Casamento: indissolubilidade matrimonial

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 156/1972)


Divórcio legalizado pela igreja ?

Comunhão para “casais” não casados?

Em síntese: Não poucos autores católicos têm dado atenção à proble­mática do divórcio, visando a aliviar a sorte de casais infelizes em seu contrato matrimonial.

A fim de se examinarem as novas teses propostas sobre o assunto, convém fixar dois pontos que ficarão firmes na doutrina da Igreja:

1) a indissolubilidade do matrimônio decorre da lei natural ou é inerente ao conceito de amor autêntico, independentemente de qualquer crença re­ligiosa;

2) o vínculo natural foi elevado ao plano sobrenatural por Jesus Cristo. Em conseqüência, a Igreja ensina que o conceito de matrimonio se realiza de maneira perfeita em todo casamento sacramental e consumado. Somente este é de todo indissolúvel. O vínculo natural, assim como o casamento sa­cramental não consumado, têm sido dissolvidos pela Igreja desde que haja motivo para isto.

A futura legislação canônica não alterará o item 2 acima. O que se espera, é uma revisão da lista de impedimentos dirimentes do matrimonio; os que figuram atualmente no Código de Direito Canônico supõem, por ve­zes, costumes já ultrapassados e não levam em conta situações inéditas contemporâneas. Há quem pleiteie também a revisão do conceito de matrimonio consumado, apelando para critérios mais pessoais ou subjetivos; as novas sentenças, porém, parecem desvirtuar a objetividade do matrimonio consu­mado; praticamente, este deixaria de existir.

Quanto à concessão da Comunhão Eucarística a pessoas “unidas” en­tre si, mas não casadas legalmente perante a Igreja, é evidentemente um avanço que não se justifica perante a doutrina católica e que provocou re­centemente duas declarações de Srs. Bispos no Brasil; estes pastores lem­braram a iliceidade de tal inovação. Que os “casais” não casados, embora não possam receber a S. Comunhão, não deixem de orar a Deus e de 0 procurar na sinceridade do seu coração!

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Comentário: Quem acompanha o rumo das idéias no mun­do e na Igreja de nossos tempos, pode notar que se vão esboçando novas tendências no tocante à Moral conjugal: além da questão do controle da natalidade e dos anticoncepcionais, está em voga na Igreja Católica o estudo do divórcio, que tem suscitado vasta bibliografia entre autores católicos em vista da reforma do Direito Canônico. Tenha-se em vista, entre ou­tros dados, a interessante resenha bibliográfica (apresentação de livros e artigos sobre divórcio publicados desde 1965) ela­borada pelo P. Marcus Bach e editada na revista «Perspectiva Teológica», ano IV, n° 7 (julho-dezembro), 1972, pp. 255-281.

Recentemente, a imprensa noticiava que nos EE.UU. da América alguns bispos e sacerdotes concederam a Comunhão Eucarística a pessoas que, após o divórcio, estão unidas a con­sortes em vida conjugal não sacramental. A nova praxe tem provocado protestos dentro da própria Igreja Católica. Cf. «Time», october 2, 1972 p. 34.

Sucessivos Congressos de teólogos, moralistas e canonistas têm-se realizado a fim de debater problemas morais, entre os quais figura freqüentemente o divórcio. Pode-se mencionar, por exemplo, o Simpósio sobre «O vínculo matrimonial» efetua­do de 15 a 18 de outubro de 1967, na Universidade de Notre­-Dame nos EE. UU. Em maio de 1970, ocorreu em Estrasburgo (França) um grande Colóquio Internacional de Direito Ecle­siástico, onde o P. Gerhardz, professor de Direito Canônico na Universidade de Francoforte (Alemanha), apresentou novas teses.

Ainda em setembro de 1970 teve lugar em Chantilly (Fran­ca) um Congresso de teólogos moralistas: entre outras coisas, debateu a noção de matrimônio consumado; este dependeria ne­cessária e exclusivamente da cópula carnal? Uma vez efetuada a união sexual, estará definitivamente consumada a união ma­trimonial? – Em resposta a estas perguntas, os congressistas de Chantilly chegaram a preconizar, para o novo Código de Di­reito Canônico, dois tipos de casamento cristão: o primeiro (que não deveria ser confundido com casamento experimental) para as pessoas ainda não plenamente maduras do ponto de vista cristão; seria um contrato natural, reconhecido e abençoado pela Igreja, o qual encaminharia os cônjuges para o segundo tipo de casamento. Este outro seria o sacramento propriamente di­to, dotado de indissolubilidade absoluta (ao menos em tese, pois se poderiam admitir exceções); seria ministrado quando os esposos estivessem suficientemente seguros na sua vida conju­gal e fortes na sua fé cristã.

São também numerosas as obras que, com muita erudição, abordam a indissolubilidade do matrimônio e o divórcio. As ra­zões que geralmente movem os respectivos autores, são de índole pastoral: procurando conservar plena fidelidade a Cristo e ao Evangelho no tocante à doutrina do matrimônio, têm em vis­ta simultaneamente aliviar a sorte dos esposos que naufragaram em seu casamento. O Patriarca Máximo IV Saigh, de Antio­quia, terá dito ao Padre Wenger, ex-redator do jornal «La Croix» de Paris: «Não poderemos permanecer em paz diante dos sofrimentos freqüentemente agudos de grande número de homens, se não fizermos tudo que esteja em nosso poder para encontrar a luz» (citado em «Ecclesia» 261, dezembro 1970, p. 22). A intenção de quem assim fala, é certamente boa e lou­vável; todavia as tentativas de solução apresentadas para ir ao encontro dos casais infelizes suscitam por vezes hesitação e perplexidade. Eis por que, nas páginas subseqüentes, procura­remos traçar algumas linhas seguras que projetarão luz sobre as sentenças e hipóteses da literatura teológica contemporânea.

1. Dois pontos essenciais

O juízo a se proferir sobre a tese favorável ao divórcio de­pende da resposta a uma dupla questão de importância capital, a saber:

A indissolubilidade do matrimônio apregoada pela Igre­ja Católica é a expressão da lei natural e da fé cristã ou cons­titui um artigo da disciplina própria da Igreja Católica? Nes­te caso, a indissolubilidade se impõe aos católicos, e somente a estes. E, se é mera questão de disciplina eclesiástica, compreen­de-se que se pleiteie reforma da mesma.

Mas pode-se também perguntar: a indissolubilidade do matrimônio não é um dado inscrito na própria natureza hu­mana?

Após atento exame do assunto, a sã razão e a teologia afir­mam a segunda tese, assim enunciada:

1.1. O matrimônio é indissolúvel por sua própria índole ou por lei natural, anteriormente a qualquer lei positiva (religiosa ou civil).

Como se justifica esta afirmativa?

A união conjugal é naturalmente inspirada pelo amor. Ora amar é, antes do mais, dar-se, e dar-se de maneira total e gra­tuita. Um tal amor nobilita o ser humano. Este só é grande na medida em que se dá; a verdadeira grandeza consiste em que o homem se dedique totalmente. Restrições e instabilidade nos compromissos e no amor são sinal de fraqueza e imaturidade. Note-se também que a doação mútua de dois conjugues é o tipo de união mais íntima possível; por isto ela pede essa totalidade que consta de monogamia e indissolubilidade (união de dois con­sortes para toda a vida). Um jovem que diga à sua namorada: «Eu te amo perdidamente até amanhã ao meio-dia», não a con­vence. Quem declare: «Darei tudo por ti até enjoar», não en­trega amor, mas um simulacro de amor furado, porque egoís­ta; tal simulacro não é apto a suscitar amor, mas, sim, cobiça interesseira (egocêntrica).

Além disto, observam os sociólogos que o matrimônio mo­nogâmico e indissolúvel constitui o ambiente mais oportuno pa­ra o feliz desenvolvimento dos filhos.

Nem sempre os homens compreenderam a indissolubilidade do matrimônio, embora seja decorrente da lei natural; tenham­-se em vista, por exemplo, os judeus, aos quais a Lei de Moisés concedia o divórcio (cf. Dt 24, 14). Na verdade, existem na lei natural

preceitos primários, dos quais jamais pode haver dispen­sa (por exemplo, não adorar falsos deuses ou ídolos, não matar o inocente…), e

preceitos secundários, que são passivos de dispensa, su­pondo-se determinada população em uma fase primitiva ou re­tardada de vida moral. Tal é o preceito natural da indissolubi­lidade do matrimônio, do qual o povo de Israel foi dispensado quando ainda era um povo rude ou de dura cerviz, segundo as palavras do próprio Cristo:

«Acercaram-se de Jesus alguns fariseus com intenção de o apanhar em falta e lhe perguntaram: ‘É lícito ao homem repu­diar a sua esposa por qualquer motivo?’

Ele respondeu: ‘Não lestes que o Criador no princípio os criou homem e mulher e lhes disse: Por isto o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua esposa e os dois formarão uma só carne? Assim já não são dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o homem aquilo que Deus uniu.’

‘Por que então, dizem eles, mandou Moisés dar o documen­to de repúdio e abandonar a esposa?’

Ele lhes diz: ‘Foi por causa da dureza de vosso coração que Moisés vos permitiu abandonar vossas esposas, mas a prin­cípio não foi assim’» (Mt 19,8).

Após Cristo, é missão dos filósofos e da Igreja apregoar o ideal matrimonial em sua grandeza e totalidade.

Por isto é que, mesmo nas sociedades pluralistas contempo­râneas, onde credos e filosofias diversas são simultaneamente professados, a Igreja não cessa de proclamar a indissolubilidade do vínculo não somente para os fiéis católicos, mas também pa­ra os não-católicos. Ela tem consciência de não estar preten­dendo, mediante a legislação civil, impor à sociedade pluralista normas propriamente católicas (o que seria censurável e viola­ria o direito de todo homem à liberdade religiosa). Rejeitando o divórcio de maneira peremptória, a Igreja tem consciência de estar simplesmente defendendo os direitos do homem como ho­mem.

Eis uma segunda proposição que ficará sendo fundamental na doutrina da Igreja:

1.2. A indissolubilidade natural do matrimônio foi por Jesus Cristo elevada ao plano sobrenatural ou sacramental.

Em outras palavras: a união conjugal de dois cristãos já não é simplesmente célula da sociedade humana, mas participa de uma realidade maior e ainda mais densa que é a união de Cristo com a Igreja; o sacerdócio e a Redenção de Cristo se exercem de maneira especial no casal cristão. Na família cristã preparam-se não apenas bons cidadãos da cidade terres­tre, mas também, e principalmente, filhos de Deus, irmãos do Primogênito, herdeiros da pátria celeste. Tudo o que no lar cristão se faça, reveste-se de nova dignidade; é sempre santo, jamais meramente profano, pois o matrimônio é um sacramen­to permanente (é sacramento que não cessa quando cessa a ce­lebração ritual do mesmo em presença de um presbítero, mas se prolongam enquanto os esposos vivem). Também a Eucaris­tia é sacramento permanente: não termina com a celebração da S. Missa, mas subsiste enquanto subsistem o pão e o vinho consagrados.

Aos poucos dentro da Igreja aflorou a consciência de que a indissolubilidade cabe por excelência ao matrimônio desde que seja

1) sacramental (ratum, em latim), isto é, celebrado vali­damente entre dois fiéis católicos, e

2) consumado pela união carnal.

Tal casamento realiza em plenitude o conceito de matrimô­nio. Em conseqüência, a Igreja, por motivos graves (que ge­ralmente são a preservação e a conservação da fé dos interes­sados), tem dissolvido o casamento não sacramental (o vínculo natural) e o casamento sacramental não consumado. Pre­cisamente cinco são os casos concretos em que os tribunais ecle­siásticos têm dissolvido o matrimônio não sacramental ou o ma­trimônio sacramental não consumado:

1) o caso do privilégio paulino (cf. 1 Cor 7, 12-16 e Có­digo de Direito Canônico, cân. 1120) : de dois cônjuges não ba­tizados, um se converte à fé católica; o consorte não batizado, em conseqüência, recusa-se a conviver com ele em paz. A Igreja então, baseando-se nos dizeres de São Paulo, pode dissolver o vínculo natural entre eles existente;

2) o matrimônio sacramental não consumado é dissolvido por privilégio petrino. Este se aplica a três outros casos:

3) matrimônio contraído por dois não-católicos, dos quais um é batizado e o outro não. Pode haver dispensa desde que um se torne católico e a coabitação venha a ser impossível. O pri­meiro caso deste tipo registrou-se em 1924;

4) matrimônio contraído por dois não-católicos, dos quais um ao menos é batizado e dos quais nenhum se torna católico. Para que um desses cônjuges possa contrair matrimônio com um católico, a Igreja tem concedido dispensa do casamento anterior. Para tanto, porém, requer que a vida conjugal já esteja prati­camente desfeita.

5) se registrou também a dissolução de casamento contraído por um católico com um não-batizado com dispensa de diferença de culto religioso (tal casamento não era sacramento).

Em suma, somente goza de absoluta indissolubilidade o ma­trimônio sacramental consumado. É possível, pois, que novas dispensas vão sendo concedidas pela Igreja em relação ao vínculo meramente natural ou à união conjugal não consumada.

De modo geral, a legislação da Igreja sobre indissolubili­dade e dispensa do vínculo baseia-se, de um lado, sobre a pala­vra de Cristo em Mt 19,6 («Não separe o homem o que Deus uniu») e, de outro lado, sobre o poder de ligar e desligar conce­dido por Jesus a Pedro e seus sucessores (cf. Mt 16, 16-19).

Pergunta-se agora: a legislação e a praxe da Igreja não po­derão mudar no futuro? Não teremos talvez em breve um Di­reito Canônico reformado, muito mais «condescendente»? É o que vamos examinar sob o título seguinte:

2. Que poderá mudar?

A afirmação de que o matrimônio sacramental (ratum) e consumado é indissolúvel, pertence ao patrimônio da fé cristã. A Igreja não tem poder sobre ela; não lhe é lícito, portanto, cancelá-la ou alterá-la.

Todavia na bibliografia teológica dos últimos tempos os au­tores pleiteiam novas maneiras de entender ou de aplicar a proposição acima. Estudaremos de modo especial o que se re­fere aos impedimentos do matrimônio e à consumação do mesmo.

2.1. Impedimentos dirimentes

Como no Direito Civil, assim no Direito eclesiástico são re­conhecidos certos óbices à validade do casamento. Quando um casamento sacramental é celebrado apesar de um impedimento dirimente, sem que se tenha obtido a devida dispensa, o matri­mônio é nulo. Os cônjuges poderão viver anos e anos como esposos aparentes; na verdade, porém, não estarão casados: des­de que se prove a existência de tal impedimento, a Igreja decla­ra nulo tal casamento, isto é, verifica e publica a nulidade de uma tal união – o que bem difere de anular («anular» significa «tornar nulo» algo que em si era válido).

Os impedimentos dirimentes enunciados pelo Direito Canô­nico merecerão, sem dúvida, uma revisão oportuna. Entre eles figura, por exemplo, o erro de pessoa (cân. 1083). Tal erro é entendido pelo Código em sentido muito restrito: ocorre quando alguém se casa com a pessoa A julgando que é a pessoa B; ora isto na verdade se dá muito raramente, podendo todavia acontecer nos casamentos por procuração. Existem hoje em dia muitos erros de pessoa mais freqüentes, como são, por exemplo, os erros sobre as condições de saúde física ou mental do con­sorte.

Sabe-se outrossim que a inversão sexual ou o homossexua­lismo é fenômeno cada vez mais difuso em nossos dias. Verifi­cou-se também que não se corrige simplesmente mediante força de vontade e disciplina do paciente, mas pode ser algo de pro­fundamente arraigado no físico e no psíquico da pessoa. Nessas condições vem a ser um obstáculo real para a vida conjugal.

O limite mínimo de idade para se contrair validamente matrimônio canônico parece, em nossos dias, baixo demais: 16 anos completos para o rapaz; 14 anos completos para a moça. Nota-se que grande número de casamentos são contraídos em condições de imaturidade psicológica, de tal sorte que se deve­ria exigir idade um tanto mais elevada para a validade do casamento religioso.

Não poderia também o novo Direito Canônico dispor que aos futuros nubentes se proporcionasse um período de prepa­ração (com palestras e instruções, o que está longe de equivaler a experiências pré-matrimoniais), a fim de se evitar casa­mentos precipitados, irrefletidos? Tais enlaces, por insuficiên­cia de deliberação e empenho por parte dos nubentes, não se­rão, em não poucos casos, inválidos?

Pergunta-se também como julgar o caso de um rapaz que tenha cometido imprudência com uma jovem solteira, fazendo-a engravidar. A praxe sempre mandou que os dois interessados se casassem a fim de salvar o nome da moça e dar lar e legalidade à futura prole.

Pergunta-se, porém, se o casamento assim contraído é plenamente livre, se os dois jovens têm condi­ções para realizar um casal estável, feliz e digno. Visto que em muitos casos não se pode responder afirmativamente, jul­ga-se oportuno abolir tal praxe, ficando, porém ao jovem a estrita obrigação de dar assistência (ao menos, material ou financeira) à mãe solteira e a seu filho. Conforme notícia publicada pelo «Daily Mirror» de Londres e transcrita pelo «Jornal do Brasil» de 30/XII/70, uma entre cinco noivas ingle­sas se casa porque é obrigada a fazê-lo; os jornais apresentam a fotografia de uma noiva grávida vestida de véu branco e gri­nalda! Será que muitos dos enlaces contraídos em conseqüência de uma desordem moral se concertam realmente, de modo a se tornar estáveis e felizes? Não seria melhor não fossem sequer contraídos ?

Em suma, a vida moderna oferece, sem dúvida, situações e elementos inéditos, que podem afetar o contrato matrimonial a ponto de torná-lo, por um motivo ou por outro, nulo. Consequentemente a lista dos impedimentos matrimoniais, que traz marcas de civilizações antigas, poderia ser revisionada sem que com isto se cometesse traição ou infidelidade em relação à ins­tituição cristã do casamento.

Muito mais delicada é a revisão do

2.2. Conceito de matrimônio consumado

Até o presente momento o Direito Canônico usa como cri­tério de consumação do matrimônio a realização da cópula carnal entre os cônjuges; uma vez efetuado o ato fisiológico como tal, o casamento é tido como consumado para sempre. Ora não poucos estudiosos propõem nova conceituação, afir­mando que o ser humano é alguém que se realiza aos poucos; em particular, o casamento só atinge a sua perfeição e solidez gradativamente; por conseguinte, para que se possa falar de matrimônio consumado, serão necessários, em alguns casos, vários anos; o amor perfeito é que vem a ser o critério ade­quado.

Observa, por exemplo, o famoso teólogo E. Schillebeeckx

“O Sim entre os cônjuges é um acontecimento que evolui: começa an­tes do casamento, tem o seu momento de solene confirmação na celebração do matrimônio socialmente reconhecida, mas também depois disto deve to­mar corpo, e isto durante toda a vida. Nesse amadurecimento esta é a pergunta qual o momento em que se pode considerar realmente consu­mado o matrimônio, de tal forma que seja indissolúvel de acordo com as normas canônicas? Apenas se pode reconhecer algum sentido à importân­cia que o Direito Canônico dá ao primeiro ato conjugal. Humanamente considerado, esse primeiro contato é, muitas vezes, um desastre; por isto, an­tropologicamente, é destituído de valor ou é, justamente pelo contrário, c primeiro gérmen de uma desintegração do matrimônio… Humanamente con­siderado, o matrimônio já pode estar consumado na intenção muito tempo antes que tenha sido realizado de fato o ato sexual; ao contrário, há alguns matrimônios que, mesmo após a repetida realização do ato sexual, não po­dem ser considerados antropologicamente consumados” (“O matrimônio cris­tão e a realidade humana de sua total desintegração”, ad instar manuscripti em tradução portuguesa).

Que dizer a propósito?

– Inegavelmente Schillebeeckx e outros teólogos procuram encontrar o verdadeiro sentido da expressão «matrimônio con­sumado». Acontece, porém, que a nova conceituação é de todo subjetiva e arbitrária; identificar-se-ia com amor firme. Ora este, por mais estável que pareça, está sempre sujeito a crescer, como também a se retratar ou a definhar, de sorte que nunca se poderia falar propriamente de «matrimônio consumado». Em matéria jurídica requerem-se dados objetivos; embora a ciência do Direito conte com o dinamismo e a mobilidade da natureza humana, ela só pode existir caso trate com realidades que todos possam reconhecer mediante critérios objetivos.

Verdade é que a primeira cópula carnal entre esposos nem sempre corresponde a um amor profundamente enraizado. Por seu conceito, porém, ela supõe e exprime amor, amor que naturalmente deverá crescer com o decorrer dos tempos; todos os valores humanos tendem a se aperfeiçoar paulatinamente o que não quer dizer que não possam ser autênticos desde a sua primeira manifestação.

Para evitar que a cópula conjugal não seja expressão de amor, mas alto leviano, deve-se recomendar a preparação para o matrimônio mediante cursos aptamente ministrados. O que falta à maioria dos jovens casais, é talvez a tomada de cons­ciência prévia dos aspectos biológico, psicológico, moral e reli­gioso do matrimônio. Casamentos empreendidos com levian­dade ou precipitação, aos quais se atribui o sentido de mera experiência retratável (se for conveniente retratá-la), eis o que torna tão instável e às vezes penosa a vida matrimonial.

Note-se ainda que a nova conceituação de «matrimônio con­sumado» abre a porta para o chamado «casamento experimen­tal», (ensaio de casamento que, se não for tido como consumado pelos «cônjuges», poderá ceder a outro casamento, também ele experimental… E isto indefinidamente!

Por último, verifica-se que certos autores, opondo-se à índole jurídica e institucional do matrimônio, pretendem dar-lhe um caráter mais personalista e condizente com as aspirações do ser humano. Caem, porém, muitas vezes no campo do puro subjetivismo; vêm a afirmar, sim, de uma forma ou de outra, que o casamento se dissolve quando o amor morre. Neste caso, um matrimônio validamente contraído poderia tornasse nulo quando cessassem a paz e o bem-estar conjugais. É, porém, necessário lembrar a distinção entre personalismo e subjetivismo: o respeito à personalidade ou aos valores especificamente hu­manos, pessoais, merece todo apoio; todavia ele se concilia perfeitamente com a existência de normas objetivas e de subor­dinação (por vezes, abnegada e dura) às mesmas. O individua­lismo, ao contrário, redunda em puro subjetivismo, só reconhe­cendo por normas as concepções próprias do indivíduo; desta atitude só se podem esperar distorções da personalidade humana.

As novas idéias se acham compendiadas todas, por exemplo, no livro de V. Steininger: “Auflösbarkeit unauflöslicher Ehen”. Graz-Wien-Köln 1968. Em tradução francesa: “Peut-on dissoudre le mariage?” Paris, 1970.

APENDICE

A fim de ilustrar quanto acaba de ser exposto, vão aqui transcritos três documentos abalizados.

I) O primeiro é a resposta de D. Ivo Lorscheiter, Se­cretário Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, ao Bispo-Prelado da Abaetetuba (PA), datada de 9 de dezem­bro de 1971 e divulgada por causa do noticiário proveniente dos EE. UU. da América:

«A consulta expressa em sua prezada carta de 2 do corrente mês sobre admissão aos sacramentos de casais que não podem legitimar a sua união aborda um problema pastoral certamente doloroso e delicado. A pedido de V. Excia., e em caráter pessoal, manifesto o meu parecer sobre o assunto:

1) Não ignoro a existência de moralistas que advogam a licei­dade e até a conveniência de admitir tais casais aos sacramentos, depois de bem examinadas as suas intenções e afastado o perigo de escândalo.

2) Da minha parte, acho mais correto outro modo de encarar a questão:

a) estamos na suposição de que os referidos casais vivem em situação objetivamente irregular, embora não possam agora modi­ficá-la;

b) são misteriosos os caminhos da bondade de Deus, que pode tocar e santificar o coração do homem em circunstâncias e por formas a nós desconhecidas;

c) por isso mesmo, eu animaria tais casais a confiarem em Deus, procurando servi-lo do melhor modo possível; mesmo privados dos sacramentos, Deus poderá ampará-los e salvá-los.

3) Parece-me, salvo melhor juízo, que assim atendemos melhor aos dados da Teologia e às exigências da Moral e da Pastoral; e, sem menosprezar o valor dos sacramentos, não fazemos deles depender o amor e a onipotência de Deus».

II) O segundo documento é uma Nota da Cúria Metropo­litana do Rio de Janeiro assinada por D. José de Castro Pinto, Bispo Auxiliar, aos 5/X/1972:

«A mais elementar prudência nos manda verificar o que real­mente aconteceu (o noticiário proveniente dos Estados Unidos), pois a notícia, como está exarada, nos dá a impressão de exageros ou generalizações de algum abuso particular.

Na hipótese de alguns, ou mesmo muitos, abusos cometidos nesse sentido, a lei da Igreja não foi revogada, tanto mais que neste assunto estão implicados pontos de ordem teológica, não apenas aspectos disciplinares; pelo que não seriam decisões abusivas e par­ticulares que viriam ter força de lei, nem mesmo de dispensa de lei geral».

III) Transcrevemos ainda a entrevista de D. José de Cas­tro Pinto publicada pelo jornal «O Globo» do Rio de Janeiro aos 6/X/1972:

«Um homem ou uma mulher que, separando-se do outro côn­juge, volta a se casar disse D. José de Castro Pinto se exclui, por si mesmo, da comunhão da Igreja, isto é, se torna excomungado, não podendo participar dos sacramentos da Igreja Católica. A indis­solubilidade do casamento continuou é um dos pontos da doutrina que Cristo deixou à Igreja de maneira clara e insofismável.

Tão clara acentuou o Vigário Geral da Arquidiocese do Rio de Janeiro – que os Apóstolos observaram, depois de ouvirem a afirmação de Cristo: ‘Se é assim, é melhor não casar’.

Dom José de Castro Pinto explicou que a permissão do divórcio por Moisés, com autorização de Deus, tem sua justificativa na situa­ção em que se encontrava a mulher antes de Cristo. ‘Ela era, disse, propriedade do pai; do marido, depois de casar; e do filho mais velho, quando se tornava viúva. O marido, como proprietário, tinha direitos absolutos sobre ela, inclusive de espancá-la e/ou matá-la.

Perante esta situação explicou D. José é que a lei mosaica permitiu ao marido, como proprietário, abandonar a mulher, o que era melhor do que espancá-la ou matá-la, tanto mais que a poligamia era costume da época. Com Cristo, porém, a dignidade da mulher foi restabelecida, razão pela qual o casamento pôde voltar ao estado primitivo, imposto por Deus : o da indissolubilidade’.

D. José de Castro Pinto negou a possibilidade do divórcio com fundamento na falta de amor subseqüente ao casamento.

‘Não se pode afirmar disse que, aos 19,20 ou 21 anos, um jovem não tenha condições de se decidir pelo resto da vida, como se requer para o casamento, quando tem tais condições diante de vários outros problemas.

Os casos nos quais fique comprovado, após o casamento, que houve erro de pessoa, devem ser apurados e, se constatados, podem produzir a declaração de nulidade, isto é, a declaração de que o ato, embora com todas as aparências, não teve o requisito essencial para ser um casamento.

Mas, se o casamento foi válido observou D. José -, a Igreja jamais poderá consentir em que seja tornado nulo, de maneira que os cônjuges voltem a se casar. Nos casos de abuso por parte de algum sacerdote, permitindo o que a Igreja não permite, o cami­nho a seguir é o da punição desse sacerdote através dos processos previstos no próprio Código de Direito Canônico, isto é, da adver­tência pessoal às penalidades maiores, inclusive a excomunhão’».