Casamento, divórcio: divorcista e católico?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 007/1957)

«Sou a favor do divórcio e queria saber se é possível ser divorcista e católico».

Em absoluto não é possível alguém ser católico e divorcista. Não se creia que esta afirmação seja ditada por maneira de pensar antiquada, estando, portanto, sujeita a reforma. Não; o divórcio contradiz diretamente ao conceito de matrimônio que tanto a sã razão como a fé cristã incutem.

Consideremos isto sucintamente.

O casamento é função da natureza destinada à conservação e propagação da espécie; função paralela à de alimentar-se, que visa a conservação do indivíduo. Disto se segue que as leis do matrimônio não são ditadas apenas pelo bem-estar pessoal dos cônjuges, mas pelas exigências do bem comum (como a função de comer não é simplesmente regida pelo deleite que o homem experimenta ao exercê-la).

Consoante este modo de ver, indicam-se classicamente três finalidades ou três bens que dão estrutura característica ao matrimônio:

1) O homem pode ser considerado em seu aspecto ínfimo, enquanto é simplesmente um vivente, como os irracionais e as plantas são viventes; neste caso, o matrimônio é orientado à prole ou à geração e educação de filhos. É este o bem fundamental, fim primário de qualquer casamento.

2) O homem pode ser visto não apenas como vivente, mas qual vivente racional, tipicamente humano. Neste caso, o matrimônio se destina a proporcionar auxílio mútuo, corporal e espiritual, aos cônjuges.

3) O homem ainda pode ser considerado como filho de Deus, cristão. Neste caso, o matrimônio visa o bem do «sacramento», o que quer dizer: torna-se mistério pequeno dentro de um Mistério Grande, que lhe comunica nova dignidade (cf. Ef 5,31s).

Ora os dois bens visados pelo matrimônio no plano natu­ral e o terceiro, característico do casamento cristão, exigem, com rigor ascendente, indissolubilidade do vínculo. É o que se depreende de ligeira reflexão:

1) não basta que os genitores gerem a prole para que preencham suas respectivas funções: toca-lhes outrossim o dever de educar. Sem este complemento (que só os pais podem exercer adequadamente), a função biológica de gerar poderia tornar-se nociva. – Eis, porém, que o cumprimento de tal missão pede a estabilidade da família, a colaboração da auto­ridade e da energia paternas com a delicadeza e a dedicação maternas.

2) A felicidade dos cônjuges, por paradoxal que isto pa­reça, exige igualmente a indissolubilidade.

O homem por sua própria natureza é impelido a amar e a doar-se totalmente ao objeto amado. Ora, após o Criador, Alfa e Omega de todas as criaturas, qual o objeto ao qual mais se deva dedicar a criatura humana do que a sua consorte, lugar-tenente de Deus, com a qual o indivíduo se completa física e psiquicamente numa intimidade só ultrapassada pela intimidade com o Senhor? Isto não quer dizer que o homem, amando, deva necessariamente encontrar deleite natural; geral­mente o amor nobre conhece as suas horas de sacrifício; às vezes tem de verificar que ele dá mais do que recebe. Em qualquer caso, porém, sabe que dá mais felicidade em dar do que em receber» (At 20,35); só o sacrifício dilata o ânimo, arrancando-o ao egoísmo.

Ora a possibilidade de divórcio legal equivale a um golpe desferido sobre a heroicidade dos cônjuges: em primeiro lugar, favorece a leviandade na escolha do consorte; a seguir, no decorrer da vida conjugal, faz que qualquer dissabor possa assumir proporções desarrazoadas, pois se entrevê a perspectiva de largar a luta. O estado de ânimos, talvez inconscientemente debilitados, que o divórcio assim produz, certamente não contribui para diminuir as infelicidades conjugais.

Mas dir-se-á: embora se reconheçam os males fomentados pelo divórcio, concedamo-lo em casos raros, excepcionalmente dolorosos.

Replica-se: a concessão em tais casos ainda acarreta maior mal do que bem. – Quem saberia traçar a linha de demarca­ção entre os casos «excepcionalmente dolorosos» e os «não excepcionalmente dolorosos?» Desde que o divórcio seja de algum modo legalizado, exerce a sua influência destruidora: «A idéia do divórcio cria a matéria divorciável… No seio dos lares introduz não sei que de precário, provisório e hipotético, que impede a família de realizar suas finalidades fisiológicas, psíquicas e morais»

(L. Franca, O divórcio. Rio de Janeiro 1952, 62). É, pois, em nome do bem comum que se denega o divórcio mesmo aos casos excepcionais (casos que se multiplicariam de tal modo que deixariam de ser exceção). Toda lei, visando proteger os interesses da coletividade, impõe necessariamente privações particulares.

3. As razões antidivorcistas acima são corroboradas pelas exigências do matrimônio «sacramento cristão».

O matrimônio modelo, para o cristão, é a união de Cristo com a Igreja, união que visa gerar filhos de Deus adotivos. Pois bem; o esposo cristão participa do papel e da dignidade de Cristo; a esposa cristã toma parte na nobreza e nas funções da Igreja; assim entre eles se realiza como que uma miniatura do Grande Mistério ou do Sacramento primordial (cf. Ef 5,31s). Isto faz que o matrimônio cristão apresente as propriedades da união de Cristo com a Igreja; entre estas, aponta-se a totalidade irrevogável da doação: Cristo se deu até a morte à sua Igreja e jamais a abandonará; por sua vez, a Igreja será sempre a guarda inviolável da doutrina e da vida do Senhor a ser transmitidas aos homens. Por conseguinte, o matrimônio sacramental será também indissolúvel. É esta, à luz da fé, a mais intransigente das razões antidivorcistas.

O discípulo de Cristo, mais do que qualquer outro homem, sabe que casar-se está longe de ser concessão feita à natureza em vista de gozo; é, ao contrário, missão, a qual, além de alegrias, implica sacrifício, exercício de uma função sacerdotal; os esposos cristãos têm consciência de que foram chamados a se santificar um ao outro, e ambos à prole e a sociedade. Por isto também não os surpreende nem atemoriza a perspectiva da indissolubilidade do matrimônio; sabem que possuem a graça de estado, auxílio especial do Senhor para cumprir a sua tarefa.

Quanto à fórmula que visa conceder o divórcio aos cônjuges não-católicos, vedando-o aos católicos, a Igreja não a pode aceitar, pois o divórcio contradiz às exigências da natureza

humana como tal; e o Cristianismo é guarda das leis naturais, pois também exprimem o plano sábio do Criador. Ademais percebe-se a que graves abusos daria lugar tal concessão; equivaleria a uma armadilha continuamente preparada para a consciência de cristãos e não-cristãos, estimulando a ambigüidade e a hipocrisia na sociedade.

M. C. (Rio de Janeiro)

«Há casos em que a Igreja permite o divórcio?»

Após o que acima foi dito, compreende-se que não os haja em absoluto. Não está em poder da Igreja anular um casamento validamente contraído e devidamente consumado pelo consórcio marital. Em casos dolorosos, a Moral cristã reconhe­ce apenas o desquite, o qual não dá direito a novas núpcias.

Acontece, porém, que um matrimônio cristão validamente contraído jamais tenha sido consumado no lar pela união conjugal (admita-se, por exemplo, que o esposo tenha tido que partir para a guerra pouco depois de se casar). Em tais casos, se os esposos desejam separar-se e contrair novas núpcias, isto lhes pode ser facultado pela autoridade da Igreja; é preciso, porém, que apresentem à Santa Sé, por meio do bispo diocesano, as respectivas provas de não-consumação do matrimônio e se submetam ao julgamento do Santo Padre.

Pode acontecer também que o matrimônio não tenha sido validamente contraído, seja porque não se observaram as exigências do Ritual (presença de testemunhas, de sacerdote devidamente habilitado, quando possível), seja porque um impedimento dirimente ou um defeito essencial no consenti­mento tornou nulo o contrato matrimonial, embora a todos parecesse válido. Entre os impedimentos dirimentes citam-se, por exemplo, o medo ou a violência sob os quais um dos nubentes dê consentimento ao matrimônio, a afinidade em terceiro grau Colateral, a profissão religiosa solene (cf. «P. R. » 11/1958 qu. 6); defeitos essenciais no consentimento seriam a exclusão da indissolubilidade matrimonial ou da prole. Em casos semelhantes, os cônjuges não estão, na realidade, casados. Podem então declarar à autoridade eclesiástica qual o impedimento ou o defeito que julguem haja tornado nulo o contrato; o tribunal eclesiástico competente (que é o da diocese em que foi realizado o. matrimônio ou, caso esteja muito afastado, a da diocese em que reside o marido) julgará as provas apresentadas e terminará seu exame minucioso com a simples sentença: «Consta» ou «Não consta da nulidade do casamento». O juiz eclesiástico, portanto, de modo nenhum anula um matrimônio válido, mas apenas verifica e declara a existência ou não-existência de matrimônio, habilitando, em caso de nulidade, as partes interessadas a contrair núpcias válidas.

«Porque a Igreja Católica proíbe o divórcio? O próprio Jesus o permitiu em caso de adultério (cf. Mt 5,32; 19,9).

As razões pelas quais a igreja proíbe o divórcio, já ante­riormente expostas (cf. qu. 4 deste fascículo), não são de modo nenhum desvirtuadas pelas palavras de Jesus acima referidas.

Para maior clareza de exposição, eis os textos mencionados, na tradução mais corrente que se lhes dá:

Mt 5,32 : «Todo aquele que repudia sua esposa, fora do caso de adultério (parektós lógou pornéias), expõe-na a adultério; e, todo aquele que esposa uma mulher repudiada, comete adultério»;

Mt 19,9: «Todo aquele que repudia sua esposa, a não ser em caso de adultério (me epi pornéiai), e se casa com outra, comete adultério».

Estas duas passagens são interpretadas pelos cristãos cismáticos do Oriente e pelos protestantes como se autorizassem o divórcio em caso de adultério. Verifica-se, porém, que tal interpretação não condiz com os textos paralelos de Mc 10,11s e Lc 16,18, em que Jesus ensina irrestritamente a indissolubi­lidade do matrimônio (omitida a cláusula de adultério); supõe, além disto, haja São Paulo ordenado em nome do Senhor o contrário do que o Senhor mesmo preceituou:

«Aos cônjuges ordeno, não eu, mas o Senhor: a esposa não se separe do marido e, se porventura se separar, não se case de novo» (1 Cor 7,10s).

Já estas considerações tornam a interpretação divorcista dos textos de Mt assaz suspeita, se não impossível; o Evange­lho tem que ser explicado primariamente pelo Evangelho e pela Escritura Sagrada em geral. Ora, no tocante aos textos de Mt 5 e 19, não resta dúvida de que S. Marcos, S. Lucas e S. Paulo nos transmitem a genuína mente do Senhor.

À vista disso, os exegetas conhecem duas principais expli­cações das referidas palavras do Mestre:

1) a sentença clássica desde os tempos de São Jerônimo (falecido em 420), traduzindo a palavra grega pornéia por «adultério», ensina que Jesus realmente admitiu o repúdio da esposa em caso de adultério, ou seja, a separação do casal, o desquite, mas com isto não autorizou novas núpcias, pois Ele acrescenta que todo varão que se case com uma mulher repudiada ou desqui­tada comete pecado (Mt 5,32), assim como peca todo homem desquitado que se case de novo antes da morte de sua esposa (Mt 19,9).

Poder-se-ia perguntar por que Jesus fez menção especial do caso de adultério, ao formular as normas acima.

Os motivos se depreendem sem grande dificuldade: em Mt 6,32, se Jesus não tivesse feito a exceção, haveria dito que o marido que repudia a esposa adúltera, a expõe a adultério – afirmação muito estranha! Além disto, a propósito tanto de Mt 5 como de Mt 19, note-se que o adultério era objeto de particular atenção na Lei mosaica; o marido que surpreendesse a mulher em adultério, tinha o direito, se não o dever, de a denunciar e de provocar o castigo da mesma, que era habitualmente a pena de morte (cf. Lev 18,20; 20,10; Dt 22,20) : ora, uma vez morta a esposa adúltera, está claro que o marido, ca­sando-se de novo, não cometeria adultério. Dado, porém, que a esposa adúltera não fosse apedrejada ou não morresse logo, ficaria claro, conforme Jesus, que novas núpcias não seriam permitidas a nenhum dos cônjuges desquitados.

2) Uma interpretação mais recente tem merecido a aprovação de abalizados exegetas. O Pe. J. Bonsirven, especialista em estudos rabínicos, analisou os textos de Mt à luz da terminologia dos judeus contemporâneos de Cristo. Concluiu, baseado sobre erudito aparato de filologia bíblica e extra-bíblica assim como de jurisprudência rabínica, que o termo grego pornéia corresponde ao hebraico zenut; ora este designava não adultério (como supõe a interpretação clássica.), mas o con­cubinato, ou seja, a união ilícita, o matrimônio falso ou nulo (cf. Lev 18,7-18; Jo 4,17s; 1 Cor 5,1). Suposto isto, Jesus haveria condenado o divórcio em casos de matrimônio válido; tê-lo-ia, porém, permitido (se se pode assim dizer) desde que se trate de casamento nulo ou de união incestuosa (não há dúvida, esta também pode ser saneada pela legalização do matrimônio ou pela legitimação do contrato nupcial).

Veja-se J. Bonsirven, Le divorce dans le Nouveau Testament. Tournai 1949; Revista Eclesiástica Brasileira 12 (1952) 609s; Revista de Cultura Bíblica 1 (1956) 1-16.

Além destas duas sentenças, uma terceira goza de certa voga (cf. a nota explicativa a Mt 19,9 na «Bíblia de Jerusalém»).

A lei de Moisés (Dt 24,1) concedia ao marido repudiar a esposa, caso nela notasse «algo de torpe», ‘erwat dabar. Esta expressão, vaga como é, recebia duas interpretações por parte das escolas rabínicas contemporâneas a Cristo: a de Hillel alargava ao máximo o sentido das palavras, compreendendo sob elas até uma falta de respeito ou, leve ofensa; a de Shammai, ao contrário, entendia o ‘erwat, dabar no estrito sentido de adultério. Pois bem; perante as duas sentenças discutidas, Jesus se teria recusado a tomar posição; haveria dito, por conseguinte, em Mt 19,9 «Todo aquele que repudia sua esposa – não falo do ‘erwat dabar, das possibilidades de repúdio admitidas pelos casuístas judeus – e se casa com outra, comete adultério».

Deixando, porém, de tomar partido entre Hillel e Shammai, Jesus não entendia permitir o divórcio (separação com novas núpcias), como se depreende das suas próprias palavras, assim como de todo o contexto do Evangelho e do Novo Testamento.

Que santo e salutar é o estado conjugal, mas ainda mais nobre é o estado virginal

Parece merecer preferência a primeira ou a segunda interpretação acima proposta.