(Revista Pergunte e Responderemos, PR 224/1978)
de Alfons Weiser
Em síntese: O livro de Alfons Weiser apenas reconhece como fatos certamente históricos os milagres de cura realizados por Jesus; o autor, porém, julga que tais curas poderiam ser equiparadas às dos taumaturgos helenistas; os evangelistas as terão entendido numa visão de fé, narrando-as como testemunhos da crença da Igreja nascente.
Ora a teologia ensina que o milagre é um sinal outorgado por Deus aos homens para corroborar a Revelação oral; é uma palavra extraordinária e enfática que ilustra a linguagem comum. Os milagres são plenamente compreensíveis à luz da Encarnação
– mistério pelo qual Deus se faz homem para falar aos homens linguagem humana.
Os teólogos estipularam os requisitos para que se possa diferenciar um autêntico milagre (sinal de Deus) de fenômenos meramente naturais psicológicos ou parapsicológicos. Com efeito, o sinal de Deus deve ser
– um fato real histórico (excluem-se as narrações fantasistas populares);
– … inexplicável à luz da ciência contemporânea ao fato,
– … obtido como resposta de Deus a uma atitude autenticamente religiosa.
Vê-se, pois, que a ênfase, no conceito de milagre, é colocada sobre o elemento sinal ou “parte do diálogo existente entre Deus e a humanidade”.
A luz destas premissas, deve-se dizer que o livro de A. Weiser cede gratuitamente a preconceitos de crítica e de hermenêutica. Deve-se professar a realidade histórica das curas realizadas por Jesus; foram milagres segundo o conceito de milagre atrás exposto. Quanto aos exorcismos, seria indigno afirmar que Jesus os tenha praticado por mera adaptação ou acomodação à mentalidade errônea do povo judeu. No tocante aos demais milagres de Jesus (ressurreição de mortos, domínio sobre a natureza…), não há razão para negar-lhes a autenticidade histórica, visto que pertencem ao estilo da comunicação de Deus aos homens: estilo de encarnação, que faz do corpo humano e do mundo visível o instrumento e o espelho de realidades espirituais e transcendentais.
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Comentário: Acaba de ser publicado mais um livro importante sobre o tema «milagre», com o título «O que é milagre na Bíblia. Para você entender os relatos dos Evangelhos»[1]. O autor, Alfons Weiser, de 44 anos de idade, concluiu o doutorado em Teologia na Universidade de Würzburg e exerce atualmente o magistério na Escola Superior de Teologia em Vallendar, perto de Coblença. Em vista das teses lançadas por A. Weiser, vamos, a seguir, resumir o conteúdo do livro e propor reflexões sobre o mesmo.
1. As teses do livro
O autor se concentra no estudo dos Evangelhos, nos quais distingue cinco tipos de milagre:
– as curas de enfermos (cegos, leprosos, surdo-mudos…),
– as expulsões de demônios,
– os milagres de «domínio sobre a natureza» (conversão da água, em vinho, multiplicação de pães, caminhar sobre as águas…),
– as ressurreições de mortos (a filha de Jairo, o jovem de Naím, Lázaro),
– os milagres concomitantes, isto é, milagres que não foram realizados pelo próprio Jesus, mas aconteceram com a sua pessoa; são milagres que acompanham a sua existência, à maneira de indicadores (a conceição por obra do Espírito Santo, a revelação por ocasião do batismo e da transfiguração, os sinais e abalos cósmicos por ocasião da morte de Jesus, a ascensão ao céu).
Analisando os relatos evangélicos concernentes a esses milagres, A. Weiser julga que seguem um roteiro literário semelhante ou idêntico ao das narrativas helenísticas pagãs de milagres (o deus Asclépio em Epidauro, o Imperador Vespasiano, o taumaturgo Apolônio de Tiana e outros também «praticaram milagres»!-). Todavia reconhece que os relatos evangélicos se inspiram em motivos e intenções diversos dos que movem os escritores pagãos. Destas ponderações o autor tira conclusões no tocante à historicidade dos milagres dos Evangelhos:
1) os relatos de curas podem corresponder a fatos reais, que dificilmente conseguimos hoje identificar, pois na verdade não temos os milagres, mas apenas relatos de milagres. Jesus, assim como os taumaturgos pagãos, deve ter realizado fatos que os seus contemporâneos julgavam milagrosos, mas que não terão sido mais do que fenômenos explicáveis pelas leis da natureza, ou seja, da psicologia ou da parapsicologia. O autor nota que, quando os antigos falavam de milagres, apenas intencionavam professar a ação de Deus em meio aos homens, sem pretender indicar derrogação às leis da natureza; essa ação constante de Deus era muito mais percebida e enfatizada pelos homens de outrora do que pelos nossos contemporâneos.
O pensamento de Weiser se exprime nitidamente através dos seguintes dizeres:
“Não há um único caso sequer em que os acontecimentos historicamente indiscutíveis como as curas e os fatos tidos como exorcismos apareçam como ‘violação ou suspensão das leis naturais’. Talvez julgaríamos mais acertadamente os acontecimentos, se os considerássemos como o resultado de forças que se situam para além dos limites da percepção normal dos sentidos. A realidade, de fato, é muito mais ampla do que aquilo que podemos perceber mediante os sentidos e avaliar na sua relação de causa e efeito. A realidade que se situa para além da percepção dos sentidos, abrange não somente aquelas forças que integram a ‘natureza’ do mundo e do homem, como também aquele fundamento último e pessoal que está na base de todo acontecimento: Deus. Aqueles que acreditam não poder passar, neste mundo, simplesmente sem acreditar na ação de Deus, não admitirão que ele atue em alguma cura, nem mesmo nas curas extraordinárias. Admitirão, no máximo, a presença de forças parapsicológicas. Mas aqueles que acreditam em Deus como fundamento último de qualquer acontecimento, perceberão a presença benéfica de Deus para além dos resultados das forças parapsicológicas, mas ao mesmo tempo agindo nelas, e o proclamarão em sua fé. Só se pode falar em milagre dentro desta perspectiva de fé” (ob. cit. p. 162s).
2) Quanto às expulsões de demônios, A. Weiser identifica-as com curas psicossomáticas. O autor põe em dúvida não somente a possibilidade da possessão diabólica, mas também a própria existência do demônio; este não seria um anjo mau, mas apenas criação literária. O autor não pretende dirimir a dúvida, mas conclui nos seguintes termos:
“A questão de saber se o mal existe como poder pessoal não é tão importante como às vezes no-lo fazem ver. O Novo Testamento não esclarece a questão, mas enfatiza que o mal – qualquer que seja a natureza – foi vencido pelo Cristo” (p. 108).
3) Os demais tipos de milagres (ressurreição de mortos, domínio sobre a natureza, milagres concomitantes…) no correspondem a fato algum, mas vêm a ser construções literárias realizadas pelos primeiros cristãos, a fim de exprimir a sua fé pós-pascal em Jesus. Com outras palavras: após Páscoa, os discípulos compreenderam que Jesus é o Senhor da vida e da morte, dotado de poderes sobre a natureza; por conseguinte, exprimiram essa sua convicção concebendo «estórias» nas quais Jesus, já antes de Páscoa, aparece dominando a natureza e a morte ou é manifestado como Senhor das criaturas…
Em suma, dentre todos os milagres narrados pelos Evangelhos, somente a ressurreição corporal de Jesus Cristo é tratada de maneira diferente; o autor não lhe procura paralelos nas literaturas antigas nem lhe sugere explicações naturalistas: «A fé na ressurreição (de Jesus), com base nos testemunhos do Novo Testamento, é honesta e responsável do ponto de vista intelectual» (p. 167). Isto… porque ela ocupa um lugar central nos escritos do Novo Testamento, a ponto de São Paulo poder dizer: «Se Cristo não ressuscitou, ilusória é a nossa fé e ainda estamos em nossos pecados» (1Cor 15,17). Foi mesmo a consciência da ressurreição do Senhor que levou os discípulos a conceber e confeccionar os ecos antecipados desse fato durante a vida terrestre de Jesus. Esses ecos ou relatos milagrosos não são informações, mas expressões da fé dos antigos.
Considerando os taumaturgos da literatura pagã, o autor se detém especialmente sobre a figura de Apolônio de Tiana, pregador pitagórico helenista do século I d.C., cuja biografia foi redigida por Filostrato no século III d.C., a pedido da Imperatriz Júlia Domna: terá realizado expulsões de demônios e prodígios de domínio sobre a natureza. A respeito escreve A. Weiser:
“Não se pode duvidar de que Apolônio tenha existido e realizado coisas extraordinárias. É muito pouco provável que um personagem que tenha conseguido tanta celebridade seja pura ficção. Mas já não é possível determinar com precisão em que consistiam as capacidades extraordinárias de Apolônio e mediante quais ações ele realizou suas curas e granjeou fama. É bem possível, e até mesmo provável, que ele tenha curado doentes, inclusive doentes que sofriam de perturbações psicossomáticas e eram considerados como possessos do demônio, e que também possuísse poderes parapsicológicos.
Globalmente, os fatos atribuídos a Apolônio são da mesma natureza que os atribuídos a Jesus cem anos antes…
A diferença fundamental entre os milagres de Apolônio e os milagres de Jesus não está nem na natureza dos fenômenos milagrosos, nem menos ainda na circunstância de os primeiros terem sido inventados e os segundos terem sido fatos reais. A diferença consiste, antes de tudo,… na significação que se atribui aos milagres operados” (ob. cit., pp. 160s).
Como se vê, A. Weiser não dá grande ênfase aos milagres nos Evangelhos. Só aceita propriamente as curas realizadas por Jesus, comparáveis às de taumaturgos não cristãos e explicáveis por fatores naturais. As razões que levam o autor a essa atitude, são duas:
1) o confronto com narrações de milagres da literatura grega e com relatos de exorcismos da literatura judaica) ; 2) o próprio conceito bíblico de milagre, que A. Weiser assim formula à p. 21: «Os milagres são acontecimentos estranhos, que o crente entende como sinais da ação salvadora de Deus».
O adjetivo «estranho», no caso, é intencionalmente vago; não implica necessariamente superação das leis da natureza. – Quanto à palavra «crente», restringe o significado do milagre ao âmbito das pessoas de fé. Ora estes elementos como também outros dados colhidos no livro de A. Weiser nos levam a propor algumas observações a este autor e à sua obra. Em conseqüência, abordaremos, a seguir, os textos da literatura helenística assim como o próprio conceito de milagre.
2. Os textos da literatura extra-bíblica
1. A. Weiser tenta mostrar paralelos literários entre as narrações de milagres helenísticas e as evangélicas. Deve-se reconhecer tal fenômeno literário nos casos em que realmente ocorra; na verdade, sabe-se que os evangelistas adotaram formas de escrever comuns na sua época para exprimir a mensagem evangélica (que, embora revestida de tal roupagem, era algo de totalmente inédito).
Todavia não se deve exagerar o alcance desta afirmação. O proprio Weiser reconhece que mais de uma narração de milagre rompe o esquema literário, ora porque lhe acrescenta elementos próprios, ora porque tenciona mostrar a correspondência entre o fato narrado e as profecias do Antigo Testamento. O mesmo autor também reconhece que os relatos evangélicos são sóbrios e objetivos, evitando ornamentar a descrição com traços fantasiosos e evidentemente irreais; ao contrario, as narrações helenísticas são marcadas por elementos imaginativos e fantasistas, que denunciam composições fictícias e não se coadunam com o estilo de narrações históricas; cf. pp. 50s.
A existência de paralelos entre as narrações evangélicas e as helenísticas não significa, segundo Weiser, que aquelas não correspondam a acontecimentos históricos. Como dito, o que Weiser contesta, é que se trate, nos Evangelhos, de acontecimentos que transcendam as leis da natureza; tratar-se-ia, antes, de fatos que a medicina moderna e a parapsicologia explicariam e que a fé dos antigos cristãos entendeu como sinais da messianidade de Jesus. Mais adiante, diremos que tal interpretação dos milagres de Jesus é gratuita; deriva-se de uma atitude que de antemão rejeita o valor ou o significado de intervenções objetivas de Deus no âmbito da natureza.
Importa, por ora, analisar mais atentamente os relatos de «milagres» pagãos.
2. Os estudiosos de história, literatura e religião têm procurado investigar o que haja realmente ocorrido em Epidauro. A arqueologia, com as suas escavações, e a epigrafia, com a descoberta de inscrições, vêm permitindo a reconstituição dos fatos. Sabe-se que em Epidauro (Grécia) havia perto do templo de Asclépio (o Aselepeion) uma fonte sagrada; o acesso ao templo era facultado por duplo pórtico; este, com as suas arcadas, servia de dormitório (ábaton) [2] posto à disposição dos peregrinos que aguardavam a cura. No ábaton os sacerdotes praticavam um rito que adormecia o paciente (egkoímesis) ; este então mergulhava em sono sagrado, que o dispunha a receber as comunicações da Divindade. Esta, como se pregava, aparecia durante o sono e explicava ao doente como ficaria curado. Tal sonho era o grande objetivo da peregrinação. Os enfermos visitados pela Divindade durante a noite davam-se por curados desde a manhã ou, ao menos, diziam ter recebido as indicações terapêuticas que os curariam. Depositavam sua oferta no templo e voltavam para casa.
Nas paredes internas do santuário de Epidauro, encontram-se relatos escritos de curas aí obtidas. Seis desses narram os casos de mulheres que, após a aparição da Divindade em sonho ou depois de ter tido relações com o deus local, deram à luz. Assim, por exemplo:
“Cleo estava grávida havia cinco anos. Por isto, suplicante, foi ao templo do deus; adormeceu no ábaton. Logo que saiu deste e se viu fora do templo, deu à luz um menino, que, ao aparecer, se lavou na água da fonte e se pôs a caminhar junto à sua mãe”.
Uma dezena de casos refere-se a doenças da vista. A falta de higiene ocasiona tais moléstias. O termo «cegueira», em tais relatos, significa «inflamação e abcessos das pálpebras», os quais podem ser tão violentos que a visão cesse. A cura, porém, de tais males está ao alcance da medicina. Eis alguns espécimens:
“Um homem foi ter ao templo em súplica. Estava caolho. As suas pálpebras não recobriam coisa alguma… No templo as pessoas o tinham por muito simplório por acreditar que recuperaria a vista, pois do seu olho nada ficava senão o respectivo lugar. Enquanto dormia, foi agraciado por uma visão; parecia que a Divindade lhe preparava um remédio; abria-lhe as pálpebras e nelas derramava o remédio. Por ocasião da aurora, saiu e enxergou com os dois olhos”.
“Um cego perdeu o seu colírio durante o banho. Dormiu no ábaton, sonhou que a Divindade lhe aconselhava que procurasse o colírio no grande albergue à esquerda, na entrada. Uma vez nascido o dia, o cego, auxiliado por um escravo, foi procurar o colírio. Entrou no albergue, viu o colírio e ficou bom”.
“Timão de X. foi ferido por um golpe de lança debaixo do olho. Enquanto dormia, teve um sonho; pareceu-lhe que a Divindade triturava uma erva e lhe derramava algo no olho. Ele está curado”.
Há também casos de mudez e paralisia:
“Uma jovem muda perambulava no santuário. Viu uma serpente descer de uma árvore e penetrar dentro da alvenaria. Espantada, ela chamou pai e mãe. Voltou curada”.
“Clemenes de Argos estava paralítico. Apresentou-se no ábaton; adormeceu e teve um sonho: a Divindade o envolveu com uma coberta vermelha, levou-o ao banho fora do recinto sagrado, num tanque de água muito fria. Tremia de angústia; Asklepios disse-lhe que ele não curava os covardes, mas, sim, tão somente aqueles que o procurassem com confiança. Ele não lhes fazia mal algum, mas despedia-os, curados, para casa. Clemenes acordou, tomou um banho, e voltou em perfeito estado”.
Há dois casos de feridas purulentas e um de tumor abdominal, que parecem supor uma intervenção cirúrgica elementar:
“Ferido por uma lança, Evippos tinha a ponta de mesma encravada na maxila havia seis anos. Adormeceu no ábaton; a Divindade lhe retirou essa ponta de lança e a colocou em suas mãos. Quando despontava o dia, ele se foi curado, levando a ponta nas mãos”.
“N.N. de X. está ferido no peito. A chaga é purulenta; foi ter com a Divindade em súplicas. Dormiu no ábaton e teve uma visão: a Divindade lhe lavou o peito com leite fresco e untou a ferida com ungüento. Depois de tê-la enxugado, ordenou-lhe que se lavasse na água fria. Ao despertar, mergulhou na água corrente e ficou curado”.
“Um homem sofria de tumor no abdômen. Teve um sonho no ábaton: a Divindade mandou a seus auxiliares que o imobilizassem e lhe abrissem o ventre. Ele fugiu, mas foi apreendido e atado quando atravessava a soleira da porta. Asklepios abriu-lhe o ventre, retirou-lhe o abscesso e coseu a ferida; o doente foi desatado. Voltou curado; o solo estava coberto de sangue”.
Eis ainda dois casos:
“Erasipa de C. tinha o ventre inchado e nada conseguia digerir. Dormiu no ábaton; teve um sonho; a Divindade lhe fazia massagens sobre o abdômen e a abraçava; depois o deus lhe ofereceu, numa taça, um remédio, que ele lhe mandou beber; forçou a vomitar; ela o fez, sujando a sua roupa. Ao nascer do dia, verificou que o vestido estava todo sujo de vômitos; sentiu-se curada”.
N. N. de X. sofria de um tumor. Entrou no santuário. Não obteve o que pedia. A Divindade não se mostrou durante o seu sono no ábaton; ele julgou então ter sido esquecido pelo deus e voltou para casa. Todavia, não podendo suportar por mais tempo a dor, quis suicidar-se traspassando o abscesso com uma punhalada. A sua filha encontrou-o desfalecido, tomou-o nos braços, retirou o punhal. O sangue jorrou do tumor e o doente ficou curado”.
Outras semelhantes narrações poderiam ser aduzidas. Estas, porém, são suficientes para evidenciar que os «milagres» de Epidauro são
– fatos que as ciências médicas e a psicologia explicam satisfatoriamente;
– as narrações respectivas devem-se, em grande parte, à fantasia do narrador, que explora a capacidade de admiração dos leitores;
– diferem profundamente das narrações evangélicas tanto pelo conteúdo como pela forma.
Vê-se que a forma literária dos portentos helenistas nem sempre é a mesma como também não o é a forma literária dos relatos evangélicos. A propósito apraz-nos citar o testemunho de Wolfgang Trilling, que, estudando a cura do cego em Mc 10,46-52, se detém sobre o gênero literário da narração respectiva:
“Os elementos típicos do gênero literário de uma narrativa de cura podem-se obter facilmente através do confronto com todos os outros textos, principalmente com os dos Sinóticos, sem se recorrer à hipótese de uma derivação direta do tipo helenístico de narrativas de prodígios. O esquema segundo o qual se constroem essas narrativas, deve ser entendido antes como esquema narrativo geral popular do que mediante derivação direta da baixa literatura helenística. Pode-se supor que todas essas narrativas seguem, independentemente entre si, as mesmas leis do modo popular de narrar” (“O anúncio de Cristo nos Evangelhos Sinócos”, p. 142).
Em conseqüência, dir-se-á: o confronto das curas narradas pelo Evangelho com as dos relatos helenistas não redunda em detrimento da autenticidade histórica dos relatos evangélicos nem obriga a reduzir os fatos narrados pelos evangelistas a fenômenos puramente naturais. Ao contrário, põe em evidência as diferenças de mentalidade e redação existentes entre os textos bíblicos e os textos extra-bíblicos.
Passemos agora a analisar o conceito de milagre.
2. A noção de milagre
Segundo vimos, A. Weiser define o milagre como «acontecimento estranho que o crente entende como sinal da ação salvadora de Deus» (p. 21).
Ora esta definição merece duas observações:
2.1. Sinal
1. O milagre, na verdade, não deve ser entendido qual mera ostentação ou «show» do poder divino. Não é meramente o extraordinário que interessa ou importa no milagre, mas é o seu caráter de sinal. O Evangelho segundo S. João usa sistematicamente o vocábulo «sinal» (seméion) para designar os feitos extraordinários de Jesus, atribuindo grande importância às obras ou, equivalentemente, aos sinais de Jesus; cf. Jo 6,26; 10,37s; 12,37; 15,24.
O milagre é propriamente uma palavra de Deus[3], … palavra mais forte e enfática do que os vocábulos habituais ou orais; o Senhor Deus dirige às criaturas esse tipo de palavra sempre que o julga oportuno…, geralmente para corroborar determinada mensagem, para autenticar certo emissário ou mensageiro ou para responder a uma atitude de prece e expectativa dos homens… Assim o milagre é uma parte do diálogo entre Deus e a humanidade; vem a ser um aceno, um indício ou uma prova da parte do Senhor. Não é o portento como tal que importa, mas, sim, o significado do portento no contexto da história da salvação. A função de sinal é, pois, essencial ao conceito de milagre; é o que faz do milagre algo de sábio e harmonioso, em vez de ser algo de meramente espetacular e assombroso. Em conseqüência, verificamos que o milagre, principalmente na Bíblia, não pode ser considerado à parte do contexto da Revelação de Deus aos homens.
2. Para ilustrar melhor esta afirmação, lembraremos o seguinte:
Deus, em seu plano eterno, não quis deixar o gênero humano entregue à ordem puramente natural,… ordem que a razão e a experiência científica podem penetrar satisfatoriamente. Não; o Senhor Deus quis elevar o homem à ordem sobrenatural, ou seja, ao consórcio da vida trinitária ou à categoria de filho de Deus chamado a ver face-a-face a Beleza Infinita. Tal vocação, Deus a quis revelar aos homens pelo mistério do Verbo Encarnado… Deus se fez um de nós para falar aos homens em linguagem e sinais humanos, de fácil compreensão. Mais: o Senhor quis levar ao extremo as conseqüências da Encarnação, oferecendo ao homem sinais mais eloqüentes e persuasivos do que a simples linguagem cotidiana, que também os charlatães e falsos profetas empregam para iludir as multidões. Deus feito homem quis usar a linguagem dos sinais mais enfáticos que são os milagres, …
milagres que só Deus pode realizar e que assinalam de maneira insofismável a presença e a mensagem do Senhor Deus.
Eis por que Jesus quis efetuar milagres; tencionava corroborar a sua pregação, por vezes, «escandalosa»: «Para que saibais que o Filho do Homem tem o poder de perdoar os pecados, eu te ordeno – disse ele ao paralítico – levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa» (Mc 2,10s). Jesus também quis significar, por meio de curas, exorcismos, vitória sobre a morte, domínio sobre a natureza…, a restauração da ordem espiritual e da ordem física violadas pelo pecado dos primeiros homens.
Em conseqüência deste plano de Deus, entende-se que o corpo humano e o mundo material se tenham tornado instrumentos do Redentor e o espelho no qual se refletem valores espirituais transcendentais. Diz muito sabiamente M. Blondel:
“O milagre é o recurso dessa divina philanthropia [4], da qual fala São Paulo, e que, humanizando-se em sua linguagem e em sua condescendência, faz transparecer por sinais anormais a sua anormal bondade” (art. Miracle, em A. Lalande, Vocabulaire technique de la philosophie. Paris 1947, 59 ed., p. 615).
Também apraz citar as palavras de S. Atanásio (+ 373), que põem em evidência a relação entre o material e o espiritual ou entre o humano e o divino nos milagres de Cristo:
“Quando Ele quis curar da febre a sogra de Pedro, foi num gesto humano que Ele estendeu a mão; mas a sua vitória sobre a doença foi divina. Também quando Ele quis curar o cego de nascença, a sua boca secretou uma saliva humana, mas foi a intervenção de Deus que abriu os olhos mediante esse lodo. E, quando Ele chamou Lázaro dentre os mortos, proferiu como homem, palavras humanas, mas foi como Deus que Ele o devolveu à vida” (Or. III contra Arianos, n° 32, Patr. Migne, série grega, t. 26, 392).
Uma vez estabelecido que o milagre é sempre um sinal, e sinal que condiz bem com todo o desígnio salvífico de Deus, perguntamo-nos: como o milagre é sinal? Ou como chama a atenção do homem?
2.2. Os milagres e as leis da natureza
1. S. Agostinho, ao comentar a multiplicação dos pães realizada por Jesus segundo Jo 6, tenta definir a maneira como o milagre é sinal ou palavra enfática do Senhor:
“Os milagres com que Deus rege o mundo e dirige a criação inteira, ficam tão velados na vida quotidiana que quase ninguém se digna conceder um pouco de atenção às prodigiosas e admiráveis obras de Deus em cada grão de trigo. Por isso, fiel à sua misericórdia, quis Deus realizar em determinados tempos algumas coisas que ficam fora do curso normal e da ordem da natureza, a fim de que os homens que estão cegos em relação aos milagres quotidianos se comovam com a experiência de um acontecimento não maior, porém mais anormal. Realmente, a ordem de todo o cosmos é um milagre maior do que saciar cinco mil homens com cinco pães. Entretanto ninguém se admira do primeiro, ao passo que o segundo semeia admiração entre os homens por se tratar de milagre, não maior, porém mais raro. Quem alimenta hoje o mundo inteiro senão aquele que de alguns grãos de trigo tira colheitas inteiras? Ele agiu, pois, como o próprio Deus. Pelo mesmo poder com que converte alguns grãos de trigo numa colheita, multiplicou os cinco pães em suas mãos. Tal poder estava nas mãos de Cristo, e os cinco pães eram como sementes; desta vez, porém, não as confiou à terra, mas multiplicou-as, ele que fez a terra. Isso ocorreu diante de nossos sentidos para a edificação de nosso espírito. Mostrou-se a nossos olhos, para que a razão o considere, para que descubramos com admiração o Deus invisível em suas obras visíveis e, despertados para a fé e por ela purificados, aspiremos a ver de modo supra-sensível a quem conhecemos como invisível através das coisas visíveis” (Comentário sobre o Evangelho de S. João 24,1; ed. Migne lat. 35, 1592s).
Como se vê, S. Agostinho distingue entre as maravilhas que Deus realiza diariamente e que constituem o curso natural das coisas, e as maravilhas que o Senhor se digna efetuar ocasionalmente e que, por isto, chamam singularmente a atenção dos homens.
Na base desta distinção do mestre, dizemos:
Para que o milagre possa ser sinal realmente significativo, requer-se que – seja um fenômeno objetivo histórico. .. Não basta que seja mera ficção ou construção literária. Nem é suficiente que seja projeção meramente pessoal ou subjetiva da fé de um grupo; por conseguinte, não se pode aceitar a definição que Goethe dava de milagre: «des Glaubens liebstes Kind – o filho predileto da credulidade». O milagre é um sinal de Deus que se dirige 1) aos incrédulos, para ajudá-los a conceber a fé, 2) aos fiéis, para corroborar-lhes a fé;
– fuja à ordem normal ou natural dos acontecimentos. Caso contrário, o milagre não seria apto a suscitar de maneira eficaz a reflexão dos homens.
2. Dirá alguém: mas que significa «fugir à ordem natural ou normal dos acontecimentos?»
Hoje em dia os cientistas discutem a respeito de determinismo ou indeterminismo das leis da natureza. Pelo fato de um fenômeno escapar ao curso comum das leis naturais, pode-se logo dizer, que resulta de uma intervenção extraordinária de Deus? Este é o ponto mais nevrálgico de toda a temática que estamos abordando.
Em resposta, observemos quanto segue:
As ciências naturais contemporâneas ensinam que o determinismo dos fenômenos no plano macrofísico não é senão o resultado de um sem número de reações no plano microfísico e que cada uma dessas reações é indeterminada. É a repetição estatística e constante dos mesmos fenômenos macrofísicos que permite estabelecr leis físicas; estas são praticamente tão estáveis que se pode falar de determinismo absoluto dos fenômenos naturais.
Para aprofundar este estudo, faz-se mister distinguir entre «determinismo-indeterminismo» no plano físico e no plano metafísico. Os cientistas falam uma linguagem física e não entram no setor da metafísica. Os físicos, aliás, não pretendem negar o determinismo metafísico; segundo este, tudo o que é contingente, deve ter sua causa, que é também a sua razão suficiente. Não se pode negar a veracidade desta proposição, sem negar o principio de contradição ou os princípios mais fundamentais da lógica. Por conseguinte, não há indeterminismo das ações e reações dos elementos naturais, mas determinismo, até mesmo no plano microscópico. A propósito veja PR 176/1974, pp. 338-341.
De resto, a questão não importa para se fixar o conceito de milagre. Em qualquer hipótese, deve-se dizer que o milagre é um fato que foge ao curso normal dos acontecimentos de tal modo, porém, que a ciência contemporânea ao mesmo não veja absolutamente nenhuma explicação possível para tal exceção. Se os homens de ciência entrevêem qualquer pista para explicar naturalmente um acontecimento tido como milagroso, este já não pode ser estudado como provável sinal divino ou milagre no sentido da apologética católica.
Eis alguns dos casos de curas realizadas em Lourdes, por exemplo, que a medicina hoje em dia tem por totalmente inexplicáveis: recuperação instantânea da vista após total atrofia do nervo ótico; cura instantânea de câncer do piloro e do fígado com plena restauração das funções digestivas; cura instantânea de meningite tuberculosa com bacilos de Koch no líquido céfalo-raquidiano, o qual continha 150 linfocitos por mm³… Aliás, duas das notas características das curas milagrosas consistem em que
1) ocorram em casos de doenças orgânicas e lesões físicas, não nos casos de doenças funcionais (que podem facilmente ser dissipadas por desbloqueio psicológico),
2) ocorram instantaneamente, pois, quando a natureza e a medicina curam doenças orgânicas, geralmente o fazem paulatinamente.
3. Indagará o leitor: mas por que basta que a ciência contemporânea, ao fato tido como milagroso não possa explicar tal fato? Não seria mais lógico afirmar que o milagre é um acontecimento que a ciência jamais, nem daqui a cinqüenta ou cem anos, poderá explicar?
– Não. Se o essencial do milagre consistisse em ser sinal maravilhoso ou portentoso, poder-se-ia incluir em seu conceito a cláusula de «inexplicável mesmo em época futura».[5] Como, porém, o milagre é, antes do mais, um sinal,… sinal de Deus que fala aos homens em determinado contexto da história, basta que nesse preciso contexto os homens não tenham explicação natural para o portento nem entrevejam alguma pista para chegar à elucidação científica do fato. Se não há realmente nenhuma explicação ou sombra de explicação no momento e se o quadro dentro do qual o fenômeno se produziu é digno de Deus, pode-se crer que o Senhor aí tenha proferido sua palavra mais enfática que é o milagre.
4. Em síntese, para que a teologia possa falar de milagre, hão de se preencher os três seguintes requisitos:
1) Trate-se de um fato real… Este deve ser averiguado com exatidão, para que se tenha notícia fiel à realidade ocorrida. Freqüentemente os relatos de milagres correntes entre a gente simples devem-se tão somente à fantasia popular, que os tornou «portentosos».
2) Trate-se de fato real que as ciências naturais contemporâneas ao fato não possam em absoluto explicar. A Igreja não faz questão de descobrir ou impingir milagres ao público; desde que qualquer brecha se ofereça para uma elucidação científica, o fato portentoso deixa de ser considerado pelos teólogos. A Igreja apenas aceita os milagres que, à luz de crítica objetiva e severa, pareçam realmente ser sinais de Deus.
3) O fato histórico inexplicável pela ciência deve ter ocorrido em contexto que possa merecer a chancela ou a resposta do Senhor Deus. Vê-se, pois, que não basta o aspecto portentoso do fato. Com efeito; se o milagre é sinal, deve-se inserir em âmbito de diálogo entre Deus e as criaturas. Por conseguinte, não pode ser milagre no sentido da apologética católica qualquer fato portentoso que confirme a vaidade, o espírito mercenário ou comercial, os vícios, o charlatanismo… Se, por hipótese, alguma vez se verifique um fenômeno inexplicável pela ciência em moldura de pecado e corrupção, dir-se-á que se trata de artimanha do demônio. Tal caso, porém, é tido como extremamente raro, pois, nos ambientes de vícios, os portentos são geralmente explicáveis pela psicologia e a parapsicologia…
Feitas estas ponderações sobre o milagre, voltemos ao livro de A. Weiser.
3. Reflexão final sabre o livro Exporemos o nosso pensamento em quatro pontos:
1) O milagre, entendido como sinal ou palavra enfática de Deus aos homens, é condizente com a disposição divina de salvação; a Encarnação do Filho de Deus é o princípio explicativo da realidade dos milagres. Estes constituem um sinal apto a despertar a fé dos incrédulos e corroborar a dos crentes. Tal enfoque explica que a Tradição cristã sempre tenha entendido os milagres de Jesus como fatos históricos e reais; não se deveria hoje negar tal realidade, mas apenas procurar discernir os gêneros literários que a exprimem.
2) As curas de enfermidades realizadas por Jesus sejam compreendidas à luz do conceito de milagre atrás exposto. Não importa saber se todas as moléstias curadas pelo Senhor eram incuráveis pela medicina moderna. Mas interessa verificar que foram curas inexplicáveis pelos homens da época, as quais ocorriam à guisa de resposta do Senhor à fé ou aos anseios dos ouvintes de Cristo. Preenchiam, pois, a função de palavra nova, mais viva do que a oral, a fim de revelar aos homens o plano de Deus.
3) Os exorcismos praticados por Jesus não foram meros atos convencionais, que correspondessem tão somente à crendice do povo judeu de outrora. Seria indigno da parte de Jesus, que veio dar testemunho da verdade (cf. Jo 18,37), proceder «fingidamente» como se existisse a possessão diabólica quando esta não existia. Jesus não terá feito o papel de «palhaço», confirmando os homens num erro religioso até nossos dias. Deve-se, pois, afirmar não só a existência do demônio, mas também a possibilidade da possessão diabólica. Isto não quer dizer que nos preocupemos hoje com possessão diabólica; a grande maioria dos casos popularmente apontados como tais são casos de epilepsia ou doenças semelhantes.
4) Quanto aos outros tipos de milagres recenseados por A. Weiser (domínio sobre a natureza, ressurreição dos mortos, milagres concomitantes), verifica-se que é gratuito negar a realidade histórica dos mesmos. O Deus todo-poderoso possui naturalmente o domínio sobre a vida e a morte e sobre as forças da natureza; se derroga a estas, não o faz arbitrariamente, mas, sim, para assinalar mais eficazmente a sua presença e a sua ação entre os homens.
Eis o que, em poucas páginas, convinha observar a respeito do livro «O que é milagre na Bíblia» de A. Weiser. É obra erudita, mas preconcebidamente unilateral e exagerada. Carece do enfoque teológico que não deve faltar a quem cultiva a exegese e a hermenêutica!
Bibliografia:
Louis Monden, “Le miracle, signe de salut”. Desclée de Brouwer 1960.
W. Trilling, “O anúncio de Cristo nos Evangelhos Sinóticos”. São Paulo 1976.
M. Schmaus, “A Fé da Igreja”, vol. I. Petrópolis 1976.
PR 171/1974, pp. 91-103 (os milagres de Jesus: história ou lenda?);
PR 176/1974, pp. 323-337 (milagres e “milagres”: como identificá-los?);
PR 176/1974, pp. 338-346 (pode realmente haver milagres?);
PR 173/1974, pp. 203-205 (existência do demônio);
PR 174/1974, pp. 246-257 (possessão diabólica);
PR 174/1974, pp. 257-267 (o possesso de Gerasa e os porcos);
PR 180/1974, pp. 496-499 (possessão diabólica).
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NOTAS:
[1] Tradução de D. Mateus Rocha O.S.B. Coleção “Entender a Bíblia”-3. – Edições Paulinas, São Paulo 1978, 185 X 22′ mm, 189 pp.
[2] Abaton, em grego, é o lugar inacessível ou o santuário.
[3] Toda palavra é um sinal.
[4] Philanthropia = amor aos homens. Cf. Tt 3,4.
[5] Tal cláusula, aliás, seria temerária, pois jogaria com variantes incertas do futuro da medicina.