Bíblia: as traduções da Bíblia

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 296/1987)

Em síntese: Registra-se a tendência a fazer novas traduções da Bíblia em estilo popular. A propósito observamos que uma coisa é tornar acessível às camadas mais simples da população o texto sagrado; outra coisa é imitar a linguagem da gente simples, que carece, muitas vezes, de lógica e de vocabu­lário adequado para se exprimir. A fim de facilitar a compreensão bíblica do povo, pode-se usar uma tradução de nível médio (sem frases bombásticas nem vocábulos raros), pois, se o povo não costuma falar bem, ele costuma compreender o português bem falado (como é o do Telejornal); o mimetis­mo da linguagem popular, em vez de serviço, é desserviço prestado ao povo, pois o “achata” no seu mais baixo nível cultural, em vez de o despertar para nível superior. – Além do mais, a dignidade do texto bíblico pede que o seu nobre conteúdo seja apresentado em roupagem correta e digna.

***

O movimento de volta às fontes, inclusive à Sagrada Escritura, tem suscitado a necessidade de se tornar acessível ao grande público o texto sa­grado. Em vista disto, têm sido realizadas traduções brasileiras dos escritos bíblicos em linguagem popular. Merece especial referência a chamada “Bí­blia na Linguagem de Hoje”, doravante BLH, que, aliás, só contém o Novo Testamento; foi editada pela Sociedade Bíblica do Brasil e aprovada pela Co­missão de Pastoral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em 1973. A edição de 1973 foi revista por uma comissão de peritos católicos, que apon­taram muitas falhas lingüísticas e teológicas no texto existente; destas observa­ções, parte foi levada em consideração, parte não. Como quer que seja, a se­gunda edição foi menos censurável do que a primeira. A propósito dos sérios defeitos dessa tradução, ver PR 216/1977, pp. 520-529.

Ora no tocante a esta tradução popular da Bíblia, o Ir. Israel Nery, as­sessor nacional de Catequese da CNBB, declarou ao jornal LAR CATÓLICO que “a Sociedade Bíblica do Brasil, juntamente com a Igreja Católica, está preparando para daqui a um ano e meio o restante da tradução da ‘Bíblia na Linguagem de Hoje’; em 1975 saiu a primeira parte, com o Novo Testamen­to” (LAR CATÓLICO, edição de 22 a 28 de setembro de 1986, p. 3, sob o título “CNBB quer Bíblia em Linguagem Popular”).

A respeito da tendência à linguagem popular na tradução da Bíblia, a experiência brasileira é assaz significativa; há não somente livros, mas tam­bém folhetos litúrgicos portadores de versões populares, que não podem dei­xar de chamar a atenção dos estudiosos católicos. Eis por que nos voltamos para esta temática nas páginas subseqüentes.

1. Linguagem acessível e linguagem vulgar

Não há quem não deseje que a Bíblia se torne compreensível a todas as camadas da população. Acontece, porém, que alguns estudiosos julgam que, para torná-la útil aos leitores mais simples, devem reproduzir a lingua­gem das pessoas incultas ou até mesmo a gíria; em conseqüência, temos tra­duções da Bíblia de baixo padrão lingüístico e de conteúdo teológico ambí­guo ou mesmo infiel aos textos originais.

Ora em toda essa problemática está subjacente um equívoco: o povo pode não falar bem o português, mas costuma entender o português bem fa­lado (desde que não recorra a vocábulos e construções rebuscados); tenha-se em vista a enorme audiência do Jornal Falado na televisão, cuja linguagem é simples e correta, digna de qualquer camada da população.

Ademais é para desejar que o povo ouça um português de bom nível (sem traços de erudição bombástica) a fim de que possa melhorar o seu pró­prio linguajar. Quem apresenta tal oportunidade à gente simples, presta-lhe um serviço, ao passo que quem confirma o povo numa linguagem de baixo padrão, prejudica-o, pois lhe subtrai a ocasião de crescer; antes, confirma-o na sua pobreza cultural.

Observamos ainda que as assembléias de culto católicas são constituí­das também por pessoas de certo nível intelectual, habituadas a uma lingua­gem correta e digna. Pergunta-se então: por que nivelar por baixo o portu­guês falado? – A opção pelos pobres não significa esquecer ou ignorar a pre­sença e a participação dos não pobres na Igreja; esta é chamada por Cristo a servir a uns e outros, levando todos à graça da salvação adquirida pelo Se­nhor.

De resto, o teor da Bíblia Sagrada é denso e nobre; trata-se do mais precioso livro que os cristãos possam imaginar. Ora tal conteúdo deve apre­sentar-se com roupagem condizente, ou seja, num português que nada tenha de destoante em matéria de vocabulário e construção de frases. Afirma o Pe. Manuel Bernardes em seu estilo próprio:

“A forma costuma seguir o modo da matéria; se a matéria das nossas palavras for boa, também as palavras serão boas” (Sermões e Práticas, vol. I. p. 41).

Examinaremos agora, de modo especial, a tradução da BLH (Novo Testamento) .

2. Pontos que tocam a fé

Registraremos os quatro seguintes:

1) Rm 1,17b; Gl 3,11 b, onde se lê: “Quem é aceito por Deus por meio da fé viverá”. O original grego diz simplesmente: Ho de dikaios ek písteoos zeesetai – o que, ao pé da letra, significa: “O justo, porém, pela fé viverá”. Com estes termos, que são retirados da tradução grega do livro do profeta Habacuc (2,4) e que hão de ser interpretados à luz do mesmo, São Paulo quer ensinar que “a pessoa reta ou santa viverá (= tem a vida eterna) pela fé, ou seja, pela fidelidade à Palavra de Deus”.

Todavia a tradução da BLH é ambígua, pois pode ser entendida no sentido de que “a pessoa que, mediante a fé, se tornou justa ou aceita por Deus, obterá a vida eterna”.

A tradução francesa correspondente à BLH professa explicitamente este modo de ver, dando a ler: “Celui qui est juste aux yeux de Dieu par la foi, vivra” (GI 3,11; Rm 1,17), o que significa: “Aquele que é justo aos olhos de Deus pela fé, viverá”. Ora esta é uma doutrina luterana, que não corresponde ao que o profeta Habacuc e o Apóstolo São Paulo querem dizer no caso. Aliás, é de notar que a primeira edição do BLH colocava uma vírgu­la após “por meio da fé”, insinuando exatamente que “quem foi justificado pela fé, viverá”. A segunda edição, após as observações feitas pela comissão revisora, já não traz a vírgula, mas deixa o texto em ambigüidade, podendo ainda ser entendido no sentido luterano.

Ainda nos chama a atenção o teor de Rm 1,17ª na primeira edição de BLH: “O Evangelho mostra como Deus nos aceita: é por meio da fé, e so­mente pela fé”. – Esta fórmula era uma profissão explícita da doutrina lu­terana da “sola fides” (somente a fé). A segunda edição dissipou a tenden­ciosidade da primeira neste ponto, dando a ler: O Evangelho mostra que Deus nos aceita por meio da fé, do começo ao fim” (tirou-se o somente).

Para se dissipar toda obscuridade do texto da BLH, seria preciso guar­dar a palavra “justo” (dikaios) e não a substituir por “aceito por Deus” (o que vem a ser um particípio passado e atrai o instrumental “Por meio da fé”).

2) Lc 2,7: “Então (Maria) deu à luz o seu primeiro filho”. Em portu­guês usual, a expressão “primeiro filho”” insinua “segundo, terceiro, quar­to…”, ou seja, a teoria de que os chamados “irmãos de Jesus” eram filhos de Maria e José.

Ora a palavra grega protótokos, traduzida por “primeiro filho”, há de ser entendida no contexto da mentalidade semita que Lc 1-2 supõe. Em he­braico e aramaico, a palavra bekor, primogênito, não designava sempre o pri­meiro, mas, sim, por vezes, o bem-amado, pois, na verdade, o primeiro filho é aquele no qual, a princípio, se concentra todo o amor de pai e mãe. O pri­mogênito era pelos israelitas julgado alvo de especial amor da parte de Deus, pois devia ser consagrado ao Senhor desde os seus primeiros dias (cf. Lc 2,22; Ex 13,2; 34,19). A palavra “primogênito” podia mesmo ser sinônima de “unigênito”, pois que um e outro vocábulos na mentalidade semita desig­nam “o bem-amado”. Tenha-se em vista, por exemplo, Zc 12,1 Os:

“Derramarei sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de graça e de oração, e eles voltarão os seus olhos para Mim. Quanto àquele que transpassaram, chorá-lo-ão como se chora um filho uni­gênito; pranteá-lo-ão como se pranteia um primogênito”.

Aqui se vê nitidamente que são sinônimos entre si os termos “unigêni­to’ e “primogênito” (inseridos no paralelismo poético), significando, em ambos os casos, o bem-amado.

Por conseguinte, traduzir “protótokon” por “primeiro filho” equiva­le a fazer uma opção ou uma interpretação do texto, que não condiz com o contexto da Bíblia.

3) At 20,28; Rm 3,25; 5,9; Ef 1,7; 2,13; Cl 1,20; Hb 10,29; 13,20; lPd 1,19; Ap 1,5;5,9. – A palavra grega haima é aí traduzida não por san­gue como seria de prever, mas por morte. – Ora, se bem que a morte possa em alguns casos lembrar sangue, não se deveria deixar de usar o vocábulo sangue em tais passagens, pois é este que põe em relevo o valor da morte de Cristo como sacrifício ou como vítima de expiação pelos pecados do mun­do. O caráter sacrificial da morte de Cristo é essencial à mensagem do Novo Testamento.

4) Mt 16,19. Diz Jesus a Pedro, conforme a BLH: “Eu lhe darei as chaves do Reino do céu; o que você proibir na terra, será proibido no céu, e o que permitir na terra será permitido no céu”.

Os tradutores puseram “proibir-permitir” em lugar de “ligar-desligar”. Ora o binômio “ligar-desligar” (em aramaico, asar e sherá ou hithir) é da lin­guagem técnica rabínica; significa, antes do mais, atos de jurisdição, pelos quais os rabinos excomungavam (ligavam) ou absolviam da excomunhão (desligavam). Ulteriormente significava decisões doutrinárias ou jurídicas, que ou proibiam, declaravam ilícito (ligavam) ou permitiam, declaravam lí­cito (desligavam). – Donde se vê que a tradução “proibir-permitir” não abrange todo o conteúdo do texto original, reduzindo-o a matéria de Moral, quando, na verdade, o que Jesus entrega a Pedro, conforme o texto original, é o poder de governar a Igreja tanto no plano jurídico, como no da Moral e no da doutrina. A própria imagem das chaves, que Jesus consigna a Pedro, lembra a jurisdição, ou seja, o poder de abrir e fechar a comunhão com a Igreja em nome do Senhor Jesus. As sentenças de Pedro são confirmadas pelo próprio Deus.

Em conseqüência, teria sido necessário conservar o binômio “ligar-­desligar” na tradução; o seu significado técnico poderia ser explicado no vo­cabulário da BLH (pp. 719-728). Qualquer tentativa de substituir o binômio “ligar-desligar” eqüivale a uma interpretação, que pode ser tendenciosa, co­mo é de fato no caso da BLH. – A propósito do significado de tal binômio na teologia dos rabinos antigos, veja PR 132/1970, pp. 538s. 543-547.

As mesmas observações devem ser feitas a respeito de Mt 18,18, onde reaparece o binômio “ligar-desligar”, desta vez para designar o poder de ju­risdição e magistério que toca aos doze apóstolos reunidos em colegiado.

3. Outras mudanças de sentido

Acontece que as traduções populares, querendo evitar palavras técni­cas ou específicas do vocabulário bíblico-teológico, substituem-nas por ter­mos mais comuns, todavia menos significativos ou portadores de sentido va­go e genérico. Cometem-se então autênticas ambigüidades ou mesmo erros de tradução, que afetam a própria mensagem bíblica. Considerem-se os se­guintes pontos:

1) O texto da BLH não usa o vocábulo aliança, substituindo-o por acordo; cf. Lc 22,20; Hb 10,29. . . – Ora a palavra aliança é teologicamente consagrada; tem ressonância que acordo não tem. Na verdade, importa usar a palavra aliança (que não é de todo estranha ao povo), pois o seu emprego abre ao leitor o acesso aos escritos do Antigo Testamento, que tratam da teologia da aliança, ao passo que a omissão deste vocábulo o torna cada vez mais hermético ao leitor de pouca formação religiosa.

2) A primeira bem-aventurança (Mt 5,3) reza na BLH: “Felizes os que sabem que são espiritualmente pobres. .”Primeiramente pergunta-se: qual a razão de não manter a palavra bem-aventurados, já inveterada na lingua­gem cristã? Em segunda instância, observamos que a primeira bem-aventu­rança não consiste em saber …, mas, sim, em viver; ela é dirigida àqueles que têm um coração simples, humilde e despretensioso como é dos pobres (anawim), que o Antigo Testamento muito louva, na medida em que são os fiéis de Deus, despojados de qualquer ilusão a respeito da escala dos valores; os anawim são os que confiam em Deus, e não em si, como fazia S. Teresi­nha do Menino Jesus, que viveu intensamente a primeira bem-aventurança.

3) Em Hb 11,1 a BLH dá a ler: “Ter fé é estar certo de que vamos re­ceber as coisas que esperamos, e ter a certeza de que existem as coisas que não vemos”.

Nesta frase aparece duas vezes o radical certo (certeza) para traduzir vocábulos gregos diferentes, a saber: hypóstasis (garantia, penhor) e élenchos (demonstração, prova). Percebe-se, pois, que a tradução é pobre em recursos de vocabulário, com detrimento da significação do texto bíblico traduzido.

4) Em At 18,6 a BLH emprega o termo xingar em lugar de blasfemar (ao contrário, em Mt 26,65 ficou a palavra blasfemar, em fidelidade ao texto grego). Ora blasfemar é injuriar a Deus, ao passo que xingar é, geralmente, ofender os homens.

5) A BLH nunca usa o vocábulo parábola, mas substitui-o por compa­ração (cf., por exemplo, Mt 13,10). Ora a parábola é processo didático já vigente entre os rabinos; o nome está consagrado pelo uso na linguagem cris­tã; ao contrário, comparação é vocábulo mais pobre de sentido e mais gené­rico.

6) A BLH em Mt 22,21 utiliza Imperador em lugar de César. – Note-se que está consagrado o adágio “Dai a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César”. Se a linguagem popular em si é pobre, observa-se que ela se foi enriquecendo no decorrer dos tempos precisamente por assimilar textos e termos bíblicos; se retiramos esses termos ao povo, empobrecemo-lo mais ainda.

7) Empregado miserável aparece em vez de servo mau em BLH (Mt 18,32). A expressão miserável é mais passional e teatral do que mau (termo mais sóbrio). Ademais não se pode dizer que o povo não conhece a palavra mau.

8) Maluco em lugar de louco ocorre em At 12,15; 26,24 (BLH). Ora ma­luco tem conotações vulgares (o que não é a mesma coisa que populares); ade­mais o povo sabe perfeitamente o que é estar louco.

9) Bobo e tolo substituem insensato em Mt 23,17; 1Cor 15,36; GI 3,1 (BLH). – Sabe-se que a palavra insensato é um pejorativo mais nobre e dig­no do que bobo e tolo.

10) Antepassados está em lugar de antigos em Mt 5,33 (BLH). O povo sabe muito bem o que quer dizer antigos; saberia tão bem o que são os antepassados?

11) Em Mt 28,12; 26,56; 27,1 (BLH) lideres judeus aparece em vez de anciãos. – Ora líder é um anglicismo desnecessário; ademais significa dirigen­te em geral, quando os anciãos eram um tipo de dirigentes que se distingui­am dos chefes dos sacerdotes de Israel.

12) Casa de oração encontra-se em lugar de sinagoga em Mt 4,23; 10,17; Lc 7,5. Sinagoga é mais preciso do que o seu substitutivo, que pode designar também igrejas e templos cristãos.

13) Pegar em lugar de tomar ocorre freqüentemente na BLH; cf. Mt 26,26s; Mc 9,27.36… Pegar é um tanto vulgar; de outro lado, não há quem ignore o que é tomar.

14) Em Tg 2,20 a BLH substitui: “Queres, ó homem insensato, a prova de que a fé sem as obras é vã?” por “Seu tolo! Você quer saber de uma coi­sa? A fé sem boas ações não vale nada”. Ora a tradução substitutiva é mais agressiva do que a anterior; envolve um tom de ameaça que não existe no texto anterior; mais uma vez cede à tendência para o teatral que por vezes caracteriza a BLH. Além disto, o Apóstolo está oferecendo uma prova de que a fé sem as obras é morta (prova formulada no v. 21) – o que não apare­ce na nova tradução.

15) Ainda em Lc 8,49 a BLH tem um acréscimo ao texto original que se torna grotesco. Tal é o interpelativo: “Seu Jairo, a menina já morreu. Não aborreça mais o Mestre”; cf. Mc 5,35. O original diz simplesmente: “Tua fi­lha morreu; não perturbes mais o Mestre!”

Outros muitos exemplos se poderiam aduzir. Evidenciam todos que não se devem trocar expressões consagradas do texto bíblico, pois freqüentemente as palavras substitutivas não exprimem o que as anteriores dizem; o novo texto se torna, por vezes, irreconhecível, quando não desviado do seu significado original. – Seria, pois, para desejar que, conservadas as palavras típicas da Bíblia, se pusessem notas de roda-pé explicativas dos termos que possam causar algumas dificuldades. Assim, de um lado, não se correria o perigo de alterar o sentido do texto e, de outro lado, dar-se-ia aos leitores não instruídos a ocasião de aprender algo de novo.

4. O tratamento “você, vocês”

As clássicas traduções portuguesas usam os pronomes tu e vós, sendo que tu é forma consagrada em muitas línguas como tratamento devido à Divindade, de acordo com os modelos grego e latino; tenhamos em vista o espanhol tu, o francês tu, o rumeno tu, o inglês Thou, o alemão Du.

As novas traduções brasileiras têm preferido o par você, vocês, aprova­do por pequena maioria em Assembléia da CNBB. Com o respeito devido à CNBB, desejamos propor algumas considerações sobre o assunto:

– o tratamento você não é usado por todo o povo de língua portu­guesa, nem mesmo nas várias regiões do território brasileiro, pois no Sul pre­valece tu;

– os pronomes você, vocês não têm casos oblíquos próprios, de modo que é preciso recorrer aos pronomes ele, ela, eles, elas (a saber: o, a, os, as; lhe, lhes). Ora isto redunda em ambigüidades; para evitar que estas ocorram, usa-se o pronome você com a preposição a (a você, em vez de lhe), o que torna a construção da frase monótona e enfadonha;

– o povo simples compreende facilmente o tratamento em tu. Quan­to à fórmula vós, ele a pode aceitar sem grande dificuldade, como aceita muitas palavras da linguagem técnica moderna (algumas derivadas do inglês ou do francês), que se vão (ou foram) incorporando à nossa língua.

Donde se vê que não há necessidade de trocar o tratamento tu, vós por você, vocês. Este tende a banalizar muitas cenas de alto valor religioso, le­vando-as ao grotesco; tenham-se em vista o episódio da Anunciação do anjo a Maria, onde a BLH apresenta os seguintes dizeres:

“Não tenha medo, Maria. Deus está contente com você. Você vai ficar grávida, dará à luz um filho e vai chamá-lo de Jesus” (Lc 1,30s).

Notem-se neste texto a repetição consecutiva de você, a cacofonia de­rivada de ficar grávida, o duplo vai a significar o futuro.

O anjo diz a Zacarias: “Sua mulher vai ter um filho e você dará a ele o nome de João” (Lc 1,13 na BLH).

O anjo diz às mulheres após a ressurreição: “Sei que vocês estão pro­curando Jesus, que foi crucificado. . . Ele ressuscitou e vai adiante de vocês para a Galiléia. Lá vocês vão vê-lo!” (Mt 28,5.7).

Além da multiplicação de você(s), necessária para evitar as ambigüida­des, o texto (e, em geral, as traduções populares) evita a forma sintética de futuro, usando o verbo ir com o infinitivo (vai ter, vão ver…). Ora também isto banaliza a linguagem; nem é necessário para a boa compreensão do po­vo, pois este entende o futuro sintético (serei, terei, irei…). Vê-se, pois, que em muitos e muitos casos as novas traduções não estão preocupadas apenas com a assimilação popular do texto bíblico, mas se empenham por um au­têntico mimetismo da linguagem grotesca, chegando mesmo a reproduzir erros de gramática ou de sintaxe. Ora o mimetismo é supérfluo para a boa Pastoral; só traz desvantagens, como temos procurado mostrar (tenhamos em vista especialmente Lc 8,49: “Seu Jairo…)

5. Argumentando.. .

Ainda merecem atenção dois argumentos geralmente aduzidos para fa­vorecer as novas traduções:

1) “O povo entende muito melhor o texto novo. Portanto…”

– Não negamos que o povo leia e compreenda melhor as versões no­vas. Mas perguntamos, está compreendendo melhor a Bíblia ou uma paráfra­se e interpretação da Bíblia?… paráfrase de sentido depauperado ou diluí­do. Sabemos que nem todo texto fácil e agradável é, por isto mesmo, mere­cedor de aprovação. Por conseguinte, não basta tomar como critério de ava­liação das novas traduções a sua capacidade de ser assimiladas pela gente simples.

2) “Não temos o direito de impor ao povo modesto categorias, e ex­pressões das classes dominantes. Não queiramos ser opressores nem no pia­no da cultura religiosa”.

– Respondemos que o povo mesmo se compraz em falar uma lingua­gem mais lógica, mais conforme os padrões da gramática e da sintaxe. As pessoas simples anseiam por subir de nível cultural (espontaneamente usam palavras raras e difíceis quando o podem). Em conseqüência, quem as ajuda a elevar-se, presta-lhes grande serviço, ao passo que quem as “achata” em baixo nível cultural, as oprime. Existem normas de lógica e de construção de frases que são objetivas e que valem para todas as camadas sociais.

Verdade é que toda língua viva evolui. Mas cremos que os fatores de evolução não devem ser a pobreza cultural, a ignorância, a míngua de vo­cábulos e a falta de lógica ou de raciocínio, a preguiça de pensar… Temos a obrigação de procurar cultivar a riqueza da mente e fazer que esta seja o apanágio de todas as classes sociais. Uma vez garantido este valor, deixemos que a língua evolua; ela evoluirá por si mesma.. .

Eis algumas considerações que nos ocorria formular a respeito das nu­merosas “tradições populares” da Bíblia que se oferecem ao público brasilei­ro e deixam muitas pessoas perplexas.

Estêvão Bettencourt O.S.B.