Ciência e Fé: ciência e fé

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 300/1987)


Em síntese
: O Pe. George Coyne, Diretor do Observatório do Vaticano, e o Prof. Jean Delumeau, historiador francês, dão seu depoimento a respeito das relações entre a ciência e a fé, mostrando que não existe conflito entre uma e outra; ao contrário, o progresso da ciência em nossos dias põe o homem, mais do que outrora, em presença do Mistério que se pode identificar com o vestígio de Deus infinitamente sábio, Criador e Sustentador deste mundo. A S. Escritura não foi redigida para ensinar aos homens ciências naturais; a sua mensagem é de ordem sapiencial e teológica, de modo que ela não se opõe a teorias científicas que respeitem Deus como Criador Providente do mundo e do homem. A maioria dos astrofísicos (80%, diz-se) crêem em Deus, embora não professem sempre filiação a alguma corrente religiosa.

Delumeau, referindo-se ao futuro do Cristianismo, é otimista; julga que o fator mais apto a credenciar o Cristianismo em nosso mundo é a santidade; entre todos os homens, os maiores não foram os cientistas nem os artistas, nem os políticos, mas os santos; nestes transparecem mais nitidamente o amor, a harmonia e a sabedoria de Deus.

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A revista italiana JESUS, em seu número de agosto 1986, pp. 67-70 e 74-76, publica dois testemunhos de pensadores católicos a respeito das relações entre a ciência e a fé. Trata-se do jesuíta Pe. George V. Coyne, norte-americano, Diretor do Observatório do Vaticano, e do historiador francês Jean Delumeau, que se tem dedicado à história do Cristianismo moderno e contemporâneo.

Nesses dois depoimentos há passagens muito interessantes, que a seguir publicamos em tradução portuguesa com breves comentários.

1. Fala o astrônomo

O Pe. George V. Coyne nasceu em 1933 na cidade de Baltimore (U.S.A.). Fez-se jesuíta, e, seguindo a tradição jesuíta voltada para as ciências naturais, dedicou-se à Astrofísica. Desde 1978, é o Diretor do Observatório do Vaticano, que está confiado à Companhia de Jesus. O jornalista Vittorio Messori, um convertido à fé católica, foi entrevistá-lo no seu posto de trabalho e fez-lhe algumas perguntas:

1. 1.Conflito entre Ciência e Fé?

Vittorio Messori: “Padre Coyne, para um astrônomo ou para um cientista, há algum conflito entre o seu trabalho e a sua fé?

Pe. Coyne: Não só não há, mas nem pode haver conflito entre as duas esferas. A verdade é uma só; por conseguinte, as verdades que o cientista descobre na natureza repousam sobre as verdades que a fé nos ensina. Pode a criatura estar em conflito com o Criador?

Quem julga que nós, religiosos, somos cerceados em nossa pesqui­sa, evidentemente não sabe como estão as coisas. A nossa liberdade é total, sem interferências como aquelas de natureza burocrática ou política que muitas vezes afetam o trabalho universitário. Posso fazer um con­fronto, já que trabalhei durante anos em Ateneus públicos. O dinheiro? Dentro dos nossos limites, mesmo este não nos falta; submetendo-se a inegável sacrifício, a Santa Sé financia todos os anos o nosso orçamento. Sem dúvida, há despesas extraordinárias, como aquela do projeto de te­lescópio de alta tecnologia, mas estamos certos de que não faltarão os patrocinadores.

V.M.: Está, portanto, encerrada a fase das tensões reais ou aparen­tes entre ciência e fé?

P.C.: Hoje em dia todos admitem que é impossível encontrar, por via científica, um argumento qualquer contra a existência de Deus. Mes­mo assim a fé (não o esqueçamos) fica sendo sempre o pari, a aposta da qual fala um grande cientista e também um grande cristão como Pascal. Por conseguinte, a ciência, bem entendida, não nega nem pode negar que haja algo ‘além da matéria’; mas também não pode encostar o ateísmo à parede, fazendo a fé decorrer diretamente da pesquisa científi­ca.

Vittorio Messori nota a propósito que estamos saindo da era positi­vista e que todos os fundadores da astronomia moderna foram grandes cientistas e, ao mesmo tempo, grandes homens de fé explícita: Copêrni­co, Galileu, Keppler, Newton… Ainda hoje, como revelam os inquéritos, 80% dos estudiosos das ciências naturais declaram sem hesitação que têm fé. Talvez… fé sem professar a Igreja, mas certamente são homens dispostos a chamar Deus o mistério que está por detrás de tão pequenos e tão grandes mistérios com os quais eles se defrontam todos os dias. Newton, por exemplo, dizia: “Esta admirável ordem que vemos nos céus, não pode ser senão obra de um Ser todo-poderoso e onisciente”. Keppler: “Descobrindo o mistério do céu, o homem repensa os pensamentos de Deus”. Até Voltaire, inimigo do Cristianismo, mas não da fé num Deus Criador, insurgiu-se contra os ateus, apontando-lhes o céu estrelado e repetindo a frase famosa: “E lógico que nos sirvamos de um relógio ne­gando ao mesmo tempo a existência do relojoeiro?”

1.2. A ignorância do cientista

Continua Vitorio Messori: “Que é que mais o impressiona no seu trabalho de jesuíta e astrônomo?

P.C.: É o fato de que, quanto mais vamos ao fundo da realidade e descobrimos coisas desconhecidas, tanto mais temos a experiência do mistério. Quando um de nós, cientistas, diz que sabe ser sempre mais ig­norante, não pratica um ato de humildade, mas uma profissão de verda­de. É atrás desta ignorância e, portanto, atrás deste mistério que se per­cebe o fascínio, o apelo de Deus. Neste sentido, fazer pesquisas pode re­dundar às vezes em fazer oração.

V.M.: Fazer oração e também, em certo sentido, fazer teologia, se bem que com equações matemáticas e fotografias infra-vermelhas?

P.C.: Sim, é certo… Parece-me ouvir as palavras de São Paulo, às quais faz eco S. Agostinho: Deus se manifesta e também se oculta entre sombras e enigmas: dá-se a conhecer, mas ‘como num espelho’. O uni­verso nos revela os vestígios de Deus mais do que revela o próprio Deus; se o Criador é o mistério por excelência, misteriosa é também a sua cria­ção … A fé certamente não está em conflito com a razão, mas ela a ul­trapassa; não vai contra, mas além da razão. Sem dúvida, até certo ponto a razão deve acompanhar a fé. Neste sentido a ciência ajuda… Mesmo uma ciência anômala como é a astronomia”

1.3. Mundos à distância de bilhões de anos

V.M.: “Como entende ‘anômala’?

P.C.: No sentindo de que a astronomia é a única disciplina científica não experimental; ela não pode ter em mãos o objeto que ela estuda. A astronomia está baseada na confiança de que as coisas que os nossos te­lescópios indicam são reais e, a milhares de anos-luz, funcionam as mesmas leis que regem a vida entre nós… Ciência anômala também no sentido de que o astrônomo não vê a realidade como ela é, mas como era. Por causa da distância e da elevada (mas sempre limitada) velocida­de da luz, nós não vemos o sol como ele é, mas como ele era há oito mi­nutos atrás; vemos as galáxias mais distantes como eram há três ou qua­tro bilhões de anos.

V.M.: Há, portanto, um aspecto paradoxal – por conseguinte, um mistério a mais – na astronomia.

P.C.: Sim; perscrutando os céus vemos objetos tais como se apresentavam em épocas muito remotas. Por esta razão é decisivo construir telescópios novos, como o VATT (Vatican Advanced Technology Telescope, Telescópio de Avançada Tecnologia do Vaticano) que nos permitem ver sempre mais à distância. Pois quanto mais longe virmos mais poderemos aproximar-nos do momento inicial do big-bang (grande explosão), a partir do qual tudo começou. Os meus colegas estão, em parte, de acordo em dizer que este início ocorreu há quinze ou vinte bilhões de anos. Atualmente podemos chegar aos três ou, no máximo, quatro bi­lhões de anos atrás; estamos ainda bem longe do mistério do início. Mas não perdemos a esperança de nos aproximar, utilizando até telescópios postos fora da atmosfera, onde a visibilidade é, ao menos dez vezes, mais elevada. Isto nos permitirá talvez saber algo mais sobre um dos temas em torno dos quais trabalha o Observatório do Vaticano: tentar recons­tituir a maneira como nasceram as galáxias.

V.M.: Isto nos abre para o tema da vida em outros planetas. Padre, o Sr. crê que haja outros mundos habitados?

P.C.: Se nos atemos às estatísticas, é certo que as condições para haver vida devem ter-se realizado necessariamente não num único ponto do universo. Há centenas de bilhões de estrelas como o sol dentro e fora da nossa galáxia, e é certo que grande parte delas tem um sistema de planetas como o sistema solar. Mesmo que sejamos pessimistas e ex­cluamos muitos de tais planetas, chegaremos sempre a um número ele­vadíssimo de corpos celestes nos quais as mesmas condições existentes na terra devem ter-se realizado. Mas, atenção, falo de condições. Não di­go que, dentro dessas condições favoráveis, a vida se desenvolveu efeti­vamente. É isto que só o cientista pode dizer.

V.M.: E o homem, o religioso Padre Coyne que pensa a respeito disso tudo?

P.C.: Pessoalmente, tomando consciência de que nossa terra é me­nos, muito menos do que um grãozinho de areia numa praia imensa, pergunto-me por que Deus terá criado essa enorme ‘coisa’ que é o uni­verso somente para nós. Mas temos o direito de perguntar isto? Nós não somos Deus, não podemos conhecer os seus pensamentos. Entre as criaturas parece existir algo como a ‘lei do desperdício’: bilhões de esper­matozóides são expelidos, por exemplo, para que um só – e nem sempre um – se encarregue da reprodução. Como pessoa particular, eu diria: sim, há vida em outros planetas. Mas disto não tenho certeza nenhuma.

1.4. No além não farei perguntas

V.M.: As pesquisas… apresentam um percentual de cientistas cren­tes superior a 80%. Estas mesmas pesquisas revelam também que os as­trônomos têm fé, em maior número do que os cultores das ciências hu­manas, psicólogos e sociólogos. Que diz a propósito o Pe. Coyne?

P.C.: Só o posso confirmar. Sim; a maioria dos colegas que encon­trei e que encontro, diz crer em Deus. Repito, porém: estejamos atentos a não praticar aquele ingênuo concordismo entre ciência e Bíblia que levou certos homens da Igreja a atitudes infelizes no passado. Deus está fora do espaço e do tempo, ao passo que nós nos movemos sempre dentro destas coordenadas. Se eu tivesse que recomeçar, não hesitaria: eu me faria jesuíta de novo. Por conseguinte, creio firmemente em Deus Criador do céu e da terra. Mas, se me perguntam o que é criar, já não sei respon­der com exatidão.

V.M.: Como então ler o livro do Gênesis?

P.C.: Evitando fazer como as seitas fundamentalistas norte-ameri­canas, que tomam a Escritura como um texto cientifico. Ao contrário, a Bíblia é um livro religioso, é a reflexão de um tipo de civilização situada em determinado momento histórico e que, antes do mais, deseja trans­mitir uma mensagem; Deus existe e é um Deus que ama as suas criatu­ras. Não é lícito ir além disto.

V.M.: A Escritura começa com o Gênesis e termina com o Apocalip­se. Assim como houve um começo (e a teoria do big-bang o confirma), haverá também um fim?

P.C.: Esta não é uma pergunta teológica, mas cientifica. O problema do fim do universo é solúvel desde que conheçamos as variantes da mas­sa e do tempo. Tal problema, porém, é, sob vários aspectos, complexo: apenas para exemplificar, lembro que uma das descobertas mais sensa­cionais destes últimos tempos é a de que não vemos talvez senão 10% da massa do universo. Parece que 90% da matéria escapa aos nossos olha­res: não emite nem luz nem radiações. É matéria morta.

V.M.: Então como puderam tornar-se conscientes da sua existência­

P.C.: A partir das medições feitas no campo gravitacional. Mais: para definir se e quando o universo terá fim, deveríamos saber se ele se expandirá ao infinito ou se, chegado a um certo ponto, começará a con­trair-se, percorrendo em sentido inverso a via iniciada pelo big-bang.

V.M.: Padre Coyne, aqui na terra movemo-nos, embora com pro­gresso, entre sombras e enigmas. Será que veremos claro quando en­trarmos no além?

P.C.: Periodicamente pergunto isso a mim mesmo; interrogo se ‘depois’ poderei finalmente conhecer qual é a origem das galáxias, que tanto me apaixona. Mas logo penso que entrar no além significa não a revelação dos mistérios do universo, mas a entrada no próprio Mistério do universo, em Deus. Não encontrarei as respostas que agora procuro todos os dias e todas as noites com o meu trabalho; não as encontrarei porque não me interessará formular perguntas. Mais do que procurar compreender o mistério, eu o viverei. Estarei dentro dele. E assim serei feliz.

V.M. Às vezes pergunta-se onde fica Jesus Cristo neste contexto. Deus, certamente, é uma intuição ligada desde sempre à astronomia por­que nenhuma ciência, tanto quanto esta, lida com as noções de infinito e eternidade. Mas Cristo?

P.C.: Cristo é o sustentáculo; é o eixo em torno do qual tudo, tudo gira. No enigma deste enorme cosmo Ele é o centro. Ele está no centro, e, ao mesmo tempo, nas extremidades; é o Alfa e o Omega. Reza o Cre­do: “por Ele todas as coisas foram criadas”.

Esta entrevista é, por si mesma eloqüente, confirmando mais uma vez o axioma: “A pouca ciência afasta de Deus, ao passo que a muita ciência leva a Deus”.

Passemos agora ao depoimento de Jean Delumeau.

2. Fala o historiador

Jean Delumeau é atualmente um dos maiores historiadores france­ses; dedica-se especialmente aos séculos XIII/XVII. Além de obras refe­rentes ao passado, publicou dois opúsculos, que nos interessarão de perto nestas páginas.

2.1. “O Cristianismo está para morrer?”

O autor é assaz otimista ao escrever: “Julgo-me autorizado a dizer aos cristãos que os tempos atuais são menos obscuros do que eles ima­ginam; o futuro está aberto… Principalmente não pranteemos o passado” (Il Cristianesimo sta per morire? Torino 1978, p. 15).

Os porquês deste otimismo são expostos em obra mais recente do autor intitulada Ce que je crois (Paris 1985, pp. 362). É este livro que pas­samos a considerar.

2. 2. “O que creio”

A tese principal desta obra afirma que a fé em Deus e, em particu­lar, a fé cristã, além de não contrastar com a inteligência culta da nossa época, pode oferecer-lhe suplementos de informação e profundidade que nenhuma ciência tem condições de apresentar. – Como desenvolve o autor a sua tese?

2.2.1. Ciência e Fé

O progresso da ciência contemporânea abre precisamente maior espaço para a fé: “quanto mais sabemos, tanto mais tomamos consciên­cia de que não sabemos… É a própria ciência que nos informa a respeito dos seus limites”. A ciência é a glória do homem, a condição de sua so­brevivência intelectual e material; não obstante, é a própria ciência que nos faz compreender sempre melhor a espessura daquela escuridão, de que a ciência ilumina apenas um setor.

No fundo dessa escuridão não poderia estar Deus?, pergunta Delumeau. Quem pode estar certo de que Ele não se encontra aí? Que ra­zões temos para dizer que a imensidade não tem sentido e que a evolu­ção não obedece a um projeto? Delumeau admoesta os cientistas a não cometerem o erro praticado por teólogos de épocas passadas.

2.2 2. A ciência não enxerga toda a estrada

Tais teólogos falaram demais julgando-se competentes em qual­quer assunto. Pergunta Delumeau: “Não acontece que a mudança dos tempos leva alguns cientistas contemporâneos a cometer o mesmo erro e a falar de maneira autoritária sobre temas que escapam e sempre esca­parão à ciência? – A ciência ilumina um segmento da estrada. Mas ela não pode dizer aonde a estrada leva. Não lhe compete afirmar que a es­trada não leva a parte alguma… É verdade que o biólogo vê realizar-se sob o seu microscópio programas cujo programador ele nunca encontra. Deverá, por isto, concluir que não existe programador?” Já não compete à ciência responder a tal pergunta. “Julgo, diz Delumeau, que a ciência convida o estudioso a voltar-se para a mensagem religiosa… Ciência e religião parecem-me caminhar lado a lado e tender uma para a outra; a ciência orienta racionalmente para a religião, embora a religião tenha precedido a ciência na história da humanidade”.

Mais: verifica-se que a corrente intelectual que procura eliminar Deus, tende também a suprimir o homem, apesar de procurar precisa­mente favorecer o homem. Delumeau tem em vista não só Marx, Freud, Nietzsche, mas também alguns expoentes do estruturalismo francês (C. Lévi-Strauss, M. Foucault…), quem elaboraram a teoria da morte do homem. Segundo Delumeau, estes pensadores são coerentes: “Se não existe um Deus Criador que tenha planejado o homem, este não tem es­tatuto próprio, nem vocação peculiar. Ele existe por acaso, provisoria­mente, e desaparecerá. Por conseguinte, ele não tem valor em si mesmo. Está claro que, historicamente falando, Deus e o homem estão associa­dos entre si. Se alguém mata o primeiro, o segundo há de sofrer a mes­ma sorte… Ao menos para os cristãos, Deus pela encarnação se faz soli­dário com o homem e assim o homem se tornou sagrado”.

2.2.3. Não confundir neurônios e espírito

Não será o homem o produto de uma evolução mecanicista? O estudo da evolução do crânio não leva a compreender que o sucesso do gênero humano é devido à multiplicação dos neurônios e das sinapses e à capacidade de adaptação do encéfalo ao ambiente respectivo? Escreve Delumeau: “A neurobiologia deve procurar as condições materiais das operações mentais: é esta a sua vocação. As suas pesquisas provam que a capacidade intelectual do homem está ligada ao número e à diversidade das conexões do seu cérebro. Seria lícito dizer mais do que isto e confun­dir o fio telefônico com a mensagem que ele transmite?… Será lícito afir­mar que o espírito não existe?”

Para Delumeau, o conceito de espírito não está superado; ao con­trário, a ciência o torna ainda mais atual. Com efeito; não se pode reduzir todo o psiquismo humano ao mecanismo dos neurônios, pois neste caso deixaria de haver a liberdade e teríamos que perguntar-nos: Donde nos vem a forte convicção de que somos livres e, por isto, tendemos a rejeitar todos os sistemas sociais e políticos que procuram despojar o homem da sua liberdade? Para Delumeau, fazer desaparecer o homem como sujeito dotado de liberdade é obra do “totalitarismo intelectual” de certas esco­las, tão dogmáticas que elas julgam possuir, com exclusividade, a chave capaz de manifestar a verdade plena a respeito do homem. “A autêntica atitude científica consiste em reconhecer o mistério onde ele existe. Com efeito, o homem, na sua globalidade, resiste à dissecação que as ciências humanas lhe querem infligir”. Ele é mais rico do que um conjunto de da­dos algébricos ou do que os resultados da informática e dos programas genéticos.

2.2.4. A credibilidade do Cristianismo

Já no livro “O Cristianismo está para morrer?” o autor afirmava energicamente que o verdadeiro problema da igreja de nossos tempos não é o uso do latim nem o da batina, mas sim: “Como pode ser acredi­tável o Cristianismo aos nossos contemporâneos?” A resposta a esta pergunta é apresentada por Delumeau nas páginas de “O que creio”. No final deste livro, não hesita em dizer que o fator essencial para firmar a credibilidade do Cristianismo é a santidade. “Bergson pensava que, en­tre os homens, os maiores são os santos. Eu sou da mesma opinião; além disto, creio que esta é, inconscientemente, compartilhada por muita gente”. E indica duas figuras atuais de santidade: Madre Teresa de Cal­cutá e Irmã Emanuela do Cairo. “São exemplos que nos lembram a existência, na Igreja, de um heroísmo cotidiano caracterizado pelo amor, pela dedicação, pela paciência, pela humildade, de que muitos clérigos e leigos oferecem provas seguras… Esta santidade cotidiana constitui, para mim, a melhor prova da existência de Deus, o Deus de amor do qual fala São João, e me torna confiante no futuro do Cristianismo.” Neste contexto Delumeau fala também dos cristãos perseguidos em nossos tempos, afirmando que a verdadeira perseguição aos cristãos não foi aquela movida por Diocleciano nos séculos III/IV, mas a de muitos regi­mes opressores de nossos tempos, sejam de direita, sejam de esquerda.

Este final do livro de Delumeau merece atenção especial, pois toca um ponto nevrálgico: quais são os grandes personagens da história? Ins­tintivamente poderia alguém responder: são os grandes líderes políticos, nacionais ou internacionais, ou os grandes cientistas (Newton, Keppler, Lavoisier, Ampère…) ou os grandes artistas (Miguel Ângelo, Bernini, Leonardo da Vinci…). Na verdade, maiores do que todos estes são os santos! Com efeito, quem faça a radiografia interior de um grande políti­co, cientista ou artista, poderá descobrir nele uma personalidade feia ou desfigurada pelo egoísmo, o orgulho, o ódio, a prepotência, a vaidade…; terão desenvolvido um aspecto de suas potencialidades (a capacidade de liderança, os talentos intelectuais ou artísticos) mas não se terão desenvolvido segundo a dimensão mais típica e mais global que é a da personalidade; como pessoas terão ficado mirrados Ao contrário o santo ou a santa é alguém que se realizou plenamente na sua realidade mais própria e característica, que é a da personalidade harmoniosa e bela sem ser conhecidos pelo mundo, sem exercer liderança visível, mas vistos por Deus, para quem viveram coerentemente, às vezes numa choupana, num leito de hospital ou perdidos na multidão… Estas figuras humanas deixaram lições imorredouras e falam em favor da causa que professaram…. falam em favor de Cristo e de sua Igreja. Por isto tem razão Delumeau – e, com ele, muita gente – ao afirmar que, dentre os homens, os maiores são os santos; são eles também que fazem a riqueza da Igreja (com a graça de Cristo, sem dúvida).