Casamento: divorciados e comunhão eucarística

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 274/1984)


Em síntese: A recusa da Comunhão Eucarística aos divorciados unidos em novo enlace não se deve a uma disposição meramente disciplinar da Igreja, mas é conseqüência do conceito de matrimônio instituído por Cristo e, por isto, intocável aos homens (inclusive à hierarquia da Igreja): o sacra­mento do matrimônio participa da união de Cristo com a Igreja, que é única e definitiva; diz o Apóstolo que no lar católico o esposo é figura de Cristo e a esposa figura da Igreja (cf. Ef 5,31). Recusa da Eucaristia não quer dizer excomunhão (pena de foro externo, que exclui de toda forma de parti­cipação na vida da Igreja). Por isto a Igreja exorta os divorciados unidos em novo enlace a que não se afastem de Deus, da Missa (à qual devem assistir sem comungar), da oração…, eduquem os filhos na fé católica após levá-los à pia batismal; e participem, quanto possível, da difusão do Reino de Deus. O Senhor há de levar em conta a angústia dos corações de muitas dessas pessoas e dar-lhes-á uma resposta adequada.

Como se vê, a atitude da Igreja, no caso, é de benevolência, que não pode estar desvinculada da doutrina e da verdade; solapar a verdade revelada por Cristo seria trair não somente a Deus, mas também o próprio homem.

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Não há dúvida, a situação dos divorciados unidos em segundo enlace é, na Igreja, profundamente dolorosa. À pri­meira vista, parecem excluídos por «intransigência» da Igreja. Em conseqüência, alguns se julgam desligados de todo vínculo com a comunidade eclesial e se tornam indiferentes a esta. Outros contornam a norma da Igreja e chegam a participar da Comunhão Eucarística, como se a Igreja não a pudesse proibir ou como se a Igreja estivesse para modificar a sua legislação e fosse em breve conceder a Eucaristia a todos os divorciados «re-casados».

Para alimentar a esperança de que o acesso aos sacra­mentos se abrirá a estes (se já não se abriu), tem-se ouvido a voz de estudiosos católicos abalizados que, mediante publica­ções, disseminam perplexidade no povo de Deus. De modo especial, referimo-nos aos artigos do Pe. Eugène Charbonneau publicados no jornal «A Folha de São Paulo» aos 7 e 8 de dezembro de 1983. Uma das alegações que mais fortes pare­cem em favor da distribuição da Eucaristia a tais cristãos, é a de que vivem sua vida conjugal em perfeita harmonia ou em doação mútua tal como freqüentemente não existe dentro de autênticos casais; ademais não querem separar-se da Igreja, mas desejam permanecer filhos dela.

É diante de tais fatos que, a seguir, proporemos o autên­tico pensamento da Igreja, acompanhado de breves comen­tários.

Doutrina ou disciplina?

1. A posição clássica e oficial da Igreja não se deve a princípios de disciplina ou legislação mutáveis. Se se tratasse de questão meramente disciplinar, a Igreja poderia pensar em conceder a comunhão aos divorciados unidos em novo enlace, como adotou o vernáculo em sua Liturgia… As raízes, po­rém, da atitude da Igreja são muito mais profundas; deri­vam-se do seu conceito mesmo de matrimônio, … conceito transmitido pelo Senhor Jesus e, por isto, intocável.

Com efeito. O sacramento do matrimônio participa da união de Deus com a humanidade, plenamente realizada em Jesus Cristo. Sim, já o Antigo Testamento apresentava o Se­nhor Deus como o Esposo da Filha de Jerusalém (= povo de Israel) ; a revelação e a doação de Deus a Síon eram tais que só a união matrimonial a podia simbolizar. Na plenitude dos tempos, o Filho de Deus assumiu a natureza humana em Maria Virgem; o Verbo se fez carne em Jesus Cristo, … dois numa só carne. Essa aliança é selada de modo definitivo e indisso­lúvel pelo sangue e pela água que jorram do lado de Cristo pendente da cruz (cf. Jo 19,34). Ora o casamento cristão repro­duz essa união, no sentido de que é a realização-miniatura (em dois indivíduos) dessa união de Cristo com toda a Igreja. Diz São Paulo que no matrimônio o esposo faz as vezes de Cristo, ao passo que a esposa faz as vezes da Igreja: «Deixará o homem o seu pai e a sua mãe e se ligará à sua mulher, e serão dois numa só carne. É grande este mistério: refiro-me à relação entre Cristo e a sua Igreja» (Ef 5,31s) ; ora, como a união de Cristo com a Igreja é inquebrantável, assim também a do esposo com a esposa unidos pelo sacramento. A inserção do matrimônio sacramental na união de Cristo com a Igreja comunica ao casamento humano uma nobreza singular,… nobreza que, como se compreende, vem a ser fonte de exigên­cias novas, entre as quais a da indissolubilidade: «O que Deus uniu, o homem não o separe» (Mt 19,6). Donde se vê que à Igreja não é lícito retocar a doutrina da indissolubilidade sem trair ou contradizer realidades transcendentais: a do Cristo Esposo e a da Igreja Esposa, renovada e santificada pelo Cristo «mediante imersão na água acompanhada da palavra» (Ef 5,25). Novas núpcias após um casamento sacramental válido não podem ter lugar nem sentido no contexto da única união de Cristo com a Igreja.

É isto que explica a recusa da Eucaristia aos divorciados unidos em novo enlace. Este é_ uma ofensa à aliança de Cristo com a Igreja; gera um estado de pecado mortal, incompatível com a recepção da Eucaristia.

Ademais não adianta ou não tem sentido, para um cris­tão, procurar a união com Cristo na Eucaristia se está incom­patibilizado com a Igreja ou com a doutrina da Igreja, que, no caso, é a do próprio Cristo (cf. Mc 10,5-9; Lc 16,18; Mt 19,3-9; 1Cor 7,10s.39). Bem pode a Igreja dizer o que Cristo dizia: «A minha doutrina não é minha, mas é do Pai que me enviou» (Jo 16,3); Cristo e a Igreja são inseparáveis entre si como Cabeça e Corpo o são, de modo que quem diz Não à Igreja em matéria essencial, está dizendo Não a Cristo.

2. O S. Padre João Paulo II advertia explicitamente na Exortação Familiares Consortio:

«O matrimônio entre duas pessoas batizadas é o símbolo real da união de Cristo com a Igreja, uma união não temporária ou ‘por expe­riência’, mas eternamente fiel; entre dois batizados, portanto, não pode existir senão um matrimônio indissolúvel» (nº 80).

A seguir, referindo-se aos divorciados, escreve o S. Padre:

«Juntamente com o Sínodo exorto vivamente os pastores e a inteira comunidade dos fiéis a ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto batizados, participar na sua vida. Sejam exortados a ouvir a Palavra de Deus, a freqüentar o Sacrifício da Missa, e perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras de penitên­cia para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus. Reze por eles a Igreja, encoraje-os, mostre-se mãe misericordiosa e sustente-os na fé e no esperança».

A estas palavras de estímulo acrescenta o S. Padre:

«A Igreja, contudo, reafirma a sua práxis, fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união. Não podem ser admitidos, do momento em que o seu estado e as suas condições de vida contradizem objetiva­mente àquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e realizada na Eucaristia. Há, além disto, outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubi­lidade do matrimônio» (nº 84).

Eis novo aspecto do problema:

«O respeito devido tanto ao sacramento do matrimônio quanto aos próprios cônjuges e aos seus familiares, e ainda à comunidade dos fiéis proíbe os pastores, por qualquer motivo ou pretexto mesmo pas­toral, de fazer em favor dos divorciados que contraem uma nova união, cerimônias de qualquer gênero. Estas dariam a impressão de celebração de novas núpcias sacramentais válidas, e conseqüentemente induziriam em erro sobre a indissolubilidade do matrimônio contraído validamente» (nº 84).

Em outro inciso do mesmo n° 84, insinua o S. Padre a possibilidade de se dar a Eucaristia a pessoas cuja união con­jugal não seja legítima, mas que vivam sob o mesmo teto como irmão e irmã. Em tais casos, para que comunguem, requer-se que evitem o possível escândalo, procurando os sacramentos em igreja de região onde não sejam conhecidas tais pessoas.

Pergunta-se, porém: a Igreja só tem recusas aos católicos que vivam conjugalmente fora do sacramento do matrimônio? – Não, como veremos abaixo.

2. Linhas pastorais

O problema dos divorciados unidos de novo é cada vez mais freqüente e doloroso. A Igreja não lhe pode ser insen­sível; eis que Ela tem desenvolvido a pastoral dos divorciados. Para entendê-la devidamente, notemos o seguinte:

Estar impedido de freqüentar a comunhão eucarística não é o mesmo que estar excomungado. – A excomunhão é uma censura de foro externo, que priva o fiel católico da partici­pação dos sacramentos e da vida da Igreja; sendo de foro externo, ela supõe pecado ou culpa de foro interno, mas não define necessariamente a situação de foro interno do sujeito excomungado. – Ao contrário, o estado de vida conjugal ilí­cita constitui pecado ou culpa de foro interno – o que é sufi­ciente para excluir da Comunhão Eucarística; todavia a Igreja não impõe a pena de excomunhão (no foro externo) a quem vive com consórcio marital ilegítimo – o que quer dizer que aos divorciados é lícito assistir à S. Missa e conviver dentro da Igreja.

Em conseqüência a Igreja tem tomado todas as disposi­ções de animação compatíveis com a doutrina do Evangelho em favor dos divorciados: convida tais filhos a participarem da vida eclesial, freqüentando a S. Missa (sem comungar, dado que isto ultrapassa as possibilidades da Igreja), colaborando para a difusão do Reino de Deus, especialmente pela educação religiosa dos filhos, entregando-se assiduamente à oração con­fiante (pois Deus tem recursos para resolver tais impasses e solucionar os casos difíceis… ) … Assim a Igreja não esquece a misericórdia para com os que foram infelizes no casamento, mas só pode exercer misericórdia dentro da verdade. A Igreja não é lícito proceder como se a situação em que se acham os divorciados «re-casados», fosse conciliável com o mistério do casamento cristão (cf. Ef 5,31). O verdadeiro bem da comu­nidade cristã e da humanidade – como também o dos espo­sos – pede à Igreja essa fidelidade onerosa. Se a Igreja esquecesse a componente social e comunitária da sexualidade, ela trairia a sociedade; estaria solapando ou minando a célula germinal da comunidade humana, reduzindo o amor e a sexua­lidade apenas às suas dimensões individuais ou interpessoais. Pelo mesmo motivo comunitário, à Igreja não é lícito esque­cer a dimensão eclesial do sacramento do matrimônio. Vê-se, pois, que a posição da Igreja não é arbitrária nem depende de «boa vontade» ou de «mais compreensão», mas é ditada por valores que, por sua grandeza, ultrapassam os limites deste ou daquele homem. A Igreja, para ser fiel a Deus e aos homens, toca assumir funções que, à primeira vista, não são compreendidas, mas que, em última instância, são generosos serviços prestados à humanidade. Certa vez um repórter de Paris-Match disse ao bispo Mons. Jacques Jullien, presidente da Comissão Pró-Família da França: «Uma quarta parte dos casamentos religiosos acaba no divórcio; é mais do que tempo de tirar disto as conseqüências!» Ao que respondeu o prelado:

«Num mundo que já não acredita na perseverança, na fidelidade, no perdão, no amor, se nós, os cristãos, pobres cristãos, mas sal da terra por vocação, já não formos testemunhas da fidelidade, da pa­lavra dada e mantida até a morte,… quem o será? E, se ninguém o for, o mundo morrerá» (Paris Match, 17/10/1980).

A firmeza de posição da Igreja não exclui a separação judicial de cônjuges cuja vida comum se torne um tormento. Há casos em que realmente é melhor deixar de coabitar do que permanecer em constante desgaste sob o mesmo teto, dando péssimo testemunho aos filhos. O que a Igreja fiel a Cristo não pode aceitar é uma nova união conjugal, pois esta estaria em antítese com o sacramento da aliança (entre Cristo e a Igreja), que é indissolúvel.

Quer isto dizer que os divorciados «re-casados» estão entregues «à ira de Deus» (cf. Rm 5,9) ? – De modo nenhum. Ofereçam ao Senhor seus anseios, suas expectativas, sua

con­fiança… O Pai do céu não pode deixar de considerar o drama em que vivem tantas pessoas desejosas de união com Deus dentro de uma vida a dois não legitimada pelo sacramento. À Igreja não é lícito ir além das faculdades que Cristo lhe outorgou na dispensação das graças da salvação, mas Ela acompanha com orações, votos e solicitude os seus filhos afas­tados da Comunhão Eucarística; Ela continua sendo Mãe, … Mãe cuja permanente aspiração é levar todos os homens a Deus.

Neste mundo em que a família está em crise, com detri­mento para toda a sociedade, a Igreja é chamada a ser o sal da terra. Ela só o poderá ser se for fiel à verdade e à mise­ricórdia. Ela deve viver a aliança «na justiça e no direito, na ternura, na misericórdia… e na fidelidade» (Os 2,21s). Com­pete-lhe proclamar os dois valores simultaneamente: a miseri­córdia e a justiça ou o direito; a misericórdia sem a justiça trairia a verdade das coisas e levaria a uma cumplicidade amorfa e desfibrada; a justiça sem a misericórdia induziria ao farisaísmo. O amor de Deus é misericordioso e também justo. Ao lado de compreensão profunda da situação dos pecadores (cf. Le 7,36-51; Jo 7,53-8,11; 5,14… ), Jesus deu provas de exigências para com os discípulos, exortando-os a uma radica­lidade sadia, contrária a toda moleza ou covardia (cf. Mt 26, 24-26); no tocante ao matrimônio, propôs um programa de vida coerente e elevado a tal ponto que os discípulos exclama­ram: «Se tal é a condição do homem em relação à mulher, não vale a pena casar» (Mt 19,10).

A praxe pastoral desligada da doutrina não seria autên­tica pastoral, pois, em vez de servir ao homem, o prejudicaria, subtraindo-lhe a verdade do homem e a verdade de Deus.

As dificuldades do problema pastoral dos divorciados «re­-casados» não decorre de dureza disciplinar da Igreja. É, antes, a contra-parte da grandeza do desígnio de Deus sobre o casa­mento. Por isto importa não considerar o matrimônio cristão apenas em seus casos de fracasso; estes pedem atenção espe­cial, sem dúvida, mas, mais ainda, solicitam dos pastores em­penho ainda maior para revelar aos cristãos – noivos e casa­dos – quanto «este mistério é grande em vista de Cristo e da Igreja» (Ef 5,32). Apregoem a uns e outros a dignidade da vida conjugal e de seus apelos, a fim de evitar que se multi­pliquem os casos de fracasso.

3. Uma objeção

Não raro se ouve dizer que a Igreja aplica dois pesos e duas medidas, não permitindo aos divorciados novas núpcias, mas abençoando o casamento de sacerdotes que Ela dispensa do celibato. – Que pensar a respeito?

– É preciso lembrar que o sacramento do matrimônio é, por sua própria índole, indissolúvel; a indissolubilidade não depende de um estatuto da Igreja, mas de uma disposição do próprio Cristo, que é certamente intocável (cf. Mt 5,32; 19,4-9; Mc 10,5-12; Lc 16,18; 1Cor 7,10s.39). Ao invés, o celibato sacerdotal decorre de uma determinação da Igreja, determi­nação da qual a Igreja pode dispensar desde que haja razões muito ponderosas para tanto. Por si o sacramento da Ordem não exclui o do matrimônio; em conseqüência, na Igreja Orien­tal os sacerdotes são casados (casados antes de receber a orde­nação; nunca se podem casar depois de ordenados); no Oriente cristão a Tradição do celibato sacerdotal não chegou a ser transformada em lei da Igreja, como foi no Ocidente. Por isto a Igreja julga estar em seu poder desvincular do celibato sacerdotes infelizes em sua vocação, ao passo que não lhe toca a faculdade de dissolver núpcias válidas contraídas em Cristo. Note-se, aliás, que, se na década de 70 houve número cons­pícuo de dispensas do celibato sacerdotal, estas, sob João Paulo II, se têm rarefeito ao extremo.

Donde se vê não ser fundamentada a afirmação de que a Igreja é arbitrária na concessão de suas dispensas, favore­cendo aos clérigos e exigindo mais dos leigos casados.

A propósito ver CHRISTUS nº 120, octobre 1983: “Les Divorcés Remariés”.