clareza: “Permanecei firmes e guardai as tradições (paradóseis, em grego) que recebestes, seja de viva voz, seja por carta
nossa”.

Segundo a versão da BLH, perde-se a consciência de que as “verdades ensinadas por S. Paulo” são verdades provenientes de fonte mais remota. Além do quê, a palavra mensagens é mais genérica do que “ensinamentos de viva voz”; dir-se-ia que os tradutores quiseram evitar a recomendação que São Paulo faz da tradição oral, rejeitada pelos protestantes.

1 Cor 11,2: “Eu os elogio porque… vocês seguem as instruções que lhes entreguei”. Literalmente dever-se-ia ler, sem detrimento para a clareza do texto: “Eu vos louvo por guardardes as tradições (paradóseis) tais como eu vo-las entreguei”.

Como dito, a intenção de evitar a palavra “tradição, tradições” quando o Apóstolo a recomenda, deve-se ao fato de que os protestantes rejeitam a tradição divino-apostólica ou as doutrinas que nos foram transmitidas por via meramente oral.

2. Depósito.

Esta palavra corresponde ao grego parathéke, que significava um bem a ser guardado com zelo e honradez; não se tolerava qualquer infidelidade ou violação da confiança da parte do depositário. Ora, quando São Paulo se refere à doutrina cristã como parathéke, ele quer incutir essa inviolabilidade devida ao ensinamento de Jesus transmitido pelos Apóstolos. Tal conotação, porém, é enfraquecida, caso se substitua parathéke, como faz a BLH:

2Tm 1,14: “Guarde as boas coisas que foram entregues a você” em vez de: “Guarda o bom depósito (parathéken)”.

1Tm 6,20: “Timóteo, guarde bem o que lhe foi entregue para cuidar”, em vez de: “Timóteo, guarda o depósito (parathéken)”.

2Tm 1,12: “Estou certo de que ele (o Senhor) é poderoso para guardar até aquele dia aquilo que me confiou”, em vez de: “Estou certo de que Ele tem poder para guardar o meu depósito (parathéken) até aquele dia”.

3. Justo, justificar, justificação

“Justo”, na linguagem bíblica, é o homem reto, identificado com o plano de Deus. “Justificar” significa “fazer reto ou amigo de Deus”. O verbo se prende também ao substantivo “justiça” (dikaiosyne, em grego; sedéq, se-daqáh, em hebraico), que é amplo e rico em significado tanto no Antigo co-mo no Novo Testamento[2]. É, pois, insubstituível, dados os matizes que tal palavra apresenta e que devem ser levados em conta por quem deseje entender bem a Bíblia. Ora a BLH omite os vocábulos”justificar” e “justiça”, como se vê nos textos abaixo:

Rm 3,20-22: “Ninguém é aceito por Deus por fazer o que a Lei manda… Deus já mostrou a maneira como aceita as pessoas, e esta aceitação não tem nada a ver com a Lei… Deus aceita as pessoas por meio da f锑 em lugar de: “Diante dele ninguém será justificado pelas obras da Lei… Agora, porém, se manifestou a justiça de Deus, … justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo”. Ver Rm 3,28.30; 4,2.3.5…

De modo especial, a BLH modifica o sentido do texto original em Rm 1,17b; GI 3,11 b; Hb 10,38, em que se encontra a citação de Hab 2,4: “O justo viverá pela fé (ho díkaios ek písteos zésetai)”. Tal versículo em que díkaios é substantivo, vem assim traduzido pela BLH:

Rm 1,17b: “Viverá aquele que, por meio da fé, é aceito por Deus”.

Gl 3,11 b: “Viverá aquele que, por meio da fé, é aceito por Deus”.

Hb 11,38: “O meu povo que é correto, será fiel a mim e viverá”.

A primeira forma de traduzir distorce o texto, pois faz do substantivo díkaios (justo) uma forma verbal passiva: é aceito (o que seria dikaioutai no presente ou dedikaioutai no perfeito, em grego). Transformando o substantivo em verbo, o tradutor ligou-o com o complemento pela fé, de modo a exprimir a doutrina luterana (protestante) da justificação pela fé apenas (sola fides, somente a fé).[3]

Quanto à tradução de Hb 10,38, difere da de Rm 1,17b e Gl 3,11b, embora o texto grego citado seja o mesmo; é menos protestante do que a tradução de Rm 1,17b e G13,11 b, mas vem a ser uma interpretação mais do que uma simples tradução.

4. Primeiro filho

Em Lc 2,7 lê-se que Maria deu à luz o seu protótokon. A primeira vista, este vocábulo se traduz por primogênito; leve-se em conta, porém, que primogênito, no linguajar semita e bíblico, equivale muitas vezes a “unigêni-to” e “bem-amado”, pois o primogênito é, durante algum tempo, o único filho e aquele que concentra todo o amor de seus pais. Tenham-se em vista, por exemplo, os dizeres de Zc 12,11

“Quanto àquele que transpassaram, chorá-lo-ão como se chora um filho unigênito; chorá-lo-ão amargamente como se chora um primogênito”.

Mesmo fora da terra de Israel, podia-se chamar primogênito o filho que não tivesse irmão nem irmã mais jovem; é o que atesta uma inscrição sepulcral judaica datada de 5 a.C. e descoberta em Tell el-Jedouhieh (Egito) no ano de 1922; lê-se aí que uma jovem mulher chamada Arsinoé morreu “nas dores do parto do seu filho primogênito”.

Ora a BLH, traduzindo protótokon por primeiro filho, já tira ao leitor brasileiro a possibilidade de perceber a densidade e as peculiaridades de significado do linguajar semita. Com efeito; “primeiro filho”, em português, insinua “segundo, terceiro… filhos”, como os protestantes querem que tenha havido no caso de Maria e José (ao contrário do que ensina a Tradição cristã até hoje). No vocabulário hebraico suposto pelos evangelistas, o primogênito é aquele antes do qual não houve outro (é por isto o bem-amado), mas não é necessariamente aquele após o qual houve outros.

5. Aliança

Aliança é palavra que não existe em toda a tradução da BLH. Corresponde ao vocábulo hebraico berith e ao grego diathéke. Aliança é uma das palavras mais significativas da linguagem bíblica; por isto é objeto de artigos e livros em profusão, que explanam a teologia da aliança. Ora não se entende que a BLH sonegue ao leitor esse vocábulo, substituindo-o por acor-do; especialmente grave é a falta de tal termo em Ex 24,8; Gn 17,13; Is 42, 6; Mt 26,28; 1Cor 11,25…

Apenas em 2Cor 3,14 o texto da BLH traduz palaiá diathéke por Antigo Testamento, provavelmente porque os tradutores perceberam quão inadequado e empobrecedor seria falar de Antigo Acordo.

6. Mistério

Mystérion é outro termo denso no vocabulário bíblico. Era utilizado pelos gregos sob forma de plural para designar os ritos pagãos; e aparece com este significado no texto grego de Sb 14,15.23; 12,5. Em Daniel 2,7.28s, significa os acontecimentos finais da história, cuja notícia é revelada por Deus. Nos apócrifos judaicos, mystérion significa um desígnio de Deus, decretado desde todo o sempre e destinado a se revelar no fim dos tempos para instaurar a ordem violada no mundo pelos iníquos; ver Henoque 49,2;
Henoque etíope 51,3.

Nos escritos paulinos mystérion é palavra de significado bem definido:

– é o plano de salvação concebido por Deus Pai desde toda a eternidade (1 Cor 2,7)…

– ocultado a todas as criaturas, até mesmo aos anjos (1 Cor 2,8; Ef 3, 9; Cl 1,26;.Rm 16,25s)…

– revelado aos homens mediante a pregação dos Apóstolos e a história da Igreja (Ef 3,3-5.1 Os; 1 Cor 2,1.7)…

– identificado com o próprio Cristo (Cl 1,27; 2,2; 4,3). A morte e a ressurreição de Cristo são o conteúdo mais íntimo do mistério de Deus.

– A progressiva revelação do mistério inaugura os últimos tempos ou marca a plenitude dos tempos (Ef 1,9).

Ora um vocábulo tão rico de acepções e alusões não pode ser omitido numa tradução da Bíblia, como faz quase por completo a BLH. Nem se vê por que sonegar tal termo, que na própria linguagem popular é usual; com efeito, o povo fala freqüentemente de mistério(s). Chama-nos a atenção especialmente a troca de mistério por segredo em Mt 13,11 (“os segredos do Reino do céu”), CI 1,26 (“essa mensagem é o segredo que ele escondeu”), CI 2,2 (“o segredo de Deus, que é o próprio Cristo”), Ap 10,7 (“Deus cumprirá o seu plano secreto….), l Cor 4,1 (“nós, que somos encarregados de realizar os planos secretos de Deus”) …

7. Parábola

O vocábulo parábola também não ocorre na BLH, sendo substituído por comparação; cf. Mt 13,10.36; Lc 8,11; Mc 4,34… Sabe-se, porém, que parábola é um gênero literário consagrado pelo próprio uso dos rabinos e dotado de significado técnico, mais denso do que o de uma comparação. O vocábulo tende a penetrar também na linguagem profana literária, de modo que não há por que o cancelar do vocabulário bíblico, onde tem longa história… As comparações como tais se encontram nos livros infantis, ao passo que as comparações bíblicas são classicamente ditas “parábolas”.

8. Tu, você(s), o senhor

Em vez de adotar o habitual tratamento tu e vós, a BLH recorre a Tu (quando é interpelado o Senhor Deus), você(s) (quando é interpelado um subalterno), o senhor (quando Jesus ou um chefe é interpelado). Este tratamento suscita confusões e depaupera o texto sagrado, banalizando as suas expressões, como tem revelado a praxe recente. Ademais não se vê motivo para abandonar tu e vós, como se fossem incompreensíveis às pessoas simples (sabe-se que estas recorrem ocasionalmente a tais pronomes). Para que uma tradução da Bíblia seja inteligível à gente simples, não é necessário que reproduza o expressionismo e o vocabulário limitados das pessoas de pouca cultura, pois estas entendem vocábulos de um linguajar mais burilado, embo-ra não os usem. Basta lembrar que o jornal falado da televisão e do rádio recorre a linguagem mediana, nem sempre reproduzida pelo povo, mas significativa para este (daí o enorme índice de audiência que alcança).

9. Ligar-desligar

Em Mt 16,19, diz Jesus a Pedro, conforme a BLH: “Eu lhe darei as chaves do Reino do céu; o que você proibir na terra, será proibido no céu, e o que permitir na terra será permitido no céu”.

Os tradutores puseram “proibir-permitir” em lugar de “ligar-desligar”. Ora o binômio “ligar-desligar” (em aramaico, azar e sherá ou hithir) é da linguagem técnica rabínica; significa, antes do mais, atos de jurisdição, pelos quais os rabinos excomungavam (ligavam) ou absolviam da excomunhão (desligavam). Ulteriormente significava decisões doutrinárias ou jurídicas, que ou proibiam, declaravam ilícito (ligavam) ou permitiam, declaravam lícito (desligavam). – Donde se vê que a tradução “proibir-permitir” não abrange todo o conteúdo do texto original, pois o reduz a matéria de Moral, quando, na verdade, o que Jesus entrega a Pedro, conforme o texto original, é o poder de governar a Igreja tanto no plano jurídico como no da Moral e no da doutrina. A própria imagem das chaves, que Jesus consigna a Pedro, lembra a jurisdição, ou seja, o poder de abrir e fechar a comunhão com a Igreja em nome do Senhor Jesus. As sentenças de Pedro são confirmadas pelo próprio Deus.

Em conseqüência, teria sido necessário conservar o binômio “ligar-des-ligar” na tradução; o seu significado técnico poderia ser explicado no vocabulário da BLH (pp. 439-447). Qualquer tentativa de substituir “ligar-desli-gar” equivale a uma interpretação, que pode ser tendenciosa, como é de fato no caso da BLH. A propósito do significado de tal binômio na teologia dos rabinos antigos, ver PR 132/1980, pp. 538s. 543-547.

As mesmas observações devem ser feitas a respeito de Mt 18,18, onde reaparece o binômio “ligar-desligar”, desta vez para designar o poder de jurisdição e magistério que toca aos Apóstolos reunidos em colegiado.

10. Sangue

Em Rm 3,25; 5,9; Ef 1,7; 2,13; Ap 1,5; 5,9 a palavra grega haima é traduzida não por sangue, como seria de prever, mas por morte. – Ora, se bem que a morte possa em alguns casos lembrar sangue, não se deveria deixar de usar o vocábulo sangue em tais passagens, pois é este que põe em relevo o valor da morte de Cristo como sacrifício ou como vítima de expiação pelos pecados do mundo. O caráter sacrificial da morte de Cristo é essencial à mensagem do Novo Testamento. Aliás, em At 20,28; Hb 10,29; 1 Pd 1,19 os tradutores verteram haima por sangue; a mesma palavra grega é, pois, tratada de modo desigual na tradução da BLH.

11. Espiritualmente pobres

A primeira bem-aventurança (Mt 5,3) reza na BLH: “Felizes os que sabem que são Espiritualmente pobres…” Ora a primeira bem-aventurança não consiste em saber…, mas, sim, em viver; ela é dirigida àqueles que têm um coração – simples, humilde e despretensioso como é o dos pobres (anawim) que o Antigo Testamento muito louva na medida em que são os fiéis de Deus, despojados de qualquer ilusão a respeito da escala dos valores; os anawim são os que confiam em Deus, e não em si, como fazia S. Teresinha do Menino Jesus, que viveu intensamente a primeira bem-aventurança.

12. Ulteriores observações

Verifica-se que em várias passagens o texto sagrado assume características banais. Por exemplo:

1. O vocábulo óleo é sistematicamente substituído por azeite, que é um tipo de óleo usado freqüentemente em cozinha. Assim Jesus diz ao fariseu Simão:

“Você não arranjou azeite para a minha cabeça” (Lc 7,46), em vez de “Não me derramaste óleo sobre a cabeça”.

Em Ex 30,31 lê-se: “Esse azeite de ungir deverá ser usado no meu ser-viço religioso”.

Em Hb 1,9 omite-se “o teu Deus te ungiu com óleo de alegria” para dizer-se: “… a alegria de receber a honra…”!

Em Tg 5,14 lê-se: “Os presbíteros ponham azeite na cabeça do enfermo em nome do Senhor”, em lugar de: “… unjam o enfermo com óleo em nome do Senhor”.

2. O verbo tomar cede a pegar, que é por vezes verbo de linguagem banal (“pegou e disse”, “pegou e foi…”, “pegou e fez…”). Ver Mt 2,20; Mt 26,26s; Mc 14,22s; Lc 22,17-19. Ora não se pode dizer que tomar seja palavra erudita ou desconhecida ao povo; o que é certo, é que pegar é não apenas popular, mas até mesmo vulgar e pouco elegante, principalmente numa tradução bíblica. Veja-se especialmente Mt 25, 1-3;

“Naquele dia o Reino do céu será como dez moças que pegaram as suas lamparinas e saíram para se encontrar com o noivo. Cinco eram sem juízo, e cinco ajuizadas. As moças sem juízo pegaram suas lamparinas, mas não arranjaram óleo de reserva”.

A propósito pergunta-se: por que moças e não virgens (pártheno), como está no original?

3. Em Tg 2,20 lê-se: “Seu tolo!”, quando outras edições traduzem por “Homem insensato!”

4. O vocábulo Evangelho é geralmente omitido em favor de Boas-Notícias (cf. Mc 1,1.14; Cor 9,18), expressão que enfraquece muito o significado do original; se o povo cristão não está familiarizado com o que é Evangelho, os seus pastores têm que lho ensinar e não omitir a palavra.

5. O Vocabulário existente no final da edição da BLH, pp. 439-447, ao abordar os termos “bispo, presbítero, diácono”, explica os ministérios da Igreja simplesmente como serviço de direção, liderança e administração sem referência alguma à sacra mentalidade dos mesmos – o que tem sabor protestante. Ademais a palavra epískopos é traduzida por bispo, o que não ressalva a índole singular dos epískopoi a que se referem os escritos do Novo Testamento. Melhor teria sido dizer epíscopos em português. Cf. FI 1,1; l Tm 3,13; Tt 1,7…

Conclusão

Deixando de lado outras várias observações, concluímos que a BLH não é simplesmente uma tradução, mas vem a ser, em mais de um caso, uma interpretação. Verdade é que todo tradutor tem não raro que interpretar o texto que ele verte. Todavia este fato ocorre com mais freqüência e mais sérias conseqüências quando o tradutor, de caso pensado, procura evitar vocábulos consagrados pelo uso, como se dá na BLH. E diga-se de passagem: a interpretação dada ao texto da BLH, cá e lá, é evidentemente protestante. – Daí não se poder recomendar o uso da BLH nem para católicos, nem para protestantes, pois uns e outros necessitam, antes do mais, de ler o texto bíblico na sua identidade tão objetiva quanto possível.

Ademais pode-se indagar se é oportuno usar linguagem rude (às vezes incorreta) na tradução da S. Escritura. Está claro que esta não deve ser pro-posta ao grande público em linguagem rebuscada ou “preciosa”, mas, apesar de tudo, há de valer-se de vocabulário e estilo de bom timbre, condizentes com a dignidade da mensagem bíblica. O próprio povo aspira a elevar seu nível de cultura, de modo que só poderá mostrar-se grato a quem o ajude a compreender um bom linguajar português que não deixe de ser simples. Julgamos, pois, que não se devem evitar as palavras técnicas do vocabulário bíblico como Evangelho, aliança, justificação, parábola, mistério… e outras muitas, pois têm suas conotações que outras, tidas como equivalentes, não possuem; o que elas possam apresentar de insólito, seja explicado ao pé da página do texto bíblico ou em glossário próprio, de modo que percam sua estranheza para o leitor não iniciado.

Eis o que nos convinha observar, em termos sumários, a respeito da BLH.

[1] A Bíblia na Linguagem de Hoje (BLH). Sociedade Bíblica do Brasil, São Paulo 1988.
[2] A propósito ver, por exemplo, A. van den Born, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, verbete ‘Justificação’.
[3] É de notar que a Tradução Ecumênica da Bíblia, realizada por católicos, protestantes e ortodoxos, conserva o sentido clássico: “Aquele que é justo, viverá pela fé” (Rm 1,17b; Gl 3,11b; Hb 10,38). Aliás, esta tradução é exigi-da pelo contexto mesmo de Hab 2,3s, onde se faz a antítese entre “aquele que é justo” e “aquele cuja alma não é reta’ : – Ver Novo Testamento em Tradução Ecumênica da Bíblia. Ed. Loyola. Notamos outrossim que a edição inglesa de BLH (Good News Bible) assim traduz Rm 1, 17: “The person put right with God shall live through faith” (viverá pela fé).