Bíblia: antigo testamento – história ou estórias? verdade ou lendas?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 159/1973)Em síntese: As conclusões dos estudos bíblicos contemporâneos con­cernentes a certas passagens do Antigo Testamento têm levado muitas pessoas a julgar que todo o Antigo Testamento não passa de um con­junto de histórias fictícias ou estórias e lendas.

Na verdade, porém, os estudiosos observam o seguinte:

1) A religião judaica (que se prolonga no Cristianismo) é essencial­mente uma religião histórica, isto é, ligada a fatos históricos, ao contrario das religiões naturistas (ligadas a fenômenos da natureza, como são o to­temismo e o animismo) e das religiões filosóficas (ligadas a idéias inde­pendentes da história, como o budismo).

2) É por isto que o povo de Israel cultivou a historiografia com carinho especial; considerava a história como veículo da revelação de Deus (Javé) aos homens. Os povos antigos vizinhos de Israel não nos deixaram senão crônicas fragmentárias, ao passo que Israel escreveu a sua histó­ria de maneira contínua.

3) É preciso, porém, reconhecer que a historiografia israelita (bíbli­ca), embora goze da assistência do Espírito Santo para ser portadora de autêntica mensagem religiosa, depende estritamente dos modos de pensar e escrever dos antigos e, em particular, dos semitas. Em conseqüência, ela apresenta características que o leitor da Bíblia em nossos dias deverá sempre levar em conta; tais são: viva consciência da presença e da ação de Deus (por isto os autores bíblicos não distinguiam entre o que Deus quer e o que Deus permite); dramatização (recurso freqüente a imagens, metáforas e cenas teatrais); narração etiológica (apresentação de causas e respostas mediante a narração de episódios forjados), esquematização, círculos concêntricos, compilação, certo simbolismo dos números…

Quem toma consciência destes procedimentos da historiografia se­mita, evita dois graves perigos: o de entender as páginas do Antigo Tes­tamento ao pé da letra e o de negar por completo a historicidade do An­tigo Testamento.

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Comentário: As perguntas que encabeçam este artigo, são freqüentes. Eis por que se colocam: os modernos estudos bíbli­cos têm levado os exegetas a reformar algumas concepções que se haviam tornado clássicas nos manuais de história sagrada: já não têm por históricos muitos dos episódios que outrora eram tidos como tais; tenha-se em vista, por exemplo, o modo como hoje se explicam as páginas do Gênesis que narram a criação do mundo e do homem, a origem da mulher… Acontece, po­rém, que muitos cristãos, impressionados pelas proposições da nova exegese, são inclinados a lançar o descrédito sobre toda a historiografia do Antigo Testamento: pouco ou nada se salvaria das narrações bíblicas, principalmente das que se encontram nos primeiros livros sagrados. Eis por que abaixo considerare­mos a questão em três de seus aspectos mais importantes: 1) o Antigo Testamento e a história; 2) a historiografia oriental; 3) a historiografia israelita.

Antigo Testamento e história

À diferença de todas as demais crenças religiosas da hu­manidade, a Religião apresentada pela Bíblia pretende ser es­sencialmente revelada por Deus através da história dos homens. Distingue-se, pois,

a) das religiões «naturistas», que se derivam da obser­vação dos fenômenos da natureza (ciclo das estações do ano, ritmo do dia e da noite…). Tais são os sistemas religiosos dos povos primitivos (fetichistas, totemistas, animistas…); tais sistemas não dependem de fatos históricos propriamente, mas se baseiam no curso dos fenômenos da natureza (endeusa-se uma planta, um animal, atribui-se vida à água, à rocha, ao sol, à lua…);

b) … das religiões meramente «filosóficas». Tais siste­mas apresentam aos seus adeptos algumas proposições doutri­nárias e normas éticas que são tidas como válidas em si mesmas, sem estrita relação com determinados fatos históricos. É o que se dá no budismo, no taoísmo, no chintoismo… Alguém pode ser perfeito budista sem afirmar a historicidade do que a tradição conta a respeito de Buda. Ao contrário, a religião judaica, que se continua no Cristianismo, está essencialmente ligada à história dos homens; ela se constrói mediante episó­dios que os homens constróem.

Dizia muito bem Pascal em nome dos cristãos: «O nosso Deus é o Deus dos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó». Numa palavra, é o Deus da Revelação.

A revelação – entendida em sentido judeu-cristão – quer dizer entrada de Deus na história dos homens; Deus intervém para cumprir o seu desígnio salvífico em favor da humanidade inteira, a qual não somente recebe a salvação, mas é chamada a colaborar responsavelmente no cumprimento de tal desígnio.

Os livros do Antigo e do Novo Testamento pretendem ser a documentação dessa intervenção de Deus e, ao mesmo tem­po, da resposta do homem (aceitação ou recusa) frente ao cha­mado divino.

Todavia quem estuda os livros bíblicos, toma consciência de que não pode compreender as suas páginas, antiquíssimas como são, caso não se despoje de certos conceitos próprios da mentalidade moderna ocidental, a fim de reviver os costumes e a mentalidade dos orientais antigos. Com efeito, a Revelação de Deus tomou forma humana em sentido muito concreto; a palavra de Deus se manifestou ou se encarnou num ambiente determinado, utilizando a mentalidade e os costumes do Antigo Oriente. Dai as diretrizes que em 1943 o Papa Pio XII promul­gava na encíclica «Divino Afflante Spiritu»:

“É necessário que o intérprete (da Bíblia) quase volte com a mente aos remotos séculos do Oriente, a fim de que, com o auxílio da história, da arqueologia, da etnografia e de outras disciplinas, possa distinguir e perceber que gêneros literários os escritores daquelas antigas épocas pos­sam ter utilizado e hajam realmente adotado… Não aparece sempre com clareza, ao invés do que se dá com os escritores de nossos tempos, qual seja o sentido literal que se oculta nas palavras e nos escritos dos antigos” (Enquirídio Bíblico 558).

Ainda o mesmo Pontífice:

“Os nossos estudiosos de assuntos bíblicos voltem com a devida di­ligência a sua atenção também para este setor e não negligenciem o que de novo possam proporcionar a arqueologia, a história antiga e o co­nhecimento das literaturas antigas, a fim de que se torne sempre mais clara a mentalidade dos escritores de outrora, o seu modo e a sua arte de raciocinar, de narrar e de escrever” (Enquirídio Bíblico 561).

O Concílio do Vaticano II deixou normas equivalentes na Constituição «Dei Verbum»:

“E preciso levar em conta os gêneros literários. Com efeito, a ver­dade é diversamente proposta e expressa nos textos históricos, proféticos, poéticos ou ainda nos de outros gêneros. É necessário, pois, que o intér­prete procure o sentido que o hagiógrafo intencionou exprimir e de fato exprimiu em circunstâncias determinadas, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, mediante os gêneros literários que então estavam em uso” (n.º 12)

Em suma, os escritores do Antigo Testamento pretende­ram apresentar, e realmente apresentaram, história. Todavia os seus modos de narrar são bem diferentes dos nossos.

Examinemos de mais perto o conteúdo de cada uma destas afirmações.

2. A história oriental antiga

Até o século passado ignorava-se quase por completo a história dos antigos povos orientais, embora tenham sido prós­peros: conheciam-se apenas notícias fragmentárias do Oriente transmitidas pelos escritores gregos Heródoto e Xenofonte, por Berosso da Babilônia, por Maneto do Egito e por Filão de Bi­blos (Fenícia) … De alguns povos havia-se conservado unica­mente o nome; de outros, como os sumeros, nem mesmo o nome se conhecia. Registrava-se, porém, uma grande exceção: a histó­ria do povo hebreu, que os livros do Antigo Testamento haviam transmitido de maneira assaz concatenada e às vezes com no­tável riqueza de pormenores.

Todavia na primeira metade do século passado as descober­tas arqueológicas fizeram emergir um mundo surpreendente­mente rico do ponto de vista literário e cultural. Com efeito, em 1822 o sábio francês Champollion conseguiu decifrar os hieróglifos do Egito; em meados do século XIX estudiosos france­ses, ingleses e alemães encontraram a chave para interpretar a escrita cuneiforme da Mesopotâmia… Em conseqüência, os historiadores passaram a dispor de amplo material literário que permitiu reconstituir a vida econômica, social e política dos po­vos orientais antigos no decorrer de três milênios que termi­nam no século IV a. C., ou seja, na época de Alexandre Magno da Macedônia e da helenização do Oriente.

De posse de toda essa documentação, os estudiosos puse­ram-se a estudar as notas da historiografia extra-bíblica (assíria, babilônica, egípcia…) . Verificaram que três grandes traços, entre outros, a caracterizam:

1) Imobilismo

Os povos da Mesopotâmia e do Egito careciam de perspec­tiva propriamente histórica: não tinham consciência do vir-a-ser ou da evolução da história; a sua visão das coisas e dos acontecimentos era estática; em conseqüência, pode-se dizer que, em vez de história no sentido pleno, nos transmitiram crônicas de acontecimentos importantes – políticos e religiosos – justapostos uns aos outros, não, porém, avaliados ou julgados nem concatenados;… crônicas de cidades ou dinastias isoladas, destinadas aos arquivos dos templos ou das cortes, ao serviço dos deuses ou à glorificação dos soberanos. Os acontecimentos humanos, nessa perspectiva, não são considerados como pro­duto lento da ação recíproca do homem e do seu ambiente; parecem às vezes «caídas do céu» como se tivessem sido «prefa­bricados». Eis o que a propósito escreve o famoso arqueólogo S. N. Kramer:

“O pensador sumérico[1] julgava que a terra, Sumer, terra que ele conhecia com suas cidades, suas aldeias, seus campos prósperos, e na qual florescia um conjunto variado de instituições, de técnicas políticas, religiosas e econômicas, tivesse sido sempre mais ou menos a mesma desde o início dos dias.

O fato de que Sumer outrora havia sido um pântano desolado, com poucas habitações dispersas, e só gradualmente se tornara o que era, atra­vés das lutas e fadigas de muitas gerações, lutas que traziam a marca da vontade e da determinação do homem, de planos e experiências humanas, de diversas invenções e descobertas felizes…, tal fato provavelmente ja­mais aflorou à mente nem mesmo do mais douto dentre os sábios de Su­mer” (“Sumerian Historiography” em “Israel Exploration Journal” 3 [1953] 217).

Em outro setor do mundo antigo – o Egito – a mentali­dade era análoga, como verifica o egiptólogo L. Bull:

“Os egípcios antigos não podem ter tido uma idéia da história seme­lhante ao que a expressão ‘história’ indica nos nossos dias nem mesmo ao que ela indicava há vinte e quatro séculos, nos tempos de Heródoto e Tucídides. Não parece que tenham concebido uma filosofia da história, que tenham pensado em termos de causa e efeito, observando grandes linhas no curso da sua história ou no dos povos vizinhos do mundo an­tigo. No conceito que os egípcios tinham da vida e do passado, havia uma nota fundamentalmente estática. O elemento mais importante na sua concepção da vida, era a convicção de que as sortes do povo egípcio sempre tinham sido governadas pelos deuses no passado e o haviam de ser sem­pre no futuro. Inútil seria perguntar a razão desse regime dos deuses, pois a vontade e as intenções dos mesmos eram totalmente insondáveis” (na obra coletivaThe Idea of History in the Ancient Near East“, New Haven 1955, p. 32).

2) Eterno retorno

Em alguns povos antigos, o Imobilismo da história toma uma modalidade própria: a do eterno retorno.

A história não seria senão a repetição cíclica dos mesmos acontecimentos: a períodos de prosperidade se sucedem perío­dos de desgraça; o que acontece no presente, por certo já aconteceu no passado e há de se reproduzir no futuro. Aliás, era esse ritmo de constante retorno que os antigos povos de pas­tores e agricultores observavam em torno de si, na natureza que os cercava: o reflorescimento da primavera alternava com o desnudamento do inverno; a sementeira sucedia à colheita, e a colheita à sementeira; os rebanhos davam as suas crias, o seu leite e a sua lã ano por ano. Consequentemente – pensavam também a história dos homens tem as suas estações, isto é, um curso fixo, no qual não há novidades nem surpresas.

Tal modo de ver estava intimamente relacionado com as convicções religiosas dos mesmos povos. Com efeito, estes jul­gavam que os ciclos de prosperidade e desgraça reproduziam sobre a terra a história dos deuses – deuses que não eram se­não as forças da natureza divinizadas. As festas que assinala­vam o retorno das estações, evocavam, para aqueles povos, os mitos ou as aventuras dos deuses.

Ainda por outro motivo história e religião estavam asso­ciadas entre si, na concepção de muitos dos homens antigos, como se depreenderá do que se segue.

3) Índole religiosa

A historiografia dos povos orientais está intimamente re­lacionada com o pensamento religioso daqueles homens.

Sabe-se que na Mesopotâmia, berço da cultura da Ásia anterior antiga, a civilização nasceu e se desenvolveu junto aos templos. A vida econômica e social, as organizações civis e polí­ticas, as expressões artísticas e culturais, as observações cien­tíficas, as normas de sabedoria eram profundamente penetra­das pelas concepções religiosas. Por conseguinte, não nos sur­preende o fato de que naquela região os documentos historio­gráficos estejam intimamente associados ao culto, aos templos sagrados e à vida religiosa. As crônicas e os anais dos reis eram não raro redigidos como hinos de louvor aos deuses; neste par­ticular, o relato da oitava campanha bélica de Sargão II, da Assíria, é especialmente digno de nota, pois constitui uma fér­vida homenagem ao deus Assur, tutelar do reino.

Descendo a particulares, notamos que, para os sumeros, por exemplo, o fator decisivo da história não é a livre opção do homem, mas a vontade dos deuses, que guia o curso dos acontecimentos, … e isto segundo princípios, por vezes, arbi­trários e incompreensíveis aos homens. Verdade é que as divin­dades tutelares podiam intervir em favor de seus protegidos contra os desígnios malévolos de outros deuses; todavia tam­bém nessas circunstâncias, o homem ficava passivo.

São os deuses que decretam a vinda de tempos prósperos e de tempos infelizes (ritmo característico da história em geral e da vida da Mesopotâmia em particular). São também os deu­ses que estipulam as sortes de determinada dinastia outrora descida do céu, estabelecida em uma cidade A, mas fadada a transferir-se para a cidade B.

Especialmente importante era o conceito de culpa na historiografia oriental antiga. A história não era concebida tanto como uma seqüência de fatos, mas antes como conseqüência de atitudes e gestos dos homens. Daí o julgamento que faziam os orientais sobre alguma desgraça que acometesse um indiví­duo ou uma comunidade: essa desgraça não era considerada tanto como o resultado de arbitrário decreto dos deuses, mas como a conseqüência lógica de uma falta ou de um delito come­tido contra a divindade.

A famosa crônica babilônica dita «de Weidner» refere bem tal concepção: dá a saber que a queda da primeira dinastia pós­-diluviana foi provocada nela culpa de um de seus reis contra o maior santuário de Babel, o Exaguila, templo do deus nacional Marduque.

A luz destas considerações, voltemo-nos para a historiogra­fia de Israel, contida nos livros bíblicos.

3. A historiografia israelita: importância

1. O fato de que o povo de Israel considerava a história como cenário ou mesmo veículo da Revelação divina explica que a historiografia em Israel tenha merecido grande estima, ocupando lugar eminente na Bíblia; em vão procurar-se-ia nas antigas literaturas orientais um senso histórico tão apurado como o dos hebreus. É o que reconhecem geralmente os críticos contemporâneos: trata-se de «um fato tão óbvio que não exige ulteriores elucidações» (E.A. Speiser, na obra coletiva»The Idea of History in the Ancient Near East», p. 67).

Mais precisamente: a Bíblia constitui uma literatura essen­cialmente religiosa, mas de uma religiosidade cuja nota domi­nante é a historicidade. O enlace entre religião e história, que na historiografia oriental não israelita foi nocivo (por causa das deformações que acarretou, como vimos), na historiografia bíblica tornou-se altamente vantajoso. Com efeito, o fato de que a religião de Israel é essencialmente histórica, explica que os historiadores de Israel tenham superado o nível de uma do­cumentação fragmentária, particular, destituída de movimento e dinamismo (como a historiografia dos povos vizinhos) para propor uma história que revela um grande desígnio ou o pro­gressivo desabrochar de um plano, em que os acontecimentos humanos são cada vez mais prenhes de sentido.

Eis como M. Burrows delineia o significado da história ­blica:

“O pressuposto fundamental e característico do conceito de história, entre os antigos hebreus, é a convicção de que na história humana o único e eterno Deus, o Deus vivo, vai realizando o seu soberano desígnio em favor das criaturas antes do mais, em favor do povo eleito; depois, em favor de todo o gênero humano. Por isto, a história não pode ser con­cebida como uma série de círculos que recorrem sem mudanças substan­ciais, nem como a via retilínea, quase automática, da civilização. Ao contrá­rio, a história é obra da vontade dos homens; é um tecido de promessas admoestações, condenações e destruições, assim como de preservação e salvação…

Através dessa longa luta, em que há escolha, compromisso, falhas, repulsas, mas também um incessante recomeçar, vai-se cumprindo penosa e pacientemente o desígnio de Deus, desígnio de criar um povo santo, um reino de sacerdotes, mediante o qual possa chegar a todas as nações da terra a bênção divina. No momento mais funesto, quando o orgulho humano parece ter frustrado por completo o programa de Deus, levando o povo eleito à ruína extrema por haver recusado seguir o caminho traçado pelos seus legisladores, profetas e sábios, ressoa mais forte do que nun­ca a promessa, a garantia de um novo início” (na obra coletiva “The Idea of History in the Ancient Near East”, p. 128).

Consequentemente, a história na Bíblia aparece como te­cido sabiamente concebido, em que cada fio tem sua função precisa e do qual Deus é o Soberano Senhor. Ela pode ser com­parada também a um cone que se vai dilatando cada vez mais, sempre mais prenhe de realidade; segundo a Bíblia, a história é movida por um dinamismo possante; ela tende ardentemente ao seu fim, que será também a sua plenitude ou consumação. Ao contrário, para vários dos antigos povos pagãos, a história se assemelha a uma serpente que se enrola sobre si mesma, em forma de espiral, de tal modo, porém, que a cabeça morde a cauda, o fim coincide com o princípio, tornando inúteis ou frustrados os ciclos do percurso.

As festas religiosas do povo de Israel não celebravam o retorno das estações do ano, como entre os pagãos, mas evo­cavam acontecimentos da história passada, ou seja, as grandes obras realizadas por Deus em favor do seu povo; tenham-se em vista, por exemplo, as festas de Páscoa, dos Tabernáculos, de Purim… Os acontecimentos passados, festivamente evocados pelos judeus, eram para Israel a garantia e o penhor de obras ainda maiores que Deus havia de realizar no futuro em prol dos homens. A comemoração do passado tornava-se assim expectativa do futuro e alimento da esperança.

2. Utilizando, pois, fontes de diversos gêneros, como tra­dições orais, arquivos de família, memórias, anais… os israe­litas nos transmitiram uma narração assaz minuciosa da histó­ria ,da salvação. Com a Bíblia em mãos, pode-se acompanhar o povo de Israel anterior a Cristo nas diversas etapas da sua história.

O Gênesis, a partir do seu capítulo 12, informa principal­mente sobre a fase inicial dessa história, marcada pelos feitos dos Patriarcas que peregrinaram pelas terras de Canãa e do Egito (séculos XVIII/XVII a. C.).

O Êxodo refere as façanhas que constituíram Israel como povo de Deus, ou seja, a libertação do Egito e a aliança ao pé do monte Sinai (séc. XIII).

O livro dos Números narra as peripécias dos israelitas no deserto a caminho da Terra Prometida (séc. XIII).

O livro de Josué trata da conquista da Palestina, ao passo que o dos Juizes descreve as façanhas através das quais se con­solidou essa conquista ameaçada por vários inimigos como os cananeus, os madianitas, os amonitas, os filisteus… (séc. XII/XI).

Os dois livros de Samuel mostram como se erigiu um poder central em Israel: o juiz e profeta Samuel, a pedido do povo, instituiu a monarquia, com seus dois primeiros reis Saul e Davi (séc. XI/X).

Os dois livros dos Reis (que têm como paralelos os livros das Crônicas) narram as sortes da monarquia em cada uma das duas partes do reino dividido após a morte de Salomão: Samaria ao Norte, e Judá ao Sul (séc. X/VI).

Nos trechos narrativos dos livros dos Profetas, lêem-se notícias, minuciosas por vezes, dos graves acontecimentos que precederam a queda de cada um dos dois reinos (séc. VIII/VI) e o exílio de Israel na Mesopotâmia.

Os livros de Esdras e Neemias referem a restauração reli­giosa e política da comunidade judaica após o exílio (séc. VI/V).

Por fim, os dois livros dos Macabeus narram a vitoriosa resistência dos judeus aos sírios, que pretendiam helenizar a Palestina, impondo-lhe idéias e costumes pagãos (séc. II).

3. Estas considerações, porém, não significam que se pos­sam aplicar à historiografia bíblica os critérios da historiogra­fia moderna. Os historiadores sagrados, mesmo sob o influxo da inspiração divina, são filhos da sua época: manifestam men­talidade própria, observam regras de estilo e normas literárias que se assemelham às dos outros povos antigos e não têm para­lelo na metodologia contemporânea. Eis por que nos deteremos, a seguir, sobre as características de pensamento e estilo da historiografia bíblica.

4. A Historiografia israelita: estilo

Assinalaremos sete notas principais:

1) Viva consciência da presença de Deus. Para os orien­tais em geral, a história era religiosa. Os israelitas manifesta­vam ter consciência disto, atribuindo do mesmo modo a Deus todos os acontecimentos da história; não distinguiam entre ação direta, ação indireta ou mediata (em que o Senhor se serve de causas ditas «segundas») e simples permissão de Deus. Apre­sentavam, pois, o Senhor como Causador não somente de mi­lagres ou de ações providenciais, mas também do mal…

Tenha-se em vista, por exemplo, o texto de 2 Sam 24,1, em que se lê: «A cólera do Senhor se inflamou ainda contra os israelitas e Ele (o Senhor) excitou Davi contra os israelitas, dizendo-lhe: ‘Faze o recenseamento de Israel e Judá»’. Ora tal recenseamento era pecaminoso segundo a mentalidade da época (era tido como ato de arrogância do rei de Israel; este pareceria contar com a força de seus homens, e não com o auxílio do Senhor). Não obstante, o autor de 2 Sam, em seu modo de falar semítico, atribuiu-o à instigação divina. Posteriormente, outro cronista, relatando o mesmo episódio, exprimiu-o de ma­neira mais exata, afirmando que a provocação ao pecado pro­viera não do Senhor, mas de Satã: «Satã levantou-se contra Israel e incitou Davi a recensear os israelitas» (1 Crôn 21,1).

Estas observações nos dão a ver que seria simplista ou in­gênuo considerar como intervenções de Deus todas as obras que a Bíblia atribui ao Senhor; há feitos que Deus permite apenas, deixando o homem agir livremente.

2) Dramatização. Os hebreus não eram dados à abstra­ção nem a definições filosóficas. Ao contrário, exprimiam os conceitos mais sutis, os dramas íntimos do indivíduo e os misté­rios do mundo invisível recorrendo a imagens e cenas mais ou menos teatrais, ou dramatizando…, como, aliás, se faz por vezes ainda hoje em narrativas de índole popular ou infantil. Os semitas preferiam ver a verdade e colocá-la em cena a ex­primi-la em fórmulas abstratas. Assim procuravam impressio­nar vivamente o espírito e a fantasia dos leitores, comunicando com toda a clareza possível idéias difíceis ou transcendentais.

Tenha-se em vista o prólogo do livro de Jó (1,6-12), em que um cenário realmente teatral se descortina: Deus, cercado de seus anjos, dialoga com Satã acerca das sortes de Jó… To­da essa bela página quer incutir ao leitor algo do que sejam a sabedoria e a Providência de Deus. Os acontecimentos mais trágicos da terra são sabiamente previstos pelo Senhor Deus, que os engloba dentro de um plano irrepreensível.

3) Narração etiológica. Para responder às questões «Por que tal ou tal costume? Donde provém tal instituição? Qual a origem de tal nome?», os judeus, em vez de formular uma frase simples, por vezes narravam uma «história», história que não devia ser entendida como expressão de realidade passa­da, mas como resposta às questões «Por que… ?» ou «Don­de… ? ». Como exemplo, pode-se citar o hexaémeron (Gên. 1,1-2,4a): este texto propõe o Senhor Deus a criar o mundo em seis dias de modo a repousar no sétimo. Trata-se certa­mente de uma narração etiológica[2], que quer incutir não o mo­do como se originou o mundo, mas, sim, a razão de ser do re­pouso sabático; este é proposto no hexaémeron como «imita­ção» do que fez o próprio Deus quando «fabricou» este mundo.

4) Esquematização. Os orientais não raro negligencia­vam a ordem cronológica dos acontecimentos, expondo-os de preferência segundo uma ordem lógica, psicológica ou artística. É o que se dá, de maneira típica, no citado texto de Gên. 1,1-2,4a, onde a origem das criaturas é apresentada não em sucessão cronológica, mas conforme um esquema lógico e artístico de seis dias, que se dispõem harmoniosamente em duas séries de três dias cada uma («Obra de criação» e «Obra de orna­mentação»).

5) Círculos concêntricos. O narrador por vezes descrevia determinado acontecimento não de maneira retilínea, expondo progressivamente as sucessivas fases do mesmo, mas propu­nha-o como que em espiral, repetindo suas afirmações com minúcias cada vez mais abundantes até completar a narração. A guisa de exemplo, pode-se citar Dt 12, onde o legislador in­cute a lei do «santuário único (Jerusalém)», reiterando em círculos concêntricos os seus dizeres; cf. Dt 12,511.14 18.26.

6) Compilação. Quando um escritor tinha ante os olhos duas ou três redações do mesmo fato, nem sempre as fundia num relato harmonioso, mas, por vezes, justapunha simples­mente essas narrativas. Em conseqüência, temos na Bíblia nar­rações duplicadas, cujos pormenores por vezes diferem entre si porque supõem diversos pontos de vista.

É o que se dá, por exemplo, com os dois relatos da origem do mundo e do homem em Gên. 1,1-2,4a (hexaémeron), da fon­te dita P (Priesterkodex) e Gên. 2,4b-3,24, da fonte dita J (javista).

Em Gên. 6-9, duas narrativas do dilúvio se entrelaçam en­tre si: a narração dita J (javista) e a narração P (Priesterkodex); assim, ora Noé recebe ordem de levar um par de todo e qualquer tipo de animal (cf. Gên. 6,19-21; 7,8. 14s), ora recebe ordem de levar um par de animais impuros e sete pares de animais puros (cf. Gên. 7,2s); ora se diz que as águas flage­laram a terra durante quarenta dias e quarenta noites (cf. 7, 4.12.17), ora se afirma que choveu durante 150 dias. Estas di­ferenças são o sinal de que o autor sagrado encontrou, já redi­gidas, duas narrações do dilúvio (cuja finalidade era moral e religiosa, não cronística), e não quis julgar entre uma e outra, mas simplesmente aceitou e justapôs os dizeres de ambas.

7) Simbolismo dos números. Os números, para os anti­gos, não eram sempre sinais de quantidades, mas, sim, de quali­dades. Em outros termos: os orientais, em vez de usar adje­tivos, recorriam por vezes a cifras, que convencionalmente designavam predicados: 3,4,7,10,12, por exemplo, eram símbo­los de plenitude, totalidade ou perfeição. Isto não quer dizer que todos os números na Bíblia carecem de valor matemático ou são meros símbolos. É o contexto ou o gênero literário que indica ao leitor se deve interpretar tal ou tal número em sen­tido quantitativo ou em sentido qualitativo.

Assim, por exemplo, os números de «anos de vida» dos Patriarcas bíblicos (930, 912, 905, 910, 895, 962, 365… ) em Gên. 5,1-32 são evidentemente símbolos de venerabilidade, e não de longevidade, como atestam documentos semelhantes da literatura babilônica. Assim o catálogo babilônico de Berosso refere que Aloro reinou 36.000 anos (= 10 saros), Alaparo reinou 10.800 anos (3 saros), Almelon reinou 46.800 anos (13 saros), Amenon reinou 43.200 anos (12 saros), Amegalaro reinou 64.800 anos (18 saros), Daono reinou 36.000 (10 sa­ros)…

Os 40 dias e 40 noites do dilúvio (cf. Gên. 7,4.12.17…) in­dicam um período importante e de significado bem definido (período cuja duração, para nós como para o autor sagrado, fica sendo uma incógnita ou x).

Longa vida é, conforme os autores israelitas, prêmio que Deus concede à virtude (cf. Dt 4,26; 8,1; 11,8s). Donde se se­gue que extraordinária longevidade tem por pressuposto ex­traordinárias virtudes. O declínio da longevidade desde Adão até Abraão é sinal de que a corrupção, o pecado vão exercen­do cada vez mais os seus efeitos no gênero humano.

Em suma, quem leva em conta as particularidades da his­toriografia bíblica que acabam de ser registradas, evitará dois graves escolhos:

a) o de tomar ao pé da letra todo e qualquer pormenor do texto sagrado. O apego à letra do texto não é necessaria­mente sinal de maior fé da parte do leitor da Bíblia; pode ser sinal de incompreensão; a autêntica fé é a que adere à Palavra de Deus não como nós julgamos que ela deva ser ou como ela nos parece ser, mas, sim, como ela de fato é, transmitida pelo veículo dos homens de quem Deus se quis servir para nos falar.

b) o de negar a historicidade dos livros bíblicos. Quem exija dos documentos bíblicos o estilo e o uso de critérios da historiografia moderna (que costuma basear-se em pesquisas rigorosas de documentos), pode decepcionar-se com os dados bíblicos e, em conseqüência, passa a rejeitar o texto sagrado. Tal atitude, porém, se deveria não à deficiência do livro bíblico (que é suficientemente significativo quando devidamente en­tendido), mas ao despreparo e à simploriedade do leitor.

Na verdade, o Antigo Testamento refere fatos históricos, transmitidos, porém, segundo as regras do estilo da historio­grafia oriental. Discernir essas regras de estilo e, consequentemente, definir se determinado texto bíblico deve ser interpre­tado ao pé da letra ou não, não é tarefa entregue ao arbítrio ou ao bom senso subjetivo de cada leitor. Ao contrário, há re­gras objetivas e obrigatórias para interpretar os textos sagra­dos: são as regras da lingüística e das ciências orientalistas (às quais se associam as normas da fé). O leitor contemporâneo não tem obrigação de conhecer filologia antiga para ler a Bí­blia, mas encontra em publicações modernas, correspondentes aos mais diversos graus de cultura, os resultados dos eruditos estudos da crítica bíblica. É a essas publicações que o sábio leitor recorrerá para entender adequadamente o texto sagrado.

Bibliografia:

G. Auzou, “A Palavra de Deus”. São Paulo 1968.

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Idem, “Ciência e Fé na história dos primórdios”. Rio de Janeiro 1958.

W. Keller, “E a Bíblia tinha razão”. São Paulo 1959.

Ch. Marston, “A Bíblia disse a verdade”. Belo Horizonte 1959.

Robert-Feuillet, “Introdução à Bíblia”, 5 vols. São Paulo 1967-1969.

Perrella-Vagaggini, “Introdução à Bíblia.” Petrópolis 1968.

Lancellotti, “Storia e preistoria nella concezione biblica e orientale”. Assisi 1967.

R. de Vaux, “I Patrarchi ebrei e la storia”. Brescia 1967.

Luis Alonso Schökel, “L’uomo d’oggi di fronte alla Bibbia”. Brescia 1967

P. Dacuino, “Incontro com la Bibbia”. Torino 1968.
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NOTAS:
[1] Os sumeros são os primitivos habitantes da Mesopotâmia, anterio­res aos assírios e babilônios. Datam do 5° milênio antes de Cristo.
[2] Aitia, em grego, quer dizer causa. Etiologia, portanto, é o estudo da(s) causa(s).