(Revista Pergunte e Responderemos, PR 005/1958)
“Haverá algum critério seguro para se distinguir na Bíblia o que é real e o que é poesia? E o que é dogma de fé e o que não é?”
1. Em primeiro lugar, removamos dois conceitos errôneos neste setor.
Os critérios que nos levam a interpretar certas passagens da Bíblia em sentido literal e outras em sentido alegórico, não são:
a) o caráter maravilhoso ou milagroso como tal dos trechos bíblicos. As intervenções do sobrenatural na natureza não assustam o cristão; este reconhece que são sinais muito lógicos da Onipotência Divina, que ele professa. — Note-se, porém, que nem por isto o cristão há de admitir milagres a esmo na história sagrada. Por serem expressões da Sabedoria Divina, o Senhor realiza sempre os seus portentos — derrogações às leis que o próprio Criador incutiu à natureza — em vista de um fim proporcionalmente grande, e não para ostentar sua Onipotência. Tendo Deus comunicado aos elementos sua maneira própria de agir, o Senhor costuma respeitar o curso ordinário das coisas e utilizá-lo ou encaminhá-lo para obter os efeitos intencionados pela Providência (serve-se habitualmente das chamadas “causas segundas”). Por isto ensina a exegese que, embora o milagre seja uma realidade na história, a realização de um milagre deve ser provada ou deduzida das expressões mesmas do texto sagrado, não pode ser simplesmente pressuposta; o fato de ser Deus todo-poderoso não implica que tenha realmente manifestado sua Onipotência todas as vezes que a piedade ou a fantasia do leitor da Bíblia o julgue.
b) Também não são as descobertas da ciência moderna, como tais, que levam o exegeta a dar sentido figurado a muitas expressões da Bíblia. Em outras palavras: não é para estar de acordo com os últimos resultados das pesquisas da astronomia, da geologia, da antropologia, etc. (ou norteando-se diretamente pelas teorias das ciências naturais) que o cristão “arranja” suas conclusões exegéticas. Esta atitude de todo errônea, tem o nome de “Concordismo” (isto é, procura de concórdia, às vezes alheia ao texto bíblico, entre a ciência e a Escritura).
E porque é errônea? Haverá então discórdia ou apenas semi-discórdia?
E’ errônea simplesmente porque pressupõe que a Bíblia tenha a mesma finalidade que a ciência, isto é, que vise ensinar aos homens qual a natureza intrínseca dos fenômenos biológicos, astronômicos, geológicos. Se as Escrituras tivessem em mira ensinar isto, então é claro que haveria justificativa para procurarmos ler as teorias da ciência moderna, clara ou veladamente formuladas, na Bíblia.
— Acontece, porém, que a Sagrada Escritura visa apenas expor aos leitores o sentido religioso que cabe às criaturas e aos seus fenômenos no plano de Deus; não quer senão dizer donde vêm os seres, para onde vão qual o seu valor e a sua função aos olhos de Deus e do cristão, sem se preocupar com a estrutura físico-química das criaturas. Em conseqüência, a Bíblia, tendo que aludir aos diversos elementos deste mundo, menciona-os na linguagem simples de seus primeiros leitores, que eram judeus rudes (esta linguagem é suficiente à finalidade da S. Escritura) e começa seu ensinamento propriamente dito onde o cientista termina suas afirmações. Este analisa o que lhe cai sob os olhos e vai retrocedendo no curso dos fenômenos até chegar aos mínimos componentes da matéria; depois disto nada mais sabe dizer. Pois bem; é justamente neste ponto que as Escrituras começam a ensinar; expõem a metafísica ou o sentido transcendente da matéria, do homem e das suas atividades neste mundo. Não há, pois, coincidência entre o ponto de vista das ciências naturais e o da Bíblia. Donde se vê quão absurdo seria interpretar tal ou tal passagem escriturística em sentido alegórico a fim de a acomodar às últimas teorias científicas.
2. Qual seria então em termos positivos o critério que leva a distinguir sentido literal e sentido figurado na S Escritura?
Foi o conhecimento mais exato, da filologia e da literatura, tanto de Israel como do próximo Oriente, que deu a ver aos exegetas que tais e tais expressões não costumavam ser entendidas ao pé da letra pelos escritores antigos, mas tinham sentido convencionalmente metafórico ou hiperbólico. Com outras palavras: as ciências modernas trouxeram à luz não apenas novos dados de astronomia, biologia, geologia, mas também abriram novos horizontes aos estudiosos da lingüística do Oriente antigo. Os novos instrumentos de trabalho filológico (instrumentos dos quais não dispunham os intérpretes medievais) foram conseqüentemente aplicados ao texto da Bíblia (já que esta foi escrita segundo os moldes da cultura de outrora), o que levou naturalmente os estudiosos a entender em sentido figurado certos trechos que outrora se interpretavam ao pé da letra.
O que está acima dito se resume brevemente no seguinte: os exegetas modernos reformaram proposições de seus antecessores, porque se lhes tornou evidente que na Bíblia há gêneros literários diversos, ou seja, um estilo próprio para tratar de cada assunto importante (história, leis, profecias, liturgia. . .). Cada um desses gêneros literários obedece às suas regras de redação convencionais, que o leitor moderno, por mais estranhas que lhe pareçam tem que levar em conta, a fim de não dar às expressões de um poema (texto livremente concebido e ornamentado) o significado rigoroso que dá aos termos de uma lei (texto geralmente breve e preciso).
3. Uma vez averiguadas as regras de estilo que presidiram à redação de certo livro ou trecho, pode-se proceder à interpretação filológica do mesmo, isto é, verificar o que o texto, aos olhos de um leitor judaico antigo, queria dizer.
Não basta, porém, a interpretação filológica. Requer-se outrossim o que se chama a interpretação dogmática ou teológica, já que a Bíblia não é simplesmente palavra humana, mas palavra do homem que reveste e transmite a Palavra de Deus.
Qual então o critério para se apurar o sentido teológico ou dogmático de uma passagem escriturística?
a) Em vista de tal fim, pode-se recorrer à analogia da fé, isto é, à consonância que tal ou tal possível interpretação do texto possa ter com proposições que indubitavelmente pertencem ao depósito da fé. Caso haja discrepância entre uma interpretação filològicamente possível e algum dogma da fé, dever-se-á reconhecer que tal interpretação é errônea. Exemplo muito expressivo encontra-se na exegese de Gên 1-3: houve autores (mesmo católicos) que, baseados em critérios meramente filológicos, quiseram entender o nome ADÃO (que em hebraico significa HOMEM) no sentido coletivo, e não individual (cf. A. M. Dubarle. Les sages d’Israel. Paris 1946. 21s): Deus então, ao criar Adão, teria criado a coletividade humana, um agrupamento provavelmente composto de vários casais, e não de um indivíduo e sua esposa apenas; insinuavam desta forma o poligenismo em lugar do tradicional monogenismo (criação de um só casal, Adão e Eva, do qual procedem todos os homens). Filològicamente a interpretação era plausível e sorria a não poucos exegetas que queriam estar em dia com hipóteses de cientistas recentes. Contudo o Santo Padre Pio XII, em sua encíclica “Humani generis” de agosto de 1950, lembrou aos exegetas que a mencionada interpretação cai em contradição com uma proposição de fé seguramente atestada pela Bíblia e a Tradição, ou seja, com o dogma do pecado original, que é o pecado do primeiro homem, Adão, comunicado a todos os indivíduos humanos por descenderem todos de Adão. Assim a “analogia da fé” leva a excluir a interpretação poligenista de Gên 1-2, interpretação que o mero exame literário do texto não excluiria.
b) Disto já se depreende que o critério supremo e inevitável para se precisar o sentido de alguma passagem da Sagrada Escritura é a Tradição oral, que hoje se faz ouvir no ensinamento ou magistério da Igreja. E’ a esta que, em última análise, toca dirimir as questões de interpretação da Bíblia.
E porque isto? Não será a Igreja erroneamente intransigente ao se arrogar tal direito?
Não. E’ a natureza mesma da Bíblia que assinala tal incumbência à Igreja. Com efeito, os livros da Sagrada Escritura não foram escritos com o fito de abranger todo o depósito da Revelação Divina, mas se devem a problemas ocasionais (necessidades contingentes deste ou daquele grupo de fiéis), aos quais os hagiógrafos queriam atender. Estes, por conseguinte, apenas redigiram o necessário para resolver os casos que se propunham esporadicamente, confiando em que seus escritos seriam sempre interpretados e complementados pela tradição oral existente na Igreja. O ensinamento oral constitui um grande corpo doutrinário, do qual os livros do Antigo e do Novo Testamento consignam apenas uma parte (cf. Jo 21,25). E note-se que a Igreja viveu exclusivamente do ensinamento oral de Cristo desde a Ascensão do Senhor (cerca do ano de 33) até a redação da primeira página do Novo Testamento (Tg ou 1 Tes, por volta de 50/51).
Por isto é que os escritos bíblicos não podem ser desmembrados da Tradição oral nem ser interpretados sem recurso a esta, que é anterior a eles e mais ampla do que eles. E a tradição oral como pode ser auscultada? Ela se acha hoje viva no magistério da Igreja. Este se prende ininterruptamente, passando por 55 gerações apenas, através dos séculos, àquilo que Cristo e os Apóstolos ensinaram, mas não escreveram. E’, portanto, a Igreja, à qual Cristo prometeu sua assistência infalível (cf. Mt 28.20), que em última instância está sempre habilitada a dizer qual o sentido exato de tal e tal passagem da Sagrada Escritura.