Bíblia: nossos pais nos contaram

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 287/1986)

Em síntese: O livro em pauta é um espécimen da corrente moderna de re-leitura da Bíblia em chave sócio-política. Marcelo de Barros Souza narra a história sagrada como sendo a de um povo oprimido econômica e politicamente por outros povos; tende a se libertar, mas nem sempre é feliz na realização desse projeto; incide, por exemplo, na tentação de instituir um rei, que o governa e torna a oprimir. Este modo de reler a Bíblia vem a ser unilateral e esvazia a riqueza da mensagem bíblica; especialmente os capítulos 1-3 do Gênesis, que contêm verdades fundamentais para a fé (justiça original, pecado dos primeiros pais, promessa de Messias…), são desviados em sentido alegórico, para significar lutas entre povos e classes sociais.

Aliás, o método exegético que Marcelo de Barros Souza adota, merece sérias restrições. Na segunda parte deste artigo, é apresentada a doutrina do Concílio do Vaticano II referente à interpretação dos livros sagrados (ver Constituição Dei Verbum n° 12): apregoa primeiramente o estudo da face humana da Bíblia (exame dos textos originais, dos gêneros literários, do contexto histórico e geográfico dos autores sagrados…); a seguir, incute que o texto sagrado seja colocado no quadro geral da Revelação Divina, devendo ser interpretado em consonância com esta. À Igreja cabe, em última instância, a função de transmitir autenticamente a mensagem dos livros sagrados. Por último, o artigo examina algumas objeções levantadas pela nova corrente exegética contra a interpretação científica da Bíblia.

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A Sagrada Escritura, livro básico para a formação dos cristãos, tem sido mais e mais difundida no povo de Deus. Existe mesmo uma corrente de estudiosos que procura transmiti-la não somente em linguagem popular, mas também a partir da ótica do povo e para o povo; chegam a apregoar certa oposição entre a concepção científica (que seria elitista) da leitura bíblica, muito em voga no século XIX, e a leitura da Palavra viva, feita segundo critérios sociológicos, econômicos e políticos. O enfoque-chave seria o de uma classe social oprimida que luta por conseguir a sua libertação frente à classe opressora. Esta maneira de proceder é justificada pelos seus mentores, segundo os quais a Bíblia foi escrita por pobres (os pobres de Israel) e só pode ser lida e entendida adequadamente pelos pobres de hoje: “a Bíblia vê as coisas do ponto de vista do pessoal mais humilde, do povinho” (Suplemento Informativo de Bíblia-Gente n° 1, p. 1). Consequentemente tal modo de ler a Bíblia se interessa muito por ação, transformação, principalmente no campo social.

Espécimen muito significativo dessa nova exegese da Bíblia é o livro do Pe. Marcelo de Barros Souza O.S.B., Diretor da Escola de Evangelho da diocese de Goiás e Assessor de Teologia do Secretariado Nacional da Comissão Pastoral da Terra, livro intitulado “Nossos Pais nos Contaram. Nova Leitura da História Sagrada”. Como diz o subtítulo, tal obra pertence à categoria das releituras bíblicas, freqüentes em nossos dias.

Abaixo proporemos breves observações sobre o livro em pauta e o método que ele adota.

1. O LIVRO: CONTEÚDO E COMENTÁRIOS

1. O autor tenciona contar “velhas histórias” de “maneira nova”. Com efeito, considera toda a história do Antigo Testamento através do prisma da economia, da política, da sociologia e da religião; apresenta assim “um povo oprimido (Israel) que lutava para se libertar, quando apareceu uma força extraordinária, a presença de alguém que veio fazer caminho conosco” (cf. p. 13). Esse alguém é o Senhor Deus; a sua atuação se confunde com a atuação do próprio povo que luta. “Tudo virou uma coisa só. A ação de Deus se mostrou clara através do trabalho e luta do povo. Quando a Bíblia diz: ‘Deus fez. Deus falou’, está dizendo também ao mesmo tempo: ‘O povo fez, o povo falou'” (p. 14).

2. A preocupação com os elementos sócio-políticos leva o autor a re-interpretar toda a história sagrada, especialmente os onze primeiros capítulos do Gênesis, que propõem verdades básicas da fé cristã. Estas são totalmente silenciadas em favor de uma exegese artificial, Eis uma amostragem deste procedimento:

“Um tempo depois daquela reunião de Siquém, o povo de Israel foi muito influenciado pela cultura dos vizinhos e cananeus, que adoravam a serpente como sendo deus. E, como os vizinhos, o povo de Israel desejou também ter um rei. Até então a comunidade das tribos vivia na igualdade. E dizia que o único rei do povo era Deus. Mas começou a querer ter um rei e isso mudou muito na vida deles. O povo da roça foi quem mais sofreu”.

Aí era normal que, nesta situação, eles lembrassem do paraíso, quando Deus criou o homem e tudo era bem melhor. E por que de repente tudo ficou diferente?

Para explicar eles contaram uma história:

Gn 3 O que estava por trás desta história

“l. A serpente era o mais sabido de todos os animais que o Senhor tinha criado.

A serpente era adorada pelos cananeus e por isso representava a sociedade dos cananeus. De fato, a sociedade dos cananeus era mais sabida que a de Israel e também mais avançada.

2. A serpente disse à mulher: É verdade que vocês não podem comer das frutas de nenhuma árvore do jardim?

Foi a sociedade dos cananeus que influenciou a comunidade de Israel a desejar um rei.

3. A mulher respondeu: Podemos comer dos frutos das árvores do jardim, menos do fruto da árvore que está no meio do jardim porque Deus nos disse: se vocês comerem dele, morrem.

Nas cidades secas da Palestina, só quem tinham jardim era o palácio do rei. Israel tinha autoridades, mas não centralizadas (no meio do jardim). Isso Deus tinha proibido.

4. A serpente respondeu: Vocês não morrem de jeito nenhum. Deus sabe que no dia em que vocês comerem deste fruto, vão abrir os olhos e vão ser como deuses. Vão conhecer a felicidade e a infelicidade.

O fruto era o poder de reinar. Antigamente os reis eram considerados como deuses.

5. A mulher viu que a árvore devia ser boa para comer e era bonita de se ver. Tomou do seu fruto, comeu e depois deu ao seu marido que a acompanhava. E ele comeu também.

O poder dos reis dá muita segurança e prestigio. Dá aparência de segurança nacional.

6. Então os olhos deles se abriram e notaram que estavam nus. Cada um fez tiras de folhas para se cobrir.

Quando Israel passou a ter reis começou a desigualdade entre o próprio povo de Deus e as comunidades do campo ficaram mais pobres e sem nada.

7. Ouviram então os passos do Senhor na hora do entardecer. O homem e a mulher se esconderam envergonhados.

Com a experiência da realeza houve uma crise religiosa no meio do povo.

8. O senhor chamou o homem e perguntou: Onde está você.

9. Ele respondeu: Escutei sua voz no jardim e fiquei com medo porque estava nu. Por isso me escondi.

10. Quem revelou a você que estava nu? Você comeu da árvore que proibi de comer?

11. A mulher que o Senhor me deu como companheira me deu da fruta e eu comi.

Nos povos antigos a mulher era ligada à propriedade da terra. É a mulher que dá fruto.

12. O Senhor disse à mulher: O que foi que você fez? A mulher respondeu: A serpente me iludiu e eu comi. Aí Deus amaldiçoou a serpente.

Foi naquela época que a sociedade de Israel venceu de uma vez a sociedade dos cananeus que justamente influenciou Israel a ter reis.

13. Já que fizeste isto, sejas maldita entre todos os animais da terra. Vais andar te arrastando no chão, e terás de comer poeira da terra a vida toda.

A partir daí os cananeus passaram a ser dominados pelo povo de Israel. As comunidades do povo de Deus justificavam isto com histórias como esta (Deus amaldiçoou a sociedade dos cananeus, como descendentes da serpente que eles adoravam).

14. Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. A descendência dela vai esmagar tua cabeça e tu lhe pegarás no calcanhar.

15. E disse à mulher: Vou lhe dar muitos sofrimentos na gravidez e você vai dar à luz seus filhos com dores. Vai precisar de homem e ele vai dominar você.

Os sofrimentos de Israel em sua história vão ser como dores de parto. Os profetas de Deus avisaram ao povo sobre este perigo de dominação dos reis nas comunidades (l Sm 8).

16. Finalmente Deus disse ao homem: Como você atendeu à sua mulher e comeu da fruta que eu proibi de comer, a terra seja maldita por sua culpa.

A região de Judá era de terra muito ruim para a lavoura.

17. Você vai precisar de se cansar para conseguir tirar da terra a sua comida todos os dias. A terra vai dar espinhos.

E a vida dos lavradores, mesmo mais no norte, onde a terra era melhor no tempo dos reis, era muito dura e de muita opressão.

18. Você vai comer o pão com o suor do seu rosto até voltar à terra porque você é pó e vai de novo virar pó.

19. O homem chamou a sua mulher de Vida (Eva), por ela ser a mãe de todos os vivos. O Senhor fez para o homem e a mulher roupas de pele e os vestiu. Depois disse:

O homem se fez como um de nós. Já que se fez de juiz do que é bom e do que é mau não vá se apropriar também da árvore da vida, porque ao comer desta árvore viverá para sempre.

Por isso Deus expulsou o homem do jardim do Éden para o homem cultivar a terra da qual foi feito. E colocou anjos com espadas de fogo na entrada do jardim para impedir o homem de ir até a árvore da vida

A Comunidade de Israel aprende que tem uma missão. Pouco a pouco vai notar que esta missão é para com todos os outros povos = dar a eles a revelação do Deus vivo e o modo dos homens conviverem entre si.

Deus impede que o rei de Israel seja absoluto. O rei não pode tomar o lugar de Deus.

Mais tarde os impérios opressores (persas, assírios, babilônicos), que acreditavam nestes anjos com espadas de fogo, é que impediram os reis de Israel de serem donos de tudo”.

Este texto, bem típico da exegese da escola em foco, sugere algumas observações:

a) há alegorização arbitrária ou realizada sem provas: o texto bíblico que conta a história do pecado original, seria apenas uma versão figurada de acontecimentos políticos ocorridos em Israel após o regime de Josué (1220-1200 a.C.).

As autênticas versões de tais acontecimentos ou da instituição da monarquia se encontram de maneira clara, sem alegorias, em 1Sm 8, 1-22; 9 1-10 16-10 17-24; 11, 1-15. Se, portanto, queremos conhecer o modo como Israel considerava o surto da realeza, devemos recorrer a 1Sm e não a Gn 3; este texto é violentado arbitrariamente quando submetido à interpretação proposta; seria preciso que o exegeta comprovasse a sua nova versão mediante paralelos literários, apresentação de simbologia semelhante e de expressionismo orientais correspondentes. Muitas vezes as novas escolas de exegese falham por afirmar sem provar, ou por formular hipóteses mais ou menos gratuitas, que pouco adiante, no decorrer da exposição, reaparecem como sentenças certas, as quais dão margem à formulação de novas hipóteses, que por sua vez mais adiante são tidas como definitivas…

b) O texto de Gn 3, 1-24 contém, segundo toda a Tradição crista (firmada pelo magistério da Igreja), profundas verdades atinentes à origem do gênero humano: este, no início da sua história, foi elevado à filiação divina, gozando de dons gratuitos; submetido a uma prova, o homem disse Não ao convite de Deus e perdeu o estado de santidade original em que se achava; em conseqüência, todos os homens nascem carecendo de tais dons – carência esta que se chama “o pecado original originado”; cf. PR 285/ 1986, pp. 84s.

c) Significativo é o fato de que para Gn 3,15 (3,14 no texto transcrito atrás) o autor não tem interpretação alguma. Na verdade, tal versículo é o proto-evangelho ou o primeiro anúncio da Boa Nova: a mulher entraria em inimizade com a serpente tentadora e a descendência da mulher esmagaria a cabeça da serpente. Entendido em sua plenitude, este texto se refere a Maria SS. e a Jesus Cristo. – Ora nada disto se encontra no livro em foco; a mulher, para o autor da obra, significa a própria comunidade de IsraeI (cf.p.26)!

3. A história de Caím e Abel (Gn 4, 1-16) é entendida também de modo alegorizante. fora da linha de pensamento do autor sagrado. Eis como o explica Marcelo de Barros Souza:

“As comunidades antigas tinham uma continuação para esta história do homem expulso do jardim de Deus. É difícil saber quando foi que surgiu esta história de Caím e Abel. Mas provavelmente comenta o relacionamento entre comunidades conhecidas uma da outra (Caim e Abel) e o desentendimento entre o povo da roça (Israel) e o povo da cidade (cananeus)”. (pp. 26s).

A exegese científica teria sido muito útil no caso, pois estuda as características literárias, arqueológicas, geográficas… do texto de Gn 4, 1-16 e tira desta análise conclusões objetivas e independentes de premissas preconcebidas. Em vez de falar de desentendimento entre povo da roça e povo da cidade, a exegese científica leva a ver em Caím um famoso fratricida, que é apresentado pelo autor sagrado logo após o pecado dos primeiros pais para lembrar ao leitor que, quando o homem diz Não a Deus, inevitavelmente se dispõe a dizer Não (ou a matar) a seu irmão.

4. Em conseqüência das suas preocupações sócio-políticas, Marcelo Souza não focaliza devidamente a artéria central do Antigo Testamento, a saber: há uma Aliança do Senhor Deus com o gênero humano travada no paraíso, violada pelo pecado e objeto de promessas subseqüentes, que culminam na restauração dessa Aliança em Jesus Cristo. A história bíblica gira em torno destes dois eixos ou dois homens compendiosos: o primeiro Adão e o segundo Adão (Jesus Cristo). Entre um e outro situam-se alianças parciais e provisórias, que são etapas no caminho da restauração: as alianças com Abraão, com Moisés e o povo de Israel, com Davi e sua casa… O Antigo Testamento, à luz do Cristianismo, toma o seu pleno sentido se considerado como a história de uma lenta pedagogia de Deus, que prepara o homem pecador a receber a mensagem do Messias. Este traz ao homem muito mais riquezas espirituais do que as que foram perdidas pelo pecado de Adão. A grande graça do Messias é a vocação do homem a ver Deus face-a-face e participar do consórcio da vida trinitária (cf. Gl 4,6; Rm 8,15).

Está claro que o homem assim amado por Deus no Antigo e no Novo Testamento deve esforçar-se por realizar em torno de si um mundo justo e fraterno, que espelhe a Lei do Senhor e seja uma semente do Reino de Deus. Todavia essa tarefa sócio-política não é meta primeira da Revelação bíblica; vem a ser a decorrência da mensagem teológica e dos dons estritamente sobrenaturais que o Senhor Deus quis conceder aos homens através dos tempos.

5. É necessário reconhecer que o livro de Marcelo de Barros Souza é escrito de maneira agradável e fácil, preenchendo a sua finalidade de atingir o povo simples. Faz muito bem ao justapor textos do Antigo e do Novo Testamento, mostrando como certos personagens ou episódios foram aprofundados pelos autores do Novo Testamento; é pena, porém, que este procedimento não tenha tido mais ampla repercussão na obra do autor; com efeito, o Antigo Testamento, em última análise, se torna patente no Novo, enquanto o Novo Testamento está latente no Antigo.

Passemos agora a considerações sobre o próprio método de interpretar a Bíblia.

2. COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

O Concílio do Vaticano II, fazendo eco à Tradição exegética católica, formulou em poucas sentenças o método a ser adotado para interpretar autenticamente a S. Escritura. Ver Constituição Dei Verbum n° 12, cujo teor vai aqui reproduzido.

A S. Escritura é livro divino e humano. Divino porque o próprio Deus fala através do texto sagrado; a Bíblia não apenas contém, mas é a Palavra de Deus. Humano porque o Senhor Deus quis servir-se de homens, que contribuíram com sua linguagem e sua cultura para a redação do texto sagrado.

Em conseqüência, a interpretação da Bíblia se desenvolve em duas etapas: 1) análise da face humana do texto sagrado; 2) percepção da mensagem divina transmitida por essa face humana.

2.1. Análise da face humana

Já que Deus falou mediante homens, o intérprete deve, antes do mais, procurar entender o que os autores sagrados (hagiógrafos) queriam dizer em seu linguajar próprio. Para tanto, deve recorrer aos idiomas originais do texto bíblico (o hebraico, o aramaico. o grego) e ao contexto histórico, geográfico, social do autor bíblico a fim de entender o texto como o hagiógrafo o entendia. Com outras palavras: o intérprete deve transpor-se para o mundo dos judeus e não judeus anteriores a Cristo ou do século I após Cristo, mundo esse que tinha seus problemas próprios e seu modo peculiar de os colocar. De modo especial, merecem atenção os chamados “gêneros literários” ou as normas de vocabulário e estilo vigentes entre os antigos para redigir história, profecias, poesia, leis; com efeito, não se pode interpretar uma poesia como se interpreta uma lei (a poesia é essencialmente figurada, reticente, ao passo que a lei deve ser sempre precisa e breve).

“A verdade é apresentada e expressa de maneiras diferentes nos textos históricos, proféticos ou poéticos ou nos demais gêneros de expressão. Ora é preciso que o intérprete pesquise o sentido que, em determinadas circunstâncias, o hagiógrafo, conforme a situação do seu tempo e de sua cultura, quis exprimir e exprimiu por meio dos gêneros literários então em uso “ (Dei Verbum no. 12).

Isto não quer dizer que todo leitor da Bíblia deva conhecer línguas e cultura orientais, mas implica apenas que procure certa iniciação antes de abordar determinado livro; para tanto, podem servir-lhe as páginas de introdução que as boas edições da Bíblia costumam apresentar. O leitor estará consciente de que não deve ler a Bíblia como leria uma página de jornal ou um escrito moderno, redigido segundo as categorias de pensamento e linguagem do próprio leitor.

2.2. Percepção da mensagem divina

Embora seja indispensável, não basta ao intérprete conhecer exatamente o sentido humano de determinada página bíblica; isto redundaria em mutilação da mensagem respectiva. Em conseqüência, deverá colocar o texto sagrado dentro do contexto da Revelação Divina; cada página bíblica é iluminada pelas demais e deve ser entendida em harmonia com estas ou segundo a analogia

(= consonância) da fé. Afirma o Concílio:

“Visto que a S. Escritura deve ser lida e interpretada naquele mesmo Espírito em que foi escrita, para apreender com exatidão o sentido dos textos sagrados, deve-se atender com não menor diligência ao conteúdo e a unidade de toda a Escritura, levadas em conta a Tradição viva da Igreja toda e a analogia da fé.

Todas essas coisas que concernem à maneira de interpretar a Escritura, estão sujeitas, em última instância, ao juízo da Igreja, que exerce o divino mandato e ministério de guardar e interpretar a Palavra de Deus” (Dei Verbum n° 12).

Vê-se que em última análise, a interpretação da Bíblia está sujeita aos critérios da fé: cremos que Deus falou aos homens e quis confiar à sua S. Igreja o ministério da Palavra, assegurando-lhe para isto a assistência do Espírito Santo (cf. Mt 16, 16-19; Lc 22,31s; Jo 14. 16s; 16, 13-15).

Estas normas são válidas para todos os homens e todos os tempos. Uma vez depreendida a mensagem teológica do texto sagrado, compreende-se que seja preciso procurar as implicações concretas da mesma na conduta dos leitores. A Palavra de Deus é viva e eficaz; quer ser transformada em gestos significativos; por conseguinte, ela inspira uma autêntica Ética cristã, que atenderá aos anseios de justiça e fraternidade dos homens.

Resumindo, podemos propor o seguinte roteiro de interpretação da Bíblia:

1) penetração científica

2) percepção da mensagem teológica

3) aplicação à vida ética dos leitores

Examinemos agora algumas objeções que se fazem a tal método.

2.3. Objeções

1) “A exegese cientifica é ideológica, porque realizada por sábios, que são naturalmente levados a trabalhar em favor da classe dominante contra a classe

dominada”.

Em resposta, devemos distinguir a erudição ou o saber, que inegavelmente tem enorme valor, e a atitude ética com que alguém cultiva o saber. Como tal, a erudição é moralmente neutra; pode ser aplicada tanto para o bem como para o mal. Por conseguinte, não se diga que toda erudição é ideológica e opressora. Ao contrário, o estudioso movido por autêntico espírito cristão poderá tanto melhor servir aos seus irmãos quanto mais capacitado estiver no plano da ciência.

2) “A exegese científica é abstrata; perde-se em teorias, que ficam bem longe da realidade do povo simples”.

Respondemos: o saber é sempre precioso; é a penetração dentro da verdade, para a qual a inteligência humana foi feita. Em todo homem há uma sede espontânea de verdade. Não se deve, pois, desprezar o estudo especulativo; ao contrário, é preciso que ele se torne o bem oferecido a todos os homens – ricos e pobres. Doutro lado, a filosofia ensina que a verdade é inseparável do bem; por conseguinte, ela deve ter repercussões na vida prática. Isto é particularmente válido para as verdades da fé ou para a mensagem escriturística; toda a erudição

bíblica só tem sentido pleno se leva o cristão a melhor conhecer e amar o Senhor Jesus num genuíno serviço aos irmãos.

Ponderemos ainda o seguinte: por não levarem em conta a face humana da Bíblia, muitos leitores se dão a interpretações fantasiosas, seguindo critérios meramente subjetivos, decorrentes de um fervor mal iluminado. É o que acontece, por exemplo, com os cristãos que julgam poder depreender da Bíblia a data do fim do mundo, as catástrofes que o precederão, a existência de discos voadores, de habitantes em outros planetas e outras notícias “proféticas”.

O cristão que é materialmente pobre, mas carece de orientação para ler a Bíblia, poderá deduzir desta as noções mais estranhas, que ele atribuirá ao Espírito Santo. Verdade é que Deus fala muitas vezes aos pequeninos ou aos que, além da pobreza material, cultivam a pobreza espiritual; mas o Senhor Deus não está obrigado a fazer milagres para revelar ao homem o que este pode adquirir pelo estudo.

3) “Não se deve refletir sobre a Bíblia em favor do pobre ou para o pobre (isto redunda em assistencialismo e paternalismo), mas sim com o pobre (este deve ser o autor da sua história, sem ter que depender dos poderosos).

Respondemos: o estudioso autenticamente cristão é um pobre que, com os seus irmãos pobres, tem o zelo pela implantação do Reino de Deus. Com efeito; pobres não são apenas aqueles que carecem de bens materiais, mas são também os que têm o espírito de pobre, isto é, o desapego e a liberdade interior que um cristão deve ter dentro de si. Um tal cristão aplicará sua erudição em favor dos semelhantes. – De resto, em vez de jogarmos os homens uns contra os outros, procuremos fazer que se sintam solidários entre si, unidos na família dos filhos de Deus. Isto será possível se todos se empenharem pela conversão do coração, da qual resultará certamente um mundo melhor.

4) “Os pobres são o autor humano da Bíblia e são eles, em última instância, que têm a chave da sua interpretação”.

Respondendo, devemos observar que, entre os autores dos livros sagrados, houve homens das mais diversas classes sociais: Isaías, por exemplo, era um freqüentador da corte do rei Acaz (736-716); Ezequiel e sua escola eram de estirpe sacerdotal; os autores de livros históricos do Antigo Testamento eram provavelmente oficiais da corte dos reis; Amos era pequeno pastor. No Novo Testamento, São Mateus era cobrador de impostos; São Lucas, médico. Verdade é que todos tiveram o espírito de pobre. Em conseqüência, não se pode dizer que somente os pobres no plano material têm a chave da interpretação bíblica; a pobreza material não recomenda ninguém a Deus a não ser que acompanhada de espírito de pobreza; este é o valor decisivo (que se traduz certamente em sobriedade e simplicidade no plano material). – Poderíamos, aliás, reformular a objeção proposta nos seguintes termos: O Espírito Santo é o autor principal dos livros sagrados; por conseguinte, aqueles que têm o Espírito Santo, possuem a chave de interpretação dos mesmos, independentemente de categoria social.

São estas algumas ponderações que no momento parecem importantes para esclarecer o uso da S. Escritura nas comunidades do povo de Deus. Como se vê, a Igreja, como Mãe e Mestra, tem algo a dizer sobre tão momentoso assunto, a fim de que não se desvirtue a riqueza da Palavra de Deus.