(Revista Pergunte e Responderemos, PR 038/1961)por Tarcisio (Rio de Janeiro)
3) «Que é feito das tábuas da Lei de Moisés mencionadas em Ex 34, 1.29 e Dt 5,22; 9,10?»
A questão acima é por vezes intensamente focalizada sem que haja documentos suficientes para se lhe dar a devida solução.
Procuraremos abaixo considerar os dois principais aspectos do tema: a escrita de Deus e a sorte final das tábuas.
1. A escrita de Deus
Há quem diga que Deus mesmo escreveu a Lei dada a Moisés, apoiando-se, para afirmar isto, em Dt 9,10-12, onde se lêem as seguintes palavras de Moisés dirigidas ao povo de Israel:
«No Sinai… o Senhor me entregou as duas tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus, em tudo conformes às palavras que Êle vos dirigiu do meio do fogo sobre a montanha, no dia da assembléia. Ao termo de quarenta dias e quarenta noites, tendo-me dado as duas tábuas de pedra, tábuas da Aliança, o Senhor me disse: ‘Levanta-se, desce rapidamente, pois o povo que fizeste sair do Egito, prevaricou’».
Como entender tais dizeres?
A análise atenta dos diversos textos bíblicos referentes à entrega da Lei no Sinai dá a ver que as expressões «Deus escreveu» e «Deus escreveu com seu dedo» são meros antropo-morfismos ou dizeres figurados. Tenha-se em vista principalmente a passagem de Êx 34: neste trecho lê-se que o Senhor mandou a Moisés, subisse à montanha levando duas tábuas de pedra para que «Deus aí escrevesse»… (34,1); Moisés foi, portanto, ter ao cume do Sinai, com as duas tábuas (34,4) ; a seguir, o Senhor lhe falou, enunciando seus preceitos (34, 10-26). Por fim, disse o Senhor ao chefe israelita: «Escreve essas palavras, pois são as cláusulas da Aliança que concluo contigo e com Israel» (34,27). E acrescenta o texto sagrado: «Moisés permaneceu nesse lugar com o Senhor quarenta dias e quarenta noites, sem comer nem beber. E escreveu sobre as tábuas as palavras da Aliança – as dez Palavras» (34,28).
Este texto explica com clareza em que sentido «Deus escreveu»: tendo usado tal expressão em 34,1, o autor sagrado não hesita em dizer, pouco adiante, que Deus mandou Moisés escrever (34,27) e que o Legislador de fato escreveu os preceitos divinos.. . – Conclui-se, pois, que na verdade o Senhor apenas comunicou ou intimou a Moisés os seus mandamentos, ficando ao homem de Deus o encargo de os consignar por escrito sobre as tábuas de pedra. Entre os judeus, o fato de que o Senhor mesmo manifestara os seus preceitos a Moisés, justificava perfeitamente a expressão «Deus escreveu» (sabemos que a mentalidade semita não costumava distinguir entre a Causa Primeira e as causas subalternas). Ademais a figura do «dedo de Deus a escrever os preceitos do Decálogo», com o seu colorido bem vivo e concreto, devia servir para incutir o valor próprio e a excelência inconfundível que competiam ao Decálogo no conjunto das leis promulgadas por Moisés. Está claro que Deus, não tendo corpo, não tem dedo.
A maneira como Moisés escreveu nas tábuas de pedra terá sido conforme aos costumes da época (séc. XIII a. C.): os antigos geral-mente gravavam os caracteres, como atestam muitos documentos extra-bíblicos recém-descobertos (assim as tabuletas de Guezer, do séc. X a. C.; a coluna de Mesa, do séc. IX a C.; os «ostraca» ou as placas de argila da Samaria, do séc. IX a.C. … ). Sabe-se, porém, que os antigos também usavam pedras recobertas de cal branca, sobre as quais pintavam os caracteres da escrita (cf. Dt 27,2s).
2. O paradeiro das tábuas da Lei
Segundo 3 Rs 8,9 e Hebr 9,4, as tábuas da Lei foram guardadas dentro da Arca da Aliança, juntamente com a vara de Aarão e um vaso de ouro que continha o maná.
Que era, pois, a Arca da Aliança e qual terá sido o seu destino?
1. A Arca da Aliança era um cofre de acácia, em forma de paralelepípedo, de 1,25 m de comprimento, 0,75 m de largura e de altura. Apresentava-se recoberta de ouro puro «por dentro e por fora» e dotada de uma tampa também de ouro puro (denominada «propiciatório»), sobre a qual dois querubins de ouro puro (denominada “propiciatório”), sobre a qual dois querubins de ouro estendiam as sua asas (cf. Êx 25,10-22; 27,1-9; Dt 10,1-5). Assim quis Deus que Moisés a confeccionasse durante a travessia do deserto.
2. Há menção da Arca em várias fases da história de Israel.
Sabe-se, por exemplo, que, depois da entrada do povo em Canaã, foi depositada no santuário de Silo (cf. 1 Sam 3,3); os filisteus, porém, arrebataram-na durante uma batalha, guardando-a sete meses consigo (cf. 1 Sam 4-6).
Durante toda a época de Samuel e de Saul, a Arca permaneceu em casa de Abinadad em
Cariatiarim (cf. 1 Sam 7,1). Davi, porém, mandou transportá-la para Jerusalém, nova
capital do reino, colocando-a em uma tenda própria (cf. 2 Sam 6,12-17) ; mobilizou-a, por vêzes, para acompanhar o exército de Israel (cf. 2 Sam 11,11), e ia orar a Deus junto à Arca (cf. 2 Sam 7,18; 12,20). Salomão fez transferir a Arca para o lugar mais santo do novo Templo de Jerusalém (cf. 3 Rs 6,19; 8,5-9).
3. Após o reinado de Salomão (975-935), a S. Escritura ainda menciona a Arca sob o governo de Josias (639-609), que a mandou restabelecer em seu lugar no Templo, donde havia sido retirada, provavelmente por efeito do afrouxamento religioso verificado sob os monarcas anteriores (cf. 2 Crôn 35,3).
Muitos autores supõem que a Arca e, por conseguinte, as tábuas da Lei que ela continha, tenham finalmente perecido quando o Templo foi incendiado por ocasião da queda do reino
de Judá em 586 (cf. 4 Rs 25,9). Nada, porém, se pode dizer de preciso a respeito.
4. À guisa de ilustração, vão aqui registradas algumas tradições judaicas (destituídas de sólido fundamento, como se verá) a propósito do ulterior paradeiro da Arca.
No limiar do 2° livro dos Macabeus, encontra-se consignada uma carta dos judeus de Jerusalém aos seus correligionários do Egito no séc. II a. C., carta que, baseando-se em documentos arquivados entre os judeus, atribui ao profeta Jeremias (séc. VI a. C.) uma função importante na história da Arca. Eis o teor do texto:
«Lia-se nesse documento dos arquivos a notícia de que o profeta Jeremias, admoestado por um oráculo, levou consigo a tenda e a Arca, quando foi à montanha em que Moisés, tendo subido, contemplou a herança de Deus. Chegando lá, Jeremias encontrou uma mansão em forma de gruta e aí introduziu a tenda, a Arca e o altar dos perfumes; a seguir, fechou a entrada. Alguns dos seus companheiros, tendo sobrevindo mais tarde para marcar o caminho por meio de sinais, não o puderam encontrar. Ora Jeremias, tendo sabido disto, censurou-os nestes termos: ‘Tal lugar será ignorado até que Deus reuna de novo o seu povo e lhe faça misericórdia. Então o Senhor manifestará de novo todos esses objetos, a glória do Senhor aparecerá com a nuvem, como apareceu nos tempos de Moisés e na ocasião em que Salomão orou para que o Templo fosse gloriosamente dedicado’» (2 Mac 2,4-8).
A montanha a que alude o texto é o monte Nebo, sobre o qual Moisés morreu após haver contemplado de longe a Terra Prometida (cf. Dt 34).
Note-se bem que a carta à qual pertence o trecho acima, foi apenas transcrita, sem comentário algum, pelo autor que deu a forma atual ao 2° livro dos Macabeus. Não seria licito dai concluir que o hagiógrafo ou que a Sagrada Escritura, com sua autoridade, abonam o conteúdo de tal missiva; o hagiógrafo não se tendo pronunciado sobre a veracidade da notícia, resta ao estudioso liberdade para discutir a autenticidade da mensagem respectiva.
Outro escrito de origem judaica, o livro «Vitae Prophetarum», falsamente atribuído a S. Epifânio (ed. Migne gr. 43, 421; 92, 385.388), refere que Jeremias obteve que um rochedo absorvesse a Arca da Aliança e as tábuas da Lei; isto se terá dado num lugar deserto que os críticos julgam poder identificar com o monte Djabel Dana (1627 m) na Transjordânia. Nos dias do Messias, acrescenta a mesma narrativa, a Lei de Moisés sairá do rochedo, acompanhada de glória, de uma nuvem luminosa e de toda a pompa que assinalou a sua promulgação no Sinai.
Um apócrifo, o Apocalipse de Baruque c. VI, conta que um anjo, descendo dos céus, fez que o solo se abrisse e recebesse em seu seio o véu, o efod, o propiciatório, as duas tábuas da Lei e as vestes do Sumo Sacerdote.
Algumas passagens do Talmud (coleção de dizeres dos rabinos antigos) atribuem ao rei Josias o papel de preservador; este monarca, ante a iminência da destruição do Templo (586), teria escondido a Arca da Aliança, o vaso com o maná e a ânfora portadora do óleo
com o qual Moisés realizava as unções sagradas; o Profeta Elias haveria de revelar esses diversos objetos nos tempos do Messias!
Outra corrente judaica ensinava que a Arca da Aliança se encontrava no subsolo do pátio do Templo de Jerusalém reconstruído após exílio, e que, por conseguinte, havia perigo de morte para quem quisesse escavar tal lugar; a atitude mais segura para quem passasse
pelo local, seria a de fazer genuflexão (Jer. Jeqalim VI 1)!
Por fim, entre os judeus antigos havia também quem cresse que, ao partirem para o exílio babilônico em 586, os israelitas haviam levado consigo a Arca da Aliança assim como o fogo sagrado do Templo e a Lei de Moisés.
Como se depreende, todas estas histórias tendem a incutir a perenidade dos principais objetos do culto judaico, apelando em parte para uma pretensa ação preservadora do Profeta Jeremias. Ora é muito alheia ao pensamento de Jeremias a idéia de que os referidos objetos não haviam de perecer; este homem de Deus, ao contrário, predizia constantemente, para
O Templo de Jerusalém, ruína semelhante à do santuário de Silo, e repreendia o povo por confiar, de maneira quase supersticiosa, no aparato material do culto sagrado (cf. Jer 7,12-15). A mente de Jeremias é bem expressa pela seguinte previsão referente aos dias do Messias: «Não se dirá mais: ‘Onde está a Arca da Aliança do Senhor?’ Ninguém mais pensará nela, ninguém mais se recordará dela, ninguém mais a pranteará; ninguém construirá outra nova» (Jer 3,16). Estes dizeres dão claramente a ver que o Profeta supunha a destruição da Arca da Aliança e, consequentemente, a das tábuas da Lei que ela encerrava.
Em conclusão, eis o que se pode colher das principais fontes bíblicas e extra-bíblicas sobre a história das tábuas da Lei de Moisés; qualquer tradição sobre o seu paradeiro carece de fundamento seguro; as conjecturas arriscam-se a cair no terreno da fantasia e da arbitrariedade. É de crer, em última análise, que as tábuas hajam perecido em algum dos vários embates por que passaram o povo de Israel e o Templo de Jerusalém.