Casamento: o casamento morre quando o amor morre!

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 184/1975)

Em síntese: O amor-doação ou benevolência é, sem dúvida, a alma da vida conjugal. Esta, porém, não pode dispensar o seu aspecto Institucional ou jurídico. Com efeito, a institucionalização de certos valores visa a garantir a preservação e a autenticidade dos mesmos. É o que se dá com o casamento; este interessa não somente aos cônjuges, mas também à sociedade e ao gênero humano. É por isto que está sujeito à regulamentação que a sociedade tem o direito de lhe impor. Além disto, leve-se em conta que todas as religiões sempre consideraram o casa­mento como o cumprimento de um plano de Deus, em vista do qual os dois cônjuges se comprometem perante Deus e a sociedade. – De resto, a legislação concernente ao matrimônio nada mais deve ser do que a explicitação da lei natural incutida pelo Criador a toda criatura humana.

“O casamento morre desde que o amor morra”. – Esta proposição merece duas observações

1) O amor conjugal do cristão é participação do amor a Deus; ora este não morre no cristão, nem mesmo diante das mais penosas adversidades;

2) Não calamos no subjetivismo, que atribui ao homem o poder de criar e destruir valores segundo seus critérios individuais e subjetivos. O homem não é criador de certos valores, mas descobre-os em sua natureza e, em torno de si assim o amor conjugal não é simplesmente algo que o homem possa produzir e dissipar a seu bel-prazer, mas é algo que ele pratica em função de realidades objetivas, existentes fora dele.

Quanto ao amor livre, é destruição do genuíno, amor, pois equivale a concessão gratuita e desorientada feita aos Instintos da natureza.

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Comentário: É freqüente afirmar-se que, uma vez extinto o amor conjugal, o próprio casamento se extingue. Desde que se admita esta premissa, torna-se desnecessário falar de dis­solução jurídica do matrimônio. Há mesmo quem vá mais longe, dizendo que o casamento não estaria ligado a alguma instituição ou a um sistema de leis, mas seria baseado tão somente no amor; poder-se-ia mesmo dispensar o habitual aparato jurídico que cerca o amor conjugal, de modo que o amor seria livre,… livre de quaisquer leis; a união marital dependeria apenas do surto e da perduração do sentimento de amor nos consortes respectivos.

É para esta problemática, candente e atual, que voltaremos a nossa atenção nas páginas subseqüentes, levando em consi­deração as noções de amor, instituição, casamento e amor livre.

1. Duas noções: amor e instituição

Procuremos, antes do mais, conceituar os dois termos em torno dos quais se põe o problema: amor e instituição.

1.1. Amor

“O inferno consiste em não amar.” (Georges Bernanos).

O ser humano é essencialmente feito para viver com os seus semelhantes e, em comunhão com estes, atingir a sua plena realização. Com efeito, tendo nascido em dependência de outros, a criatura humana aprende também em dependência de outros e chega à sua felicidade ainda em dependência de outros.

O consórcio da pessoa humana com outras pessoas, quando bem praticado, não gera servilismo, mas, sim, comu­nhão,… comunhão em que há um “dar e receber” constante de uns para com os outros. «Ninguém é tão pobre que não possa dar alguma coisa, como também ninguém é tão rico que não precise de receber algo», diz a sabedoria popular.

A psicologia afirma com razão que o ser humano não alcança a sua plenitude, senão em comunhão de amor e por meio dela. Ora, entre criaturas a comunhão ou sociedade de amor em que o homem mais se realiza – dando e recebendo – é a comunidade conjugal. Esta é inspirada e dinamizada pelo amor entendido como dom total a outrem em vista do bem desse outrem. Em outros termos: trata-se de amor­-benevolência, que quer bem e, querendo bem, é beneficiado, e não de amor-cobiça ou amor-posse, que olha, antes do mais, para si. Trata-se ainda de amor que quer servir e tornar feliz, e não de amor que quer servir-se.

Esse amor autêntico não é desencadeamento de impulsos cegos e instintivos, mas, por ser propriamente humano, é ilu­minado e regido pela razão e pela vontade do homem.

Volta­remos a tocar neste aspecto mais adiante; cf. pp. 164-167.

1.2. Instituição

Por «instituição» entende-se a regulamentação de certas atitudes da vida humana que interessam à sociedade. A ins­tituição se deriva da índole social e comunitária de determi­nados atos humanos. A institucionalização ou regulamentação desses atos visa a preservá-los do desvirtuamento ou do desen­contro de interesses e garantir a consecução dos objetivos pró­prios. A vida em sociedade torna-se caótica ou mesmo impos­sível caso nela não haja instituições.

A instituição faz que certos valores não dependam exclu­sivamente do arbítrio (às vezes, oscilante e egoísta) de quem os traz; mas confere a esses valores um quê de objetividade, fazendo que tenham uma definição e caracterização perante a sociedade; em conseqüência, a pessoa que cultiva tais valores, é obrigada a certa educação e disciplina de si mesma, a fim de poder integrar-se na sociedade. Estes elementos explicam que todos os povos tenham as suas instituições: governo civil, com a sua Magna Carta; educandários, com seus Estatutos; empresas de trabalho, com sua legislação adequada…; até mesmo os clubes recreativos, para preencher devidamente as suas finalidades, têm regulamentos!

Compreende-se, pois, que também no relacionamento dos homens com Deus haja instituições, não porque o Senhor Deus precise delas, mas porque a criatura humana, peregrina como é e sujeita a oscilações, é beneficiada pelos parâmetros que a regulamentação lhe apresenta. Está claro que a instituciona­lização só pode ser eficiente e prestar serviço autêntico se é sujeita a revisão periodicamente a fim de acompanhar a reali­dade e responder a novas exigências que a evolução dos tem­pos apresenta. É outrossim evidente que a instituição não é fim em si mesma, mas apenas instrumento para que o homem chegue à perfeição moral, a qual consiste no amor a Deus e ao próximo. É na base destas premissas que se entende a Igreja institucional; animada pelo amor e tendente à plenitude deste, ela não pode deixar de ter suas leis e instituições, pois sem estas o amor poderia ser ilusório ou mesmo degeneres­cente.

2. Amor e instituição no casamento

1. Compreende-se que o casamento, sendo a união mais íntima possível entre o homem e a mulher, só pode ter por alma o amor. É, sim, o amor – e tão somente este – que leva os dois cônjuges a procurar complementar-se mutuamente no consórcio marital.

O amor conjugal difere, sem dúvida, do amor de com­paixão. Ninguém se deve casar por compaixão para com o (a) consorte. Pois na compaixão a doação não é igual de parte a parte; alguém precisa de mais e recebe mais (ou talvez receba tudo) da parte de quem se compadece, sem que este possa esperar a complementação de que necessita.

2. No matrimônio, além do amor, não pode faltar o aspecto jurídico ou institucional. Aliás, sempre e em todos os povos, o casamento esteve sujeito a determinada legislação. E por quê?

1) Os homens sempre tiveram consciência de que a união matrimonial não interessa apenas aos dois cônjuges, mas tam­bém a um círculo muito mais amplo de pessoas e valores: tenham-se em vista os costumes públicos e a dignidade da sociedade, a família, a educação dos filhos, a economia pú­blica, etc. Em suma, o bem comum ou o bem público está altamente interessado em cada enlace matrimonial. Quem se casa, não se casa só em vista de seu bem ou em vista do bem do(a) consorte apenas. – Leve-se em conta, de modo especial, a família. É a célula básica de um povo; une gera­ções e encaminha seus filhos para a vida pública. Ora a família tem origem nas relações entre os cônjuges; ela nasce do casamento e encaminha para o casamento.

Sabe-se também quanto a educação dos filhos (que é de elevada importância para a sociedade) depende da família ou dos pais. A ausência dos genitores na infância ou na adoles­cência dos filhos pode ser fator altamente negativo para estes, que acabarão talvez degenerando para a criminalidade.

É por isto que, em última análise, a sociedade sempre quis cercar o matrimônio com uma legislação adequada, a fim de ajudar o amor conjugal a ser autêntico e a evitar des­virtuamentos fatais.

2) Mais ainda. Levemos em conta a história das Reli­giões. Em todos os sistemas religiosos, o casamento aparece envolvido em um contexto e em uma ordem de coisas cósmicos e sagrados.

Sim. O homem sempre teve consciência de que a vida é um grande dom de Deus e, por isto, os momentos de contato especial com a vida sempre excitaram o senso religioso dos homens. Assim

o nascimento ou o surto da vida sempre foi assinalado por alguma cerimônia religiosa em homenagem a Deus, que houve por bem trazer nova criatura à existência;

a morte ou a cessação da vida terrestre também sem­pre foi motivo de celebrações religiosas; na morte o homem reconhece espontaneamente o poder supremo de Deus sobre as criaturas;

a entrada de um jovem na idade de puberdade (13 ou 15 anos) em muitos povos foi igualmente acompanhada de atos religiosos;

as refeições, pelas quais os homens entretêm a sua vida e avaliam o dom do pão que tantos não têm, também sempre foram tidas como atos em que o homem toca de perto o dom do Senhor e entra em contato com o próprio Deus. Até hoje em muitas famílias o espírito genuinamente religioso se manifesta pela oração antes e depois das refeições;

o casamento ou o enlace do qual depende o surto da vida, foi conseqüentemente também envolvido em contexto religioso. É algo que responsabiliza os cônjuges não somente diante dos homens, mas também diante do Supremo Ser ou Deus. É para servir a um grande plano de Deus que os ho­mens se casam entre si e perpetuam a sua espécie.

Dirá alguém: Mas as concepções «sacralizantes» dos antigos hoje estão ultrapassadas e cederam à mentalidade da secularização ou da laicização! Em resposta, observaremos que a consciência que os homens sempre tiveram do valor sagrado da vida e das suas grandes fases (inclusive o matri­mônio), é algo que parece congênito em todos os homens, de tal modo que não se prende apenas a esta ou aquela fase de cultura. Não se aplica a esta consciência o processo de secula­rização, como não se aplica a tantas outras expressões do senso religioso da humanidade (a oração direta a Deus, o culto comunitário, a construção da «casa de Deus» em meio às casas dos homens… ) .

3. Um vez exposto o porquê da instituição no matrimô­nio, notemos que ela não é o mero resultado de convenções humanas (de legisladores eclesiásticos ou civis); também não é algo de adicional ao amor do homem e da mulher, mas, sim, algo que decorre desse amor; exprime as exigências deste e as condições para que desabroche.

De fato, o amor tem suas leis naturais (fidelidade, doa­ção mútua, respeito reciproco… ) , como o organismo humano tem suas exigências naturais (comer, dormir, respirar… ). Ora a instituição matrimonial (com suas leis positivas) apenas visa a determinar e assegurar, em favor dos cônjuges e da sociedade, a ordem de coisas expressa pelas exigências natu­rais do amor. A instituição matrimonial não deve, pois, ser considerada como algo de artificial ou constrangedor.

Com outras palavras ainda: em cada criatura exprime-se um pensamento ou uma idéia do Criador, que o homem tem de respeitar. Esse pensamento de Deus entranhado em cada criatura dá fundamento à Moral e ao Direito naturais («agere sequitur esse», o agir segue-se ao ser, o dever é conseqüência do ser). Ora o direito positivo não é senão a continuação e explicitação, formulada pelos homens, do Direito e da Moral naturais. Donde se vê que o Direito positivo ou, no caso, a legislação positiva concernente ao matrimonio não deve ser tida como elemento heterogêneo ou estranho ao homem e ao bem comum da humanidade.

Consideremos agora a questão da duração do amor con­jugal.

3. Amor conjugal até quando?

1. Amar é dar-se de maneira gratuita e benévola, ou seja, em vista do bem do próximo. O homem se dá parcial­mente em muitas ocasiões: a uma tarefa, a um esporte, a um «hobby»… Todavia a verdadeira grandeza e a completa rea­lização de alguém consiste em que se dê totalmente em amor. A instabilidade nos compromissos do amor é sinal de fraqueza e imaturidade.

Ora a doação matrimonial é a mais intima possível. E total, abrangendo alma e corpo dos dois cônjuges. Essa tota­lidade faz que ela seja

una: ninguém se pode dar totalmente a dois termos ao mesmo tempo;

indissolúvel, ou seja, protraída por toda a vida dos cônjuges. O noivo que diga à sua noiva: «Darei tudo por ti até me aborrecer ou enjoar», está dando um amor furado, egoísta. A sua doação não suscita amor, mas é cobiça egocêntrica e interesseira, que também suscitará cobiça interes­seira.

2. Verdade é que a natureza humana é frágil, instável ou sujeita a se desdizer… Todavia esta condição deve ser aos poucos superada por um processo de auto-educação cons­ciente e coerente. Em última análise, só uma entrega irres­trita corresponde à dignidade da pessoa humana; todo homem de brio sente a necessidade de não pertencer exclusivamente a si mesmo e de se dar a um grande ideal bem premeditado, correndo mesmo os riscos que toda doação plena e cabal acar­reta. E, a fim de que essa doação possa ser maduramente ponderada e conscientemente abraçada, existem cursos de pre­paração dos noivos para o casamento. Esses cursos merecem todo o apoio e não deveriam ser menosprezados pelos futuros nubentes.

E para desejar que todo jovem, ao atingir a maior idade ou ao abrir-se para a vida, esteja em condições de fazer uma opção «totalizante», opção que o obrigue a sair do natural egoísmo e egocentrismo para viver em função de uma meta digna e exigente. Por isto é que tanto se apregoa nas escolas a «educação para a responsabilidade». Assim, excitar o senso de responsabilidade é um dos principais objetivos de todo pro­cesso educacional.

Não há dúvida, a educação se prolonga por toda a vida da pessoa; é algo de permanente, pois a vida é uma escola. Isto, porém, não quer dizer que ninguém, entre os vinte e trinta anos de idade, esteja em condições de assumir um com­promisso totalizante. É justamente um tal compromisso que catalisa a formação da personalidade, contribuindo para que ela se engrandeça e nobilite.

2. Diz-se, porém, freqüentemente: «O casamento morre quando o amor morre!»

A esta fórmula, sedutora como é, faremos duas observa­ções:

1) Para o cristão, o amor conjugal é expressão do amor a Cristo e participação deste. Por conseguinte, se o seu amor a Cristo não morre, também não morre o seu amor conjugal. O amor com que o cristão ama, não é simplemente motivado por critérios pessoais ou pela procura de satisfação particular (felicidade, bem-estar pessoais), mas é amor corredentor; é participação do amor redentor de Cristo, que se exprimiu por excelência no sacrifício da cruz. O sacramento do matrimônio vem a ser participação da obra redentora de Cristo; por isto, quando os cônjuges cristãos encontram a cruz (a decepção, o desentendimento, a incompreensão) na sua vida matrimo­nial, não a julgam elemento heterogêneo ou desconcertante; mas procuram olhá-la com o olhar de Cristo e amá-la com o amor de Cristo. Enquanto este não morre, não morre o amor conjugal,… amor de pura benevolência e de redenção, que não faz questão de compensações sensíveis.

E claro, porém, que dois cônjuges em conflito já não têm a obrigação de coabitar. A sua vida comum seria dema­siado espinhosa; poderia mesmo redundar em perda da digni­dade dos cônjuges e em detrimento para os filhos. A separa­ção de teto, porém, não deve extinguir o amor sobrenatural existente nos cônjuges cristãos separados.

2) Dilatemos ainda mais o nosso horizonte, ultrapassando os limites do «amor cristão» propriamente dito.

Na fórmula «O casamento morre quando o amor morre», supõe-se que o amor seja um valor puramente subjetivo; a amor seria «gerado» pelo sujeito e reabsorvido por este, ficando sempre no âmbito da subjetividade. Conseqüente­mente, o matrimônio seria também uma criação de dois sujeitos, criação que os dois, ou talvez um só teria (m) o direito de aniquilar segundo os seus critérios subjetivos.

Ora nisto se reflete a mentalidade individualista e subjetivista muito disseminada nos últimos tempos pelo existencia­lismo. Segundo este, o sujeito é o centro e o critério dos valores, como também da verdade e do bem. Existiria a «mi­nha verdade», ao lado da «tua verdade», ao lado da «verdade dele»,… a «minha ética», ao lado da «tua ética» … Não haveria valores que «valessem» independentemente das condi­ções subjetivas do indivíduo humano; este, em cada situação, criaria os valores e os aniquilaria.

Tal mentalidade, apesar do que ela possa ter de cômodo e sedutor, não corresponde à realidade das coisas nem à natu­reza do homem. Com efeito; o ser humano não cria nem improvisa a si mesmo, mas ele se descobre; antes que eu come­çasse a me conhecer e a fazer minhas opções, eu já existia,. . . existia com minhas leis naturais, com minhas aspirações inatas à Verdade, ao Amor, à Vida, à Felicidade, à Paz… Não criei essas aspirações, mas ausculto-as; todo reto programa de vida de alguém consiste em atender a essas leis e aspirações da natureza; em conseqüência, não posso dizer que as «minhas situações» vêm a ser critérios definitivos de valores; mas, inde­pendentemente desta ou daquela situação, existem em mim leis perenes, que eu devo procurar descobrir cada vez mais e pôr em prática. E por isto que a filosofia do subjetivismo ou, individualismo, que faz deste ou daquele indivíduo «em situa­ção» o critério do bem e do mal, é filosofia errônea; em vez de contribuir para a construção do homem, ela só serve à destruição da personalidade.

De resto, distingamos claramente entre «subjetivismo» e «personalismo». Enquanto aquele sistema é deletério, este vem a ser valioso. O personalismo respeita o ser humano com seus predicados decorrentes da inteligência e da vontade, repu­diando tratar o homem como coisa, número ou peça de engre­nagem. O personalismo também valoriza o homem como mem­bro de uma comunidade ou sociedade, sem a qual o indivíduo não se realiza plenamente. O personalismo difere do subjeti­vismo pelo fato de admitir critérios de valores fora e indepen­dentes do homem, valores em função dos quais o homem se deve educar e disciplinar.

Ora precisamente o matrimônio é valor que tem, por certo, os seus aspectos subjetivos, mas não se reduz a estes. Está, sim, em função de bens que interessam à sociedade também; por isto o amor matrimonial não se avalia apenas pelos senti­mentos subjetivos que ele suscita, mas por critérios de doação e benevolência que procuram construir algo fora do sujeito que ama.

3. Quanto aos cônjuges cristãos que, tendo-se separado um do outro, vivem nova vida conjugal sem o sacramento do matrimônio, não devem pleitear a Comunhão Eucarística. An­tes que a possam receber, devem dissolver o seu gênero de vida ilegítimo. Acontece, porém, muitas vezes que essas pes­soas já têm filhos nascidos da nova união. Em tais casos, não se lhes pedirá que desfaçam o novo lar, pois têm a grave obri­gação de educar conjuntamente esses filhos; a presença destes exige que não se separem. Mas nem por isto estão aptos a receber os sacramentos da Confissão e da Eucaristia (a me­nos que consigam viver como irmão e irmã sob o mesmo teto). Procurem, pois, recomendar-se a Deus em boa fé; orem, não deixem de freqüentar a S. Missa (sem a Comunhão Eucarís­tica) e de dar instrução religiosa aos filhos. Na verdade, Deus tem meios invisíveis para salvar os homens, de modo que, em vista da sinceridade e do amor desses cristãos, o Senhor os poderá levar à salvação, perdoando-lhes as faltas passadas e fazendo que terminem seus dias na graça de Deus.

É claro que esta observação não deve ser tomada como um facilitário para «tranqüilizar» as consciências em qualquer estado de vida. Entenda-se, porém, que há cristãos, de um lado, angustiados por não receberem os sacramentos e, de outro lacio, incapazes de se livrar da situação ilegítima em que se acham. Ora é de crer que o Senhor Deus, segundo a sua arcana sabedoria e misericórdia, há de levar em conta espe­cial as situações assim criadas.

A título de complementação, seja mencionado que aos 11 de abril de 1973 a S. Congregação para a Doutrina da Fé diri­giu uma carta aos Bispos do mundo inteiro, lembrando-lhes a impossibilidade moral e canônica de se administrar a S. Euca­ristia a pessoas que vivam em uniões canonicamente ilegítimas. Cf. PR 166/1973, 3ª e 4ª capas.

4. Amor livre

O amor livre, desligado de qualquer compromisso matrimonial, é para muitos jovens um ideal. Donde dizerem: «Casamento já era!»

A onda em favor do amor livre tem encontrado defenso­res até entre filósofos e estudiosos de responsabilidade. Eis por que nos voltaremos abaixo para o problema.

Devemos começar por observar que o amor ou a capaci­dade de amar é um dos maiores tesouros que o homem possui. É mesmo uma das características do ser humano, pois se sabe que os animais inferiores não têm amor, mas apenas instinto. O instinto dos animais é cego, ao passo que o amor dos ho­mens escolhe; tende a realizar o ideal que a inteligência con­cebe. O ser humano que se dá a alguém no amor, sabe por que o faz; tem em vista uma meta digna da natureza racio­nal: construir um lar, educar a prole, dar dignos filhos à sociedade. Quem «ama» sem saber por quê, faz algo de mera­mente instintivo como fazem os animais inferiores.

Por isto não se pode justificar o chamado «amor livre». Amor livre é amor sem finalidade; é mera concessão, de mo­mento, à sensualidade, sem compromisso nem ideal. Mais propriamente deveria ser dito «sexo» ou «uso do sexo», e não «amor». Ora o sexo devidamente entendido, no ser humano, é elevado ao plano superior da inteligência; participa da inte­lectualidade e deve servir para que o homem se realize cada vez mais como ser humano ou inteligente. O sexo desabrido ou livremente usado concorre para rebaixar e desfigurar a criatura humana (pode bestializá-la), tornando-a joguete de instintos eróticos.

2. Com outras palavras: é verdade que o amor, mesmo compreendido como apetite sexual, pode favorecer o pleno desenvolvimento da personalidade. Por isto, os homens têm o direito de procurar no amor humano a sua felicidade; o que quer dizer: têm o direito de casar-se e de escolher a pessoa do cônjuge respectivo. Também se sabe que, sem satisfação do instinto sexual, a humanidade não se propagaria; por isto atender ao apetite sexual não é, por si mesmo, algo de mau. – Mas o que importa neste particular, é frisar bem que a criatura humana não é totalmente e apenas instinto erótico; nela existem outros sentimentos, outras aspirações, pois ela é, antes do mais, um ser racional e social; o ser humano, por­tanto, só se realiza plenamente caso se entregue a um ideal racional e faça que seus instintos cegos sirvam a esse ideal, construindo uma personalidade harmoniosa e uma sociedade forte ou corajosa. O sexo no homem não é qualidade nem imperativo incoercível, mas é meio de realização e parte inte­grante de um conjunto ou de uma personalidade. Quem iso­lasse o erotismo no homem e o considerasse valor autônomo, se degradaria ou bestializaria.

É necessário que se diga isto com clareza e coragem em nossos dias. Os meios de comunicação social sugestionam o público, fazendo-lhe crer que, na criatura humana, tudo é ins­tinto sexual e que o sexo é um imperativo ao qual não se pode nem se deve resistir. Este sugestionamento provoca a neces­sidade do sexo; dai a obsessão que afeta tantos jovens e tan­tos adultos em nossos dias; o afã de atender ou servir ao sexo é suscitado, alimentado e intensificado pelo clima ou o am­biente em que vive a sociedade. Se os «mass-media» e os mentores da opinião pública dissessem o contrário, isto é, se proclamassem que o sexo é apenas uma função subordinada do homem, haveria sugestionamento no bom sentido e a preo­cupação sexual não dominaria tanta gente.

3. Quanto aos casos de pessoas que não se podem casar ou não se julgam felizes no matrimônio, é certo que não se realizarão em concessões sexuais desregradas; estas por si só podem contribuir para despertar ou avivar um conflito ainda mais sério, concretizado nas questões: «Quem sou eu? Qual a minha definição? Como me apresento a mim mesmo e à sociedade?»

Em tais casos, a coerência, a lisura e a integridade de vida são as únicas fontes de felicidade autêntica e duradoura, ao passo que o desbussolamento e a libertação dos instintos vêm cedo ou tarde a ser motivo de nova e profunda insegu­rança. Ter uma autodefinição, eis um dos anseios mais natu­rais e nobres de toda pessoa humana.

4. E a preparação para o matrimônio não se beneficia­ria com experiências livremente empreendidas pelos futuros cônjuges?

– É de crer que uma vida sexual desregrada ou livre desde as suas primeiras afirmações dificilmente encontrará mais tarde o seu caminho; quem se habitua a concederdes­controladamente aos instintos, sem experimentar o que seja dizer NÃO a si mesmo em vista de um ideal superior (brio, coerência, dignidade… ), deverá aceitar as tristes conseqüências dos seus hábitos; muito provavelmente seguirá de ma­neira servil os instintos até que estes se amorteçam pela pró­pria saturação do «prazer».

Não há melhor garantia de um matrimônio feliz do que a procura do autodomínio e dos valores propriamente humanos desde os primeiros dias de namoro; é aprendendo a dizer NÃO sempre que a sã razão o julgue oportuno, que conquistamos a felicidade: a felicidade de sabermos o que somos e de nos apresentarmos aos nossos semelhantes com uma definição clara e honrada de nós mesmos.

As experiências pré-matrimoniais não são física nem psi­quicamente benéficas (ao contrário do que apregoam certos especialistas): tornam-se focos de doenças venéreas e depau­peramento do organismo. Cf. PR 117/1969, pp. 393-405.

Deve-se, porém, notar que hoje em dia são julgadas com menos severidade do que outrora certas demonstrações de cari­nho e afeto entre jovens que se preparam para o casamento.

Este abrandamento é razoável desde que não equivalha à aceitação do pecado e da libertinagem.

Em suma, a velha sabedoria que associa amor e institui­ção, permanece de pé e válida. Apenas é de notar nesta con­clusão que o amor, cercado e defendido pela instituição e suas leis, deve tender a ultrapassá-las no sentido de ser o amor íntegro e puro que a instituição, através da letra de suas leis, quer apontar e suscitar.

Bibliografia

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