(Revista Pergunte e Responderemos, PR 356/1992)
por Frei Mauro Strabeli
Em síntese: O livro de Frei Mauro foi escrito com a melhor das intenções, a saber: elucidar o povo de Deus. Todavia pode perturbá-lo, porque é sumário demais e não raro cede a tendências exegéticas reducionistas, um tanto céticas. Em alguns casos, o autor evita tomar posições definidas, a fim de “facilitar” a fé, tornando a mensagem cristã mais adequada às dimensões da razão. Isto se dá especialmente no tocante à doutrina do pecado original (que não pertence apenas ao domínio da exegese bíblica, mas é objeto de definições conciliares), ao conceito de profecia, à noção do primado de Pedro e seus sucessores, ao episódio das pragas do Egito, ao da Transfiguração do Senhor…
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O autor da obra é capuchinho, professor de Teologia Bíblica no Estado de São Paulo. Recolhe da sua prática pastoral 58 perguntas feitas pelo povo de Deus a respeito do Antigo e do Novo Testamento, e procura responder-lhes de maneira sucinta e em linguagem fácil.[1]
Livros desse tipo são muito necessários, pois os fiéis se sentem carentes de explicações. Acontece, porem, que, diante de textos bíblicos suscetíveis de mais de uma interpretação, o autor opta por uma delas e a propõe como sendo a resposta às dúvidas dos fiéis, sem apresentar os prós e os contras; a hipótese assim torna-se tese ou a sentença que, aparentemente, a exegese contemporânea adota sem mais. Geralmente as hipóteses-teses professadas por Frei Mauro são as de Carlos Mesters e Leonardo Boff, freqüentemente citados no decorrer da obra. – Ora tal procedimento é subjetivo e antididático; se o autor quer esclarecer o público de maneira objetiva e construtiva, deve apresentar-lhe as respostas adequadas, indicando os argumentos sobre os quais se baseia, e a força maior ou menor de tais argumentos. Assim o leitor não será induzido a tomar sentenças discutidas como definitivas ou sentenças errôneas como verídicas.
A obra apresenta vários pontos vulneráveis, como se verá a seguir
1. O pecado original
O pecado que se segue à elevação dos primeiros pais à justiça original – doutrina de fé- é esvaziado: vem a ser simplesmente o primeiro pecado da história, que foi ocasionando outros pecados, de tal modo que a afiança nasce hoje num mundo em pecado:
“O autor bíblico não está querendo descobrir qual o primeiro pecado do homem. Nós é que damos ao texto uma interpretação que é estranha para o próprio autor. A intenção dele é outra: ele não quer provar nada e nem quer demonstrar que houve pecado que se teria transmitido de pai para filho; ele apenas constata que há pecado no mundo; constata que existe em cada pessoa a misteriosa e inexplicável tendência para o mal. Diante da lei de Deus, o homem é tentado a escolher o mal e não o bem. É isso um mistério profundo que se esconde no coração do homem. Cf. C. Mesters. Paraíso terrestre: saudade ou esperança? p. 67.
A narração bíblica sobre o pecado original é montagem literária feita sobre uma grande verdade: o homem pecou, errou no passado, porque ele peca e erra no presente. Essa tendência e essa inclinação de todos para o mal, exigem que tenha existido um mal de raiz, um erro inicial, uma ruptura do homem com sua Origem, que é Deus (ct. C. Mesters, op. cit., p. 97). E, como todos pecamos, essa inclinação está no coração de todos. Ela é passada a todos. Essa é a constatação que o autor bíblico faz, e é verdade. E, para retratar tudo isso, o autor bíblico usa a linguagem simbólica e elementos de sua cultura: nudez, voz de Deus, esconder-se de Deus, etc., como vimos. Para o autor, todo homem é Adão, isto é, pecador” (pp. 35s).
Ora tal explicação do pecado original contradiz ao que a Tradição e o magistério da Igreja sempre ensinaram. Por isto não pode ser aceita. O assunto em pauta é regido por critérios teológicos; vários Concílios se manifestaram sobre a elevação do homem à justiça original (graça santificante e dons preternaturais) e sua queda; os pronunciamentos desses Concílios, que exprimem a Tradição oral, hão de ser tomados como balizas para se interpretar a Tradição escrita ou a Bíblia. Se se negligencia este método, faz-se uma exegese racionalista, não católica.
2. O primado de Pedro
A doutrina do primado de Pedro em Mt 16, 19-19 é também esvaziada; cf. pp. 162-165. A Igreja estaria edificada sobre a confissão de fé de Pedro (“Tu és o Cristo, o Filho de Deus Vivo”) e não sobre a pessoa de Pedro, Vigário de Jesus Cristo. Isto quer dizer que um cristão poderia estar tranqüilo se professasse a messianidade de Jesus, ainda que desvinculado da obediência a Pedro e seus sucessores. Na verdade, porém, Jesus fez de Pedro e seus sucessores não somente os arautos da fé ou do Evangelho, mas também os portadores das chaves que abrem e fecham, que ligam e desligam de maneira sacramental: “Tudo o que ligares na terra, será ligado no céu; tudo o que desligares na terra, será desligado no céu” (Mt 16, 19; texto este que Frei Mauro não cita). Deve-se ainda notar que a explicação do assunto às pp. 162-165 do livro é um tanto ambígua; o autor parece professar a clássica doutrina, mas sutilmente lhe contradiz; cita duas vezes o livro Eclesiogénese de Frei Leonardo Boff.
3. Profecias
O autor tende a reduzir a profecia à análise de situações sócio-econômico-políticas presentes ao profeta. Neste caso, hoje ainda haveria muitos profetas: “Verdadeiro profeta é hoje todo aquele que defende o irmão por ser imagem de Deus, e por ele expõe até a própria vida” (p. 93); e isto independentemente da crença religiosa do “profeta”:
“Não deixa de ser verdadeiro profeta o líder que defende seus irmãos contra as injustiças, as opressões (ainda que não sendo cristão). Todo aquele que expõe sua vida pelo irmão oprimido, todo aquele que ouve o grito de doido homem escravizado e por ele levanta sua voz, esse é profeta de Deus. Por isso há sementes de autêntico profetismo em muitas lideranças sindicais, rurais e operárias de nossos dias” (p. 94).
Quanto à previsão do futuro, o autor assim se exprime:
“Não foi função principal dos profetas bíblicos prever o futuro. Nem isso eles fizeram. Muitas das previsões deles cabem certamente dentro de certo quadro de possibilidades e probabilidades humanas” (p. 94),
O autor parece corrigir-se de algum modo, quando à p. 92 escreve:
“Evidentemente nem todos os oráculos proféticos são apenas previsões lógicas tiradas dos acontecimentos. São também intuições percebidas à luz da fé, da graça e de inspiração de Deus. Sempre, porém, um acontecimento está à base. O profeta é a única pessoa capaz de ler o significado do acontecimento. E ele o faz por graça e inspiração de Deus” (p. 92).
Verdade é que o profeta é aquele que fala por ou em lugar de Deus, seja para analisar o presente, seja para predizer o futuro. As predições não resultam apenas de conjeturas ou de conclusões lógicas, mas são a previsão de acontecimentos distantes, que somente a inspiração divina poderia explicar; tenham-se em vista as profecias messiânicas de Is 7,14s (o Messias-Emanuel); Is 8,23-9,6 (o Messias-Príncipe-da-Paz); Is 11,1-9 (o Messias cheio do Espírito, restaurador da ordem violada pelo pecado); Is 52,13-53, 12 (o Messias padecente em expiação dos pecados)…
4. As pragas do Egito
Segundo Frei Mauro, as pragas do Egito não foram fatos históricos, pois “histórico é o que pode ser comprovado, verificado, aferido” (p. 53). – Ora, se alguém segue esta tese, deverá dizer que a história deixa de ser, em muitos pontos, histórica, pois. quanto mais se retrocede no tempo, tanto mais difícil é comprovar e verificar aquilo que os documentos nos referem. O que se deve fazer, para afirmar se algo é histórico ou não, é averiguar a credibilidade ou a fidelidade dos documentos a nós transmitidos. O relato bíblico das pragas do Egito, embora tenha seus traços hiperbólicos e seus expressionismos próprios, se apresenta como algo de fidedigno: para que o Faraó deixasse partir o povo israelita escravizado, eram necessários sinais que o impressionassem, e tais sinais terão sido aqueles que o livro do Êxodo refere e que os estudiosos verificam ser ocorrentes na terra do Egito. A sucessão dos fenômenos narrados por Ex 7-12 assim se pode explicar:
O primeiro flagelo se deve à enchente do rio Nilo, anualmente verificada em fins do mês de junho. As águas costumam tomar então aspecto vermelho por causa de detritos de barro que descem dos lagos da Abissínia; é este o fenômeno dito “do Nilo vermelho”, o qual se pode parecer com a transformação da caudal em rio de sangue. Normalmente, porém, as águas da cheia não são nocivas nem aos homens nem ao gado. E o que sugere que a enchente da primeira praga haja sido acompanhada por outro fenômeno, como talvez a invasão de pequenos animais dentro do rio, os quais tornaram venenoso o manancial.
P. Heinisch, professor da Universidade de Nimwegen (Holanda), aponta fatos históricos que podem servir para ilustrar o texto bíblico.
Em setembro de 1913, verificou-se numa baía perto de Kiel (Alemanha) a irrupção de numerosíssimas pulgas de água (adaphniae, crustáceos cladoceros), estas, juntamente com os coanoflagelados que aderiam à couraça das mesmas, consumiram todo o oxigênio da água, ocasionando o perecimento dos peixes da baía por sufocação. A massa dos crustáceos invasores dava a impressão de que um corante avermelhado havia sido derramado nas águas, o que bem se explica pelo fato de trazerem as pulgas de água algumas gotinhas de óleo vermelho no seu organismo.
Está averiguado que também certos “flagelados” rubros (englena sangüínea), caso se tornem numerosos, dão colorido sangüíneo à água:
O chamado “Lago Vermelho” perto de Lucerna (Suíça) deve o seu matiz característico a uma espécie de alga (oscillatoria rubescens).[2]
Estes fatos dão a ver que, por via natural, e em circunstâncias diversas, as águas de um rio ou lago podem tomar coloração vermelha, parecendo transformadas em sangue.
A esta seguiram-se outras calamidades conforme um encadeamento assaz compreensível.
As invasões de rãs, mosquitos e vespas (segunda, terceira e quarta pragas) são conseqüências das enchentes do Nilo. Normalmente rãs e mosquitos põem ovos na água ou sobre as águas, onde os mesmos se desenvolvem. Quando, pois, se verificam inundações, multiplica-se um dos fatores principais para o aparecimento de tais animais, que, em conseqüência, penetram nas habitações dos homens e os molestam. As águas terão ocasionado também o ambiente favorável à reprodução extraordinária de moscas venenosas.
Inundações e invasões de animaizinhos provocam não raro doenças e epidemias, como as que se deram na quinta e na sexta pragas.
A geada (sétima praga) é fenômeno que se terá produzido no mês de fevereiro, quando ela se verifica no Egito.
Uma invasão de gafanhotos (oitava praga) também não seria para estranhar em fevereiro ou março, mormente em países orientais, onde tal calamidade parece ter ocorrido com certa freqüência (cf. JI 1, 4; Am 4,9).
Quanto as trevas, que constituem a nona praga, terão sido acarretadas pelo famoso vento quente dito khamsin ou simun. Este sopra a partir do deserto, carregando consigo enormes quantidades de areia, suficientemente espessas para provocar escurecimento da atmosfera. Sua ação se faz sentir em março ou abril, por vezes ainda em maio, e no decurso de dois, três, até seis dias contínuos, durante os quais ainda hoje as estações ferroviárias funcionam à luz acesa em pleno dia. Conforme Heródoto (3,26), parte do exército de Cambises foi sepultada nas areias desse vendaval.
No tocante à décima calamidade (morte dos primogênitos), nenhum fenômeno ordinário se lhe pode comparar. Foi decisiva para que o Faraó se rendesse.
Eis como se podem entender as pragas do Egito no seu respectivo ambiente e clima. Ver a propósito: E. Bettencourt, Para Entender o Antigo Testamento. Ed. Santuário, Aparecida (SP).
5. A Transfiguração de Jesus
A Transfiguração de Jesus “tal como às vezes se imagina… é imagem mais cinematográfica do que real” (p. 167). – O autor julga que não é senão a revelação paulatina que Jesus foi fazendo de si mesmo aos Apóstolos no decorrer da sua vida pública, de tal modo que um dia os Apóstolos “abrem os olhos, maravilham-se com a descoberta e querem ficar com Jesus para sempre. Os evangelistas chamam essa mudança de transfiguração. Jesus mudou, transfigurou-se para eles, é outro. Realmente é o Filho de Deus” (p. 167).
Esta interpretação do relato de Mt 17, 1-8; Mc 9, 2-8; Lc 9, 28-36 é arbitrária. O autor nem sequer se dá ao trabalho de aduzir argumentos ou ponderações que a comprovem. Afirma gratuitamente como se fosse a última palavra da exegese católica. Na verdade, podem-se admitir nos relatos da Transfiguração várias ressonâncias de ordem teológica; os evangelistas quiseram evidenciar a importância do episódio no contexto da Revelação, mas nem por isto o estudioso é obrigado a negar a historicidade da Transfiguração, que a Tradição situa no monte Tabor. Tenha-se em vista, por exemplo, a Bíblia de Jerusalém: ao texto de Mt 17,1 existe a nota x, em que o comentador desenvolve o sentido teológico do relato da Transfiguração, mas não nega a realidade histórica do episódio.
Em suma, o livro de Frei Mauro Strabeli, querendo elucidar o povo, pode perturbá-lo, porque e sumário demais e reducionista (cético); em alguns casos, evita tomar posições definidas, a fim de não exigir “demais” da fé dos seus leitores. Ora não é mediante concessões ao racionalismo um tanto arbitrárias que procede a autêntica catequese. – Como vimos, o autor chega a propor explicações contrárias aos artigos da fé- o que torna o livro francamente nocivo e desaconselhado.
Estêvão Bettencourt O.S.B.
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NOTAS:
[1] Bíblia: Perguntas que o Povo faz, por Frei Mauro Strabeli. – Ed. Paulinas, São Paulo
1990, 150 x 220 mm, 193 pp.
[2] Cf. Heinisch, Das Buch Exodus (Bonn 1934). 81