Castidade: corpo humano e prazeres da carne-

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 30/1960)

 

“Otimismo ou pessimismo em relação ao corpo humano? Condescendência ou austeridade no tocante aos prazeres da carne?

Qual será a genuína atitude do cristão?”

As questões atinentes ao modo de tratar o corpo humano mereceram em todos os tempos detida atenção de pensadores e moralistas. A fim de melhor manifestar o sentido da autêntica resposta, proporemos, antes do mais, breve panorama das principais soluções até hoje formuladas para o problema.

1. Visão retrospectiva

O homem representa, no conjunto das criaturas, um pequeno enigma, pois associa em si as tendências mais contraditórias: ora nele se faz ouvir o brado do espírito, que aspira a tudo que é nobre, belo e elevado; ora, o rebuliço dos sentidos e da carne, que cobiçam os prazeres ilusórios da terra; o orgulho, o amor próprio, o egoísmo diminuem a personalidade, essa mesma personalidade que é capaz de estupendos rasgos de altruísmo.

Em torno do homem não se observa tal conflito: as plantas dão gérmen, flor e fruto bem parecer sujeitas a contradições; os animais irracionais seguem seus instintos vitais sem dar mostras da incoerência que agita o homem. O animal que, bem alimentado, repousa ao sol, de nada parece carecer para sua felicidade; o ser humano, porém, quanto mais se sacia de bens carnais, tanto mais parece inquieto e insatisfeito.

O homem, por esse motivo, constitui, entre as criaturas visíveis, um tipo singular; seríamos tentados a dizer… um ser defeituoso. Não obstante, em virtude da sua inteligência e da sua liberdade de arbítrio, ele merece incontestavelmente ser tido como a obra-prima da criação.

Tal enigma sempre chamou a atenção dos sábios desde os tempos anteriores a Cristo. Sejam aqui mencionadas algumas: de suas sentenças a respeito

a) Na Índia antiga predominou o pessimismo em relação à natureza humana e á vida no mundo material. O ideal do hindu ficou sendo a evasiva, a fuga do ciclo das reencarnações, que são sempre tidas como punição da alma; o sábio hindu aspira a esquecer a matéria e desprezar a vida sensitiva, para viver exclusivamente da reflexão e da contemplação intelectivas.

b) Na Grécia antiga, também o pessimismo se fez ouvir, exprimindo-se em variada escala de tonalidades.

O Pitagorismo (séc. V a C.) considerava o corpo como túmulo em que a alma estava sepultada; pela procura da sabedoria ou pela filosofia, ensinavam os pitagóricos, o espírito se deveria aos poucos libertar da servidão da matéria e das reencarnações sucessivas.

Platão († 347 a C.) reavivou essas idéias, servindo-se do trocadilho «soma-sema (corpo-sepulcro)». O corpo seria cárcere, e a união da alma humana com ele equivaleria a degradação ou a castigo devido a culpas cometidas em existência anterior; por conseguinte, a finalidade suprema do sábio também seria a de emancipar-se da vida corpórea (o filósofo, enquanto o pode, desliga a alma do intercâmbio com o corpo…, não faz caso dos prazeres que provenham do corpo» (Fedon 64e-65a).

Também os estóicos pouca estima manifestavam para com o corpo.

Epícteto (séc. I d. C.), por exemplo, tinha-o na conta de «alguma coisa que não me pertence» (Dissertações 1.3, c. 24) ou de «burrinho que carrega meus fardos» (lbd. 4.1). Não obstante, o filósofo prescrevia o asseio naturalmente exigido pelo corpo, a fim de não causar incômodo à sociedade: «Quando o animal se limpa, diz-se que ele imita o homem; quando o homem se suja, diz-se que ele imita o animal» (Ibd. 4,11). Fora, porém, doasseio estritamente necessário, Epícteto julgava «ser Sinal de baixeza qualquer tratamento dispensado ao corpo» (Manual 41).

O Imperador Marco Aurélio († 181) professava idéias semelhantes, interpelando o leitor nos seguintes termos: «Não és senão uma alma pequena que carrega um cadáver, como dizia Epícteto» (Meditações 4,41).

Sêneca († 30 d. C.), por sua vez, compartilhava um ponto de vista do estoicismo; sabia, porém, manifestar-se moderadamente em textos como o que se segue:

«Dá a teu corpo apenas o suficiente para que esteja são. É preciso tratá-lo com certa dureza, a fim de que não se desvie da sujeição ao espírito. Não comas senão para acalmar a fome, nem bebes senão para extinguir a sede. Não procures, mediante a veste, senão defender-se do frio, e, mediante o teto, não aspires senão a intempéries da estação… Recorda-te de que em ti nada há de tão notável quanto o espírito; a este, grande como é, tudo deve parecer pequeno» (epíst. 8).

Ninguém negará a sabedoria que possa estar incluída nos que acabamos de transcrever. Mais adiante procuraremos analisa-la melhor. Por ora, interessa-nos levar em conta ainda outro traço do pensamento grego.

c) Ao lado de manifestações pessimistas, a literatura helênica apresenta outrossim afirmações positivas referentes à natureza humana.

Sócrates († 399 a.C.) e Platão († 347 a.C.), por exemplo, davam a crer que a virtude coincide com o saber, pois parece que todo aquele que conhece a virtude, naturalmente a pratica; o vício ou o defeito moral seriam meros produtos da ignorância humana. Tal tese supõe equilíbrio e harmonia na natureza, de sorte que a vontade esteja plenamente a altura de realizar as aspirações mais nobres do seu sujeito.

Outros pensadores gregos apregoavam, de certo modo, o culto do corpo; a beleza do físico juvenil era tema caro a literatura helênica; a figura do atleta, do triunfador dos jogos olímpicos, era grandemente exaltada pela opinião publica. Entende-se, pois, que a moral grega tenha incluído entre os seus preceitos o cuidado do corpo, de maneira que a higiene hoje em dia é tida como expressão característica do pensamento helênico. Este, de resto, se traduzia muito bem na seguinte máxima ática do séc. V a. C.:

«O maior dos bens, para um mortal, é a saúde. E o segundo dos bens é ser um jovem belo e bem estruturado».

Não há duvida, os humanistas gregos sabiam que seu otimismo não dispensava o sacrifício: para fortalecer os músculos, para dar ligeireza e plasticidade ao corpo, e preciso submeter-se a severa disciplina; dai a advertência de Filocteto (409 a. C.) : «Tem consciência de que a ti também é necessária a dor. Em recompensa desses males, porém, terás a vida g1oriosa» (Sófocles, Filocteto 1418-1422).

Entre os romanos, o poeta Juvenal († 125) tornou-se o arauto do otimismo humanista, formulando o famoso adágio: «Orandum est ut sit mens sana in corpore sano. – Havemos de orar para que uma mente sã subsista em corpo são» (Sátiras 10, 356).

Eis assim recenseados os principais tópicos da mentalidade pagã concernente á natureza humana.

d) O Cristianismo, ao entrar no mundo, não podia deixar de se opor a qualquer afirmação de otimismo absoluto em relação ao corpo. A moral do Evangelho tem consciência de que a natureza humana foi, no inicio da história, afetada por uma culpa, de sorte que o cristão deve tomar atitude reservada, muitas vezes mesmo restritiva, em relação aos movimentos de sua natureza (voltaremos um pouco adiante a falar dessa queda inicial). – Tal concepção severa, genuinamente cristã7 se implantou nas escolas antigas e medievais de espiritualidade.

e) No séc. XVI, porem, o chamado «Renascimento» procurou restaurar o pensamento grego independentemente da ideologia cristã; em conseqüência, uma onda de otimismo em re1ação á natureza humana (o «Humanismo») penetrou na cultura da época: uma mentalidade naturalista, mais ou menos pagã e hedonista (gozadora) se apossou de muitos redutos de cultura.

Esse otimismo chegou ao auge no séc. XVIII. «O homem é bom por sua natureza», tal foi o principio que inspirou:

a «moral da simpatia» de Adam Smith († 1790): os critérios que definem justiça e injustiça não seriam ditados pela razão, mas pelos sentimentos ou a simpatia;

a «moral do dever» de Kant († 1804): a natureza humana seria suficientemente forte ou propensa ao bem para poder praticar o dever por causa do dever mesmo, abstraindo de qualquer sanção anexa;

a «moral da liberdade total» de Diderot († 1784) e de Rousseau († 1778): o homem sendo bom por natureza, a corrupção só poderia provir de fatores extrínsecos ao próprio homem, isto é, da má organização das classes na sociedade ou da falta de instrução.

Nos séc. XIX/XX o liberalismo generalizado, com suas múltiplas modalidades (em moral, religião, filosofia, política), não é senão a expressão variegada desse otimismo inspirado por reação contra a mentalidade cristã: pressupondo que o homem seja naturalmente bom, os contemporâneos não raro afirmam que o vício provem da ignorância e que, por conseguinte, «basta abrir escolas para poder fechar prisões»; um homem instruído seria um homem morigerado. Há quem atribua as quedas morais dos cidadãos à péssima gestão dos governos civis: «Reformai o Estado, dizem, extingui a opressão que desencadeia a revolta nos covardes; e tereis supresso toda desordem e criminalidade; dai liberdade aos instintos, e estes só produzirão frutos bons; o homem é um cordeiro que somente a escravidão consegue transformar em lobo; se desejais acabar com os ladrões, começai por demitir os guardas da policia; é a obsessão de estarem constrangidos a praticar o bem que leva os homens a cometer o mal. A fruta proibida é sempre a mais atraente; para que ela deixe de seduzir, basta que levantemos a respectiva proibição».

f) Completando o bosquejo histórico, notaremos agora que, ao lado do otimismo humanista do séc. XVI, Lutero († 1546) e seus discípulos deram expressão a concessões derrotistas concernentes á natureza humana; esta teria sido atingida em cheio pelo pecado dos primeiros pais, de sorte a ser, mesmo após a Redenção de Cristo, totalmente incapaz de praticar o bem; o homem por si seria servo da concupiscência e do pecado, de modo que só abusivamente se lhe pode atribuir a faculdade do livre arbítrio; vão seria pretender que o homem pratique obras boas e meritórias.

Nos séc. XVII/XVIII o Jansenismo acentuou esse pessimismo, apresentando, entre outras coisas, a humilde compunção do genuíno cristão como um temor doentio e sufocador.

Não se poderia deixar de notar que também esse pessimismo jansenita exerce sua influencia até nossos dias em pessoas para quem a Religião vem a ser motivo de tristeza e medo mórbidos.

Após este rápido esboço histórico, passemos à consideração da solução cristã dada ao problema das relações vigentes entre o corpo e a alma humana.

2. A solução cristã:

Sócrates, em um de seus colóquios filosóficos, ensinava a Alcebíades: «A alma é o homem» (cf. Platão, Alcebíades Primeiro 130c).

Pois bem; distanciando-se de qualquer concepção unilateral ou do espiritualismo exagerado, o cristão repete com São Tomaz de Aquino: «Anima… non est totus homo, et anima mea non est ego. – A alma não é o homem todo, e a minha alma não é o meu eu» (In 1 Cor 15,2).

A doutrina cristã, portanto, professa que o homem é essencialmente um composto de alma e corpo, alma e corpo que, segundo os desígnios do Criador, se unem em harmonia, de modo a se completarem mutuamente. A alma não atinge por si só a sua perfeição própria; haja vista, por exemplo, o seu modo de conhecer: qualquer raciocino, por mais abstrato que seja, se baseia em dados fornecidos pelos sentidos, de sorte que, se algum órgão da vida sensitiva (principalmente o cérebro) é lesado, a inteligência já não exerce normalmente is suas funções (tal e o caso dos chamados «doentes mentais»).

A ciência moderna se compraz em sublinhar a intima correspondência que existe entre a fisiologia (constituição do corpo) e a psicologia (manifestações da alma) da pessoa humana.

O famoso Dr. René Blot observa o seguinte:

«A natureza masculina e a natureza feminina diferem biologicamente em todas as suas manifestações fisiológicas. Não há uma só atividade vital que não esteja marcada pela masculinidade no varão ou pela feminilidade na mulher» (La nature féminine et le féminisme 6).

Aliás, tendo em vista a sexualidade, já S. Agostinho declarava: «Mulier mysterium. – A mulher é um mistério».

Tão íntima união entre o físico e o psíquico do homem acarreta importante conseqüência para o conceito de perfeição humana:

«A liberdade dohomem não é a mesma que a de um espírito puro. Ela não consiste em que a alma só esteja tenuemente unida ao Corpo; nem a dignidade do homem implica em esforço para afrouxar a união da alma com o corpo, como se o ideal fosse simplesmente romper essa união. Não; tal ruptura seria diretamente a morte; não seria virtude. A virtude é virtude do homem todo: a alma do homem virtuoso não esta solta do corpo, mas ela o domina e dele faz seu instrumento para o bem» (R. Blot, Le corps et 1’âme 125).

Em conclusão: considerando a essência do homem em si ou na ordem ideal, o cristão professa otimismo; sabe que corpo e alma foram destinados pelo Criador a prestar complemento um ao outro em vista do pleno desabrochar da personalidade.

2. Passando agora para a ordem das realidades concretas, como elas existem neste mundo, o discípulo de Cristo não pode deixar de temperar o seu otimismo.

E por quê?

Eis o que narra a fé cristã: Deus, que concebeu harmoniosamente a natureza humana, ao criar o primeiro casal (Adão e Eva), quis dotá-lo de dons que ultrapassavam as exigências dessa natureza humana – dons preternaturais e sobrenaturais (cf. «P.R.» 28/1960, qu. 2). Aconteceu, porém, que os primeiros pais, abusando do seu livre arbítrio, não aceitaram o desígnio divino, mas se afastaram de Deus. As conseqüências foram a perda dos dons gratuitos, característicos do estado inicial, e a ruptura da harmonia originária: tendo-se revoltado contra Deus, o espírito do homem experimenta a revolta da carne; e, consequentemente, em torno do homem os seres inferiores (animais, vegetais, minerais) causam dano tanto à carne como ao espírito. O homem, na realidade histórica concreta em que nos achamos, já não é o que deveria ser conforme o seu exemplar ou ideal. Em outros termos: a natureza humana com que nos defrontamos aqui na terra, não é a entidade harmoniosa que descrevemos nos incisos anteriores, detendo-nos no plano abstrato ou especulativo; embora essa natureza humana se conserve substancialmente boa, ela está vulnerada por múltiplas tendências desordenadas.

3. Sendo assim, compreende-se que a genuína atitude do cristão perante o humano não possa ser a de um otimismo irrestrito (otimismo que levaria a afirmar como bons todos os movimentos da carne e do espírito), nem também a de um pessimismo que tenha a matéria na conta de criatura essencialmente má e destinada a ser destruída. Entre um e outro extremo, o Evangelho ensina que o corpo deve ser reconduzido à sujeição que naturalmente lhe compete em relação a alma e a Deus. Este programa se resume também na fórmula: purificação da natureza humana e de seus instintos, não, porem, extinção ou aniquilamento da mesma.

O cristão, portanto, é chamado a praticar o combate à natureza, não para chegar a um estado de apatia total ou de extinção de todos os afetos (alegria, tristeza, medo, audácia…) da natureza (tal era o ideal do estóico pagão, ideal que não levava em conta a colaboração que o corpo deve prestar a alma humana), mas para chegar ao que se chama a metriopatia, ou seja, a disciplina dos afetos e paixões tal que permita ao espírito usufruir, sem detrimento algum para si, dos serviços do corpo. Este terá que dar tudo que tem de bom, sem jamais tomar a dianteira sobre o espírito.

Os autores de espiritualidade costumam atribuir papel muito importante na vida sobrenatural às paixões ou aos afetos devidamente controlados. O ideal do cristão não é um ideal linfático (aguado ou facilmente acomodatício); ao contrário para realizar as obras de Deus, requerem-se paixões fortes, oportunamente suscitadas e controladas pelo sujeito (por «paixões» entendem-se aqui os movimentos em que corpo e alma se empenham na conquista de um bem).

Verifica-se mesmo que todos os santos foram profundamente apaixonados ou os grandes «apaixonados» do seu século. Não há dúvida, eles nunca teriam realizado as grandes obras que despertam a admiração dos pósteros, se não tivessem sido movidos por dose de amor e entusiasmo pouco comum. A realização da vida cristã exige adesão decidida e enérgica aos bens invisíveis, adesão que, em meio aos obstáculos suscitados pelo mundo visível, não pode ser sustentada senão mediante a mobilização de todas as qualidades que o corpo e a alma ofereçam para tal fim.

Em resumo, pois: a sabedoria cristã consiste em excitar os afetos da natureza (coragem, temor, alegria, tristeza, audácia…) na ocasião oportuna e dentro dos limites convenientes, de modo que cada um dos seus afetos preencha devidamente o seu papel sem excesso nem desvio.

4. As considerações acima projetam luz ainda sobre outro aspecto do nosso problema. Costuma-se citar freqüentemente um adágio que se toma por vezes ocasião de mal-entendidos: «A graça não destrói a natureza, mas supõe-na e aperfeiçoa-a» (cf. S. Tomaz, Suma Teológica I q. 1, a. 8 ad 2).

Este axioma só poderá ser retamente avaliado mediante uma distinção:

a) A graça (a ordem sobrenatural) não destrói, mas supõe a natureza… no plano ontológico ou na linha das essências. – Sim. A ordem sobrenatural ou a vida cristã não é dada ao homem como algo de descontínuo com a natureza humana. Ao contrário, os dons sobrenaturais foram concebidos pelo Criador como coroa ou cúpula das facu1dades (inteligência, vontade, sensibilidade com seus afetos) da natureza racional; cf. «P.R.» 28/196o, qu. 2 (pág. 137).

b) Descendo agora do plano abstrato para a ordem concreta, real, já não se pode dizer que «a graça simplesmente supõe a natureza e a aperfeiçoa». Há, sim, na vida prática, não raros conflitos entre as tendências da natureza e as aspirações da graça ou aspirações sobrenaturais. Quem dissesse «Sim» a tudo que a natureza sugere e apetece, destruiria a graça recebida no batismo e nunca chegaria a perfeição cristã. A razão de tais conflitos já foi indicada: a natureza humana, na realidade histórica, não se conservou tal como no plano especulativo foi concebida pelo seu Autor; não nos é possível, por conseguinte, transpor para a ordem existente concreta todo o otimismo que concebemos ao considerar o homem em si mesmo ou abstratamente.

5. Os princípios que acabamos de expor, também nos permitem avaliar certo ideal de santidade que, inspirado pela mentalidade de nossos tempos, se vai propagando como se fosse a autêntica mensagem do Cristianismo para os nossos dias.

Com efeito; em 1946 realizou-se na França um inquérito intitulado «Vers quel type de sainteté allons-nous? – Para que tipo de santidade caminhamos?».

Ora uma das respostas que, pode-se dizer, resumia exatamente as demais, era assim concebida:

«Associar a mais elevada vida espiritual com todos os prazeres humanos, excetuado apenas o pecado; tal parece ser o ideal» («Vie Spirituelle» n.º 304, fev. de 1946, 238).

Esta afirmação categórica reaparece sob formas equivalentes em outros testemunhos. o seguinte provém de uma Diretora de hospital:

«A consciência do pecado instalado em nós e da nossa miséria moral é assaz rara. A espiritualidade atual… não se preocupa muito com a necessidade da expiação. A idéia de que somos ‘pobres pecadores’, como professamos na ‘Ave Maria’, não penetra muito a fundo na psicologia religiosa atual. Facilmente os homens julgam que poderiam, sim, ter procedido melhor, mas que, em todo caso, o que eles realizaram já é satisfatório. Esta atitude é corroborada pela tendência jurídica da nossa mentalidade latina, que tem o pecado na conta de transgressão da lei, considerada em parte como um código; ora, pensam muitos, enquanto alguém não infringe uma cláusula do código, nada há que lhe censurar; tal pessoa é justa» (Ibd. 241).

Uma assistente social, por sua vez, escrevia:

«Meu ideal de santidade? – É o de uma celibatária… capaz de ser pioneira da cultura e do movimento social moderno. Eu a quisera ver muito elegante, capaz de lançar a moda, não apenas de a seguir – o que é meio de influência muito importante. Que os autênticos cristãos deixem de estar no ‘reboque’ e tomem finalmente o lugar que sempre deveriam ter ocupado à frente de todas as iniciativas espirituais, intelectuais e sociais» (Ibd. 239).

Um membro da Ação Católica assim se exprimia:

«Nossa espiritualidade equivale a um humanismo cristão. A tendência mais acentuada, principalmente nos jovens, visa uma liberdade total, que significa desabrochar em todos os sentidos. Os homens praticam, sem duvida, a renuncia imposta pela necessidade, como seria a perda da saúde ou de um noivo, mas a luta do indivíduo contra si mesmo, a procura da mortificação contam poucos adeptos; são coisas que quase escandalizariam. Por que não gozarmos de tudo que Deus coloca a nossa disposição? Procurar a cruz para nos assemelharmos a Nosso Senhor… não entra nas perspectivas da espiritualidade contemporânea. Não são compreendidas, são, antes, severamente julgadas, certas renúncias excepcionais, como a de deixarmos que nos atribuam injustamente alguma falha sem que nos desculpemos, a fim de sermos mais semelhantes a Cristo crucificado» (Ibd. 233).

Uma jicista (membro da «Juventude Independente Católica»), por fim, preconizava:

«Os santos de amanhã serão menos penitentes; serão muito mais os reis da criação» (Ibd. 232).

Perguntamo-nos agora: como julgar tais concepções, aparentemente tão apropriadas para captar a simpatia do homem moderno e trazê-lo a Cristo?

Sem negar o que possa haver de magnânimo nessas fórmulas, não recearemos dizer que são perigosas e, na prática, inexeqüíveis. Sim; quem considera com otimismo irrestrito a natureza humana, sem se preocupar com mortificação, arrisca-se a ver-se suplantado pelas ciladas da carne. Quem se entrega ao prazer lícito, intencionando recuar diante dos deleites pecaminosos (e somente diante deles), dificilmente deixará de cair neles; arrastado pela natureza, tal indivíduo se renderá tanto ao que é licito como ao que é ilícito.

É por isto que não se pode dar razão aos que interrogam: «Que mal há em usufruir dos bens que Deus criou?» – Suposto (como se entende) que esses bens não sejam em si pecaminosos, o gozo irrestrito dos mesmos debilita a resistência da personalidade, que, vulnerada pelo pecado original, tende não somente a usar, mas também a abusar… Por conseguinte, para conquistar firmeza na virtude, o cristão tem inevitavelmente que se abster em certo grau até mesmo dos bens lícitos (esse grau será mais ou menos intenso, conforme as tendências próprias da natureza de cada um). Qualquer que seja a época em que viva o cristão (mesmo em meio ao libertinismo do séc. XX), ele jamais se poderá adaptar a mentalidade contemporânea de sorte a esquecer o pecado original e as tristes conseqüências que acarretou para a natureza humana.

Está claro, isto não quer dizer que o cristão se deva tornar um tipo desambientado ou um quisto na comunidade; não. «Um santo triste é um triste santo», reza a máxima tradicional. O justo, portanto, saberá utilizar, em toda a medida do possível, Os valores tanto da família como da sociedade; saberá dar-lhes sentido sobrenatural, sem, porém, esquecer que em tudo é necessário observar uma certa cautela ou «virgindade», a fim de que a natureza não tome a dianteira sobre a graça:

«Digo-vos, irmãos:… os que se alegram, sejam como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; os que usam deste mundo, como se não usassem, porque passa a figura deste mundo» (1Cor 7,29-31).

Assim fazendo, o cristão será, sem dúvida, o homem sempre ambientado e atual; será «o sal da terra e a luz do mundo» (cf. Mt 5, 13s).