(Revista Pergunte e Responderemos, PR 450/1999)
Em síntese: Propaga-se ainda a notícia de que Copérnico e Galileu foram pela Inquisição lançados na fogueira por causa de sua teoria heliocêntrica. Tal afirmação é falsa: as obras de Copérnico pouca repercussão tiveram em sua época (primeira metade do século XVI); uma delas – “Sobre a Revolução dos Corpos Celestes” – foi mesmo dedicada ao Papa Paulo III, que aceitou a dedicatória sem lhe fazer objeções. Quanto a Galileu, sabe-se que foi condenado pelo Santo Ofício, pois nos séculos XVI/XVII acreditavam todos os cristãos que a Bíblia ensina o geocentrismo; Galileu morreu aos 8/01/1642, assistido por um sacerdote, como bom católico em paz com a Igreja.
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Continua a ser difundida, até mesmo em manuais de formação católica, a notícia segundo a qual Nicolau Copérnico e Galileu Galilei foram condenados à fogueira pela Inquisição. Eis o que se lê no manual de catequese crismal “Decidi ser cristão – Crisma 2”, publicado pela diocese de Caxias do Sul (RS):
“É verdade que houve muitas injustiças e que os tribunais da inquisição chegaram até a ameaçar e condenar à fogueira cientistas como Copérnico e Galileu Galilei, porque tinham idéias que hoje qualquer criança sabe: que a terra é redonda e gira em torno do sol” (pp. 72s).
Ora tal notícia e falsa. Para comprovar a falsidade, vão, a seguir, relatados os fatos históricos em perspectiva serena e objetiva.
1. Nicolau Copérnico (1473-1543)
Apresentaremos: 1) a pessoa e a obra de Nicolau Copérnico e 2) as dificuldades que na época se opunham à aceitação do heliocentrismo.
1.1. Nicolau Copérnico: pessoa e obra
Nicolau nasceu aos 14/02/1473 em Torun (Polônia) e faleceu em Frauenburg (Polônia) aos 24/05/1543 de morte natural, em santa paz com a Igreja.
Estudou Astronomia e Matemática na Universidade de Cracóvia e, por três anos, Direito Canônico em Bolonha (Itália). Em 1500 lecionou Astronomia na Universidade Sapientia de Roma. Voltou para a Polônia em 1505 e foi nomeado cônego da catedral de Frauenburg, onde continuou seus estudos. Com efeito; Copérnico, usando de poucos e modestos instrumentos, fabricou uma lente, que ele colocou sobre uma torre perto da catedral. Pôs-se a observar a precessão dos equinócios[1] – pesquisa a que fora iniciado por famoso mestre da época, o astrônomo Domenico Maria Novarra, de Ferrara. Suas conclusões foram muito úteis para a reforma do calendário ocorrida em 1582 por efeito dos estudos do matemático Clávius, da Companhia de Jesus. Em 1530 Copérnico começou a escrever a sua famosa obra De revolutionibus orbium caelestium libri sex (Seis Livros sobre a Revolução dos Corpos Celestes); tiveram notícia dessa iniciativa o Cardeal Nicolau Schönberg em 1536, o qual aprovou o empreendimento, como também o astrônomo João Joaquim Retico em 1539, o qual publicou um compêndio do pensamento de Copérnico. Terminada a obra, foi enviada à tipografia de Nürenberg (Alemanha), que só deu a lume o impresso em 1543, pouco antes do falecimento de Copérnico. Este dedicou tal obra ao Papa Paulo III, cultor da ciência astronômica, que aceitou tranqüilamente a dedicatória, sem lhe opor objeção. O escrito de Copérnico era prefaciado pelo teólogo luterano Andrea Osiander, que dava a entender que as teorias de Copérnico eram meras hipóteses, pois tanto os luteranos como os católicos, de modo geral, julgavam que a Bíblia ensina o geocentrismo.
Segundo Copérnico, o Sol ocupa o centro do sistema planetário; em torno dele giram os planetas em órbitas circulares, na seguinte ordem: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno. Tal concepção encontrou exígua acolhida na época, de tal modo estava arraigada a teoria geocêntrica, que não somente a Bíblia (Js 10, 12s; Ecl 1, 5), mas também a observação astronômica dos séculos anteriores pareciam ensinar. Por conseguinte Nicolau Copérnico não foi incomodado por causa de suas idéias e morreu em paz com a Igreja no ano de 1543.
Vejamos as principais dificuldades que o heliocentrismo encontrava nos séculos XVI/XVII.
1.2. Dificuldades contra o heliocentrismo
a – Sistema geocêntrico
É o sistema mais antigo, cuja origem é incerta. Na antiguidade apresentaram-no, entre outros, Hiparco (190 a 120 a.C.). No século II de nossa era, o grego Claudio Ptolomeu fez melhoramentos na hipótese de Hiparco, mostrando, por suas observações, que as órbitas dos planetas não podem ser circulares, como queriam Hiparco e Aristóteles, entre outros (o círculo era símbolo da perfeição). A Terra, imóvel, ocupa o centro do universo. Em torno dela giram, na seguinte ordem: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno.
Esta concepção perdurou não só na Antiguidade, mas também por toda a Idade Média, em parte pela adesão de Aristóteles ao geocentrismo, em parte pelas objeções postas ao heliocentrismo, como veremos mais adiante.
b – Sistema heliocêntrico
Aristarco de Samos (século III a.C.) foi o primeiro a adotar e ensinar o sistema heliocêntrico. De acordo com Aristarco, o Sol está imóvel no centro do universo, e à sua volta os planetas descrevem órbitas circulares; as estrelas fixas encontram-se em uma esfera cristalina. Avaliou que as distâncias entre as estrelas eram extraordinariamente superiores à distância entre Sol e Terra.
Não havia provas convincentes de que a realidade estivesse de acordo com esta teoria, mas ela justificava plenamente a regularidade do movimento dos planetas. Por outro lado, havia argumentos de peso contra ela, baseados nos conhecimentos e no “bom senso” da época, provenientes da observação de fenômenos naturais. O argumento de maior importância era o seguinte:
Se a Terra gira em torno do Sol, é necessário que também gire em torno de si, para produzir o dia e a noite. Se ela gira em torno de si, deve haver um movimento relativo terra-ar e, portanto, para quem está parado na superfície da Terra, um vento com a mesma velocidade. Se estou andando a cavalo, pensavam, quanto mais rápido andar o cavalo, mais veloz o vento que sentirei, devido ao movimento relativo cavalo-ar. Se estou parado, não sobre o cavalo, mas sim na superfície da Terra, e ela está “correndo” em sua rotação, deverei sentir um vento correspondente. E qual a velocidade deste vento? Os gregos já tinham feito o cálculo. Mais precisamente, Eratóstenes, medindo a diferença de latitude entre Siena (atualmente, Assuan) e Alexandria, e medindo a distância entre estas duas cidades, determinou a circunferência da Terra, no Equador. Foi concluído que, se a Terra girasse sobre si mesma, a velocidade no Equador seria de cerca de 400 m/s (1.440 km/h). E esta seria a velocidade do vento causado pela rotação da Terra, velocidade essa suficiente para destruir florestas, veículos, construções, etc. (na realidade, a velocidade é ainda maior: 1.670 km/h). Este vento não existe. Logo: a Terra não pode ter o movimento de rotação requerido pelo sistema heliocêntrico para formar dias e noites.
Outro argumento contra o sistema heliocêntrico é o que exporemos a seguir:
Se uma pedra for atirada verticalmente para cima, enquanto ela sobe e desce, a Terra se desloca e a pedra chocar-se-á com o terreno em um ponto afastado do ponto de lançamento. Se, após seu lançamento, a pedra levar dez segundos para chocar-se com o terreno, no Equador ela estaria a quatro quilômetros a oeste de seu ponto de lançamento! Ora isto não acontece.
Por estas e outras dificuldades, a teoria heliocêntrica foi abandonada, voltando a ser apresentada muitos séculos depois por Nicolau Copérnico.
c – A interpretação da Bíblia
Nos séculos XVI/XVII, a interpretação da Bíblia era feita de modo rígido e, em geral, atendo-se exageradamente ao sentido literal do texto. Como causa principal desse modo de proceder, está o protestantismo, que, desde o manifesto de Lutero, em 1517, vinha promulgando a livre interpretação da Bíblia. Para evitar os males que estavam sendo causados à fé cristã por este modo de proceder, a Igreja passou a se fixar mais no sentido literal das palavras, enquanto não houvesse motivos fortes que desaconselhassem tal proceder.
Naquela época, com o exíguo desenvolvimento das ciências naturais, as Escrituras eram usadas também para explicações científicas. Sem o conhecimento dos gêneros literários dos antigos orientais e do sentido correto de certas palavras, os teólogos interpretavam a Bíblia literalmente, o que, aliás, é um princípio da hermenêutica: Não é lícito abandonar o sentido literal de um texto, sem que haja evidentes indícios de que é metafórico; ora estes indícios ocorrem, por exemplo, no caso de existirem argumentos de peso a favor de uma hipótese científica.
Além do quê, a interpretação literal de certos trechos da Bíblia (que apontavam para o geocentrismo) estava de acordo com o bom senso geral da época, que via o movimento do Sol e da Lua, bem como com os filósofos aristotélicos e com a quase totalidade dos astrônomos. Antes de Galileu, Aristarco e Copérnico já haviam lançado a hipótese do heliocentrismo, mas sem qualquer argumento convincente. E sem que alguém tivesse refutado o forte argumento contrário à rotação da Terra: “e o vento, o vento de 1.440 km/h oriundo da rotação da Terra?”.
Passamos agora ao estudo de
2. Galileu Galilei: os Processos[2]
2.1. O primeiro Processo (1616)
Galileu soube de um aparelho inventado por um holandês que permitia ver objetos afastados com nitidez (telescópio). A partir dessas informações construiu um telescópio com melhores características e com ele fez muitas descobertas, tais como:
– as manchas do Sol (que não é, pois, o corpo perfeito descrito por Aristóteles);
– as crateras da Lua (que, portanto, não é a esfera lisa, perfeita, admitida por Aristóteles);
– a Via Láctea é constituída por um grande número de estrelas;
– Júpiter possui Luas (Galileu descobriu quatro), o que demonstrava que a Terra não era o centro de tudo;
– Vênus tem fases como a Lua; pelo que, muito provavelmente, deveria girar em torno do Sol.
Estas descobertas foram publicadas em 1610 e trouxeram uma grande popularidade a Galileu. Entre os que o cumprimentaram e admiravam seu trabalho, estavam o astrônomo Kepler e o matemático jesuíta Clavius (já citado à p. 496 deste artigo).
Por outro lado, os aristotélicos reagiram violentamente, inclusive duvidando da competência de Galileu como pesquisador: manchas solares e relevo da Lua dever-se-iam a sujeira nas lentes do telescópio; outras descobertas não passariam de ilusões de ótica.
Em 1611 Galileu esteve em Roma e foi muito homenageado por cientistas e nobres. Foi recebido como membro da Academia dei Lincei. Os jesuítas (muitos dos quais eram professores e astrônomos) dedicaram-lhe uma festa acadêmica no Colégio Romano, com a presença de condes, duques, muitos prelados e alguns Cardeais. O próprio Papa Paulo V concedeu-lhe audiência.
Os problemas começaram com a publicação do livro “Contro il moto della terra” (Contra o movimento da Terra), do teólogo Ludovico delle Colombe, neste mesmo ano (1611). Ludovico elogiava Galileu, mas citava trechos da Bíblia e argumentos dos Santos Padres para demonstrar a tese geocêntrica. Eis algumas das citações: Salmo 104, 5: “Fundaste a terra em bases sólidas, que são eternamente inabaláveis”; Eclesiastes 1, 4-5: “Uma geração passa, outra vem; mas a Terra sempre subsiste. O sol se levanta, o sol se põe; apressa-se a voltar ao seu lugar”.
O problema é que Galileu, em vez de responder com argumentos físicos, usou argumentos bíblicos, citando outro trecho que parece defender a tese contrária: Salmo 96, 9: “Diante d’Ele estremece a terra inteira”.
E assim a disputa, que deveria ser de caráter científico, passou para a exegese e a teologia. Os debates se multiplicaram. O beneditino Castelli, professor na Universidade de Pisa, defendia a opinião de Galileu. Este escreveu diversas cartas, dirigidas, entre outros, ao próprio Castelli, a Clavius e ao Cardeal Belarmino, defendendo-se. Da carta a Castelli transcrevemos um trecho, notável pela posição correta assumida por Galileu, no que diz respeito à interpretação da Bíblia:
“A Escritura não se engana, mas sim os seus intérpretes e comentadores, de várias maneiras, entre as quais uma gravíssima e freqüentíssima, quando querem fixar-se sempre no puro sentido literal, pois assim aparecerão não só diversas contradições, mas também graves erros e heresias; seria necessário dar a Deus pés e mãos, e olhos, e também coisas corpóreas e humanas, como cólera, arrependimento, ódio, esquecimento do passado e ignorância do futuro. Donde, assim como na Escritura se encontram muitas proposições falsas quanto ao sentido nu das palavras, mas assim postas para se acomodarem ao numeroso vulgo, assim … é necessário que os sábios comentadores apresentem o verdadeiro sentido”.
O dominicano Lorini enviou à Sagrada Congregação do Index (Inquisição Romana) uma cópia dessa carta, que tinha sido difundida por meio de cópias. A carta foi examinada, qualificada favoravelmente e o caso encerrado.
Entretanto, Galileu insistia em debater no terreno exegético-escriturístico, abandonando as razões científicas do sistema astronômico que defendia. Queria forçar uma decisão urgente da Sagrada Congregação para que certas passagens da Escritura fossem interpretadas de modo diferente do usual havia séculos.
Foi advertido para que deixasse o lado teológico da questão e usasse apenas argumentos das ciências naturais para justificar o sistema heliocêntrico.
Foscarini (Carmelita, Provincial da Calábria) publica em 1615 obra em que defende a opinião de Copérnico.
O Cardeal Belarmino recomenda prudência a Galileu e a Foscarini: que não apresentassem o sistema heliocêntrico como verdade definitiva (o que não existe na ciência; nesta, nada é definitivo) e que não forçassem reinterpretações da Sagrada Escritura, enquanto não houvesse provas demonstrativas do novo sistema. Eis trechos de sua carta:
“Uma coisa é sustentar o movimento da Terra e a estabilidade do Sol como hipótese, e isso está muito bem dito e não tem perigo algum…, e é tudo quanto deveria bastar ao matemático”.
E mais adiante, na mesma carta:
“Quando fosse verdadeiramente demonstrado que o Sol está no centro do mundo e a Terra no terceiro céu, e que o Sol não circunda a Terra, mas sim a Terra circunda o Sol, então seria necessário com muitas considerações explicar as Escrituras, e, antes de afirmar ser falso o que dizem, admitir, pelo contrário, que são coisas que não podemos entender. Por mim, não acreditarei que seja possível tal demonstração, até que me seja apresentada”.
O fato é que Galileu não dispunha de alguma prova concreta ou convincente. A prova em que insistia, do fluxo e refluxo das marés, estava errada. As marés são causadas pela força gravitacional da Lua e do Sol. Ademais, se fossem causadas pela rotação da Terra, deveria haver só uma maré por dia, e não duas.
Acenou como prova, para os ventos alísios, mas não pôde quantificar o fenômeno. E aí estava certo, pois o desvio para o Oeste dos ventos que sopram para o Equador em ambos os hemisférios é causado pela rotação da Terra.
Em conclusão: não tinha provas científicas. Como vimos, tentou provar suas idéias por meio da Bíblia. Somente muito mais tarde, em 1851, é que Foucault conseguiu provar o movimento de rotação da Terra, com um pêndulo dependurado do teto do Panteon de Paris, que oscila em um plano fixo enquanto a Terra gira.
Entrementes, o padre dominicano Caccini fazia vários ataques aos matemáticos e aos adeptos de Galileu. O primeiro destes ataques aconteceu por ocasião de um sermão sobre o milagre de Josué (em que o Sol teria parado); ver Js 10, 7-15. Caccini foi chamado a Roma para explicar os ataques a Galileu. Caccini aproveita a ocasião para, junto com outros, pressionar o Santo Ofício para que Galileu fosse condenado.
Galileu continua, com seu estilo polêmico, a discutir. Diz a Enciclopédia Mirador Internacional (verbete Galileu) que Galileu era “de um estilo de grande veracidade, freqüentemente irônico e mordaz, pois era um temperamento polêmico”. Eis exemplos de seu estilo de argumentar, nada científico: recorria aos vocábulos “idiotas, bufos, hipócritas, impostores, ignorantes, estúpidos, animais”.
Em 24/01/1616, em sessão do Santo Ofício, os consultores apresentam seu parecer sobre a controvérsia. Qualificam duas proposições:
1 ° – Sol fixo. É considerada falsa e absurda do ponto de vista filosófico e formalmente herética, por estar em contradição com várias passagens da Sagrada Escritura, de acordo com o sentido literal e a interpretação corrente dos Padres da Igreja.
2° – Rotação da Terra e translação em torno do Sol. Falsa e absurda, do ponto de vista filosófico, e errônea na fé.
No dia seguinte, há uma reunião dos Cardeais, sob a presidência do Papa Paulo V, para avaliar o parecer dos consultores e pronunciar uma decisão. Foram tomadas duas medidas:
1° – O Cardeal Belarmino é encarregado de, em audiência particular, convencer Galileu de abandonar a teoria copernicana. Galileu nega-se a tal. Recebe, então, de Belarmino, diante de um comissário da Inquisição e de outras pessoas, o preceito formal de não sustentar, ensinar ou defender tal teoria. Galileu promete obediência. Não houve processo formal, nem sentença, abjuração ou penitência.
2° – Por decreto da Sagrada Congregação do Index, foram proibidos os livros de Copérnico, de Foscarini e, de forma geral, dos que defendiam o sistema heliocêntrico. Nenhuma referência nem à obra nem ao nome de Galileu.
Observa-se que a obra de Copérnico, já com 80 anos, até então tinha sido deixada pela Igreja Católica à livre discussão, e havia eclesiásticos que a defendiam. E nela baseou-se a reforma do calendário em 1582, já referida.
O que provocou, depois de tanto tempo, sua proibição, foi a atitude de Galileu, querendo impor como certa, verdadeira, uma teoria para a qual não tinha provas objetivas. Pelo contrário, insistia em uma prova falsa, a das marés. E jamais ele ou outro contemporâneo conseguiu explicar o paradoxo do vento de 1.440 km/h, na linha do Equador, que “deveria” existir em virtude da rotação da Terra. Galileu, lançando mão de razões exegéticas e insistindo em uma reinterpretação da Bíblia, acabou forçando uma decisão imatura e lamentável da Sagrada Congregação do Index.
É de destacar que, em 11/03/1616, Paulo V recebeu Galileu em audiência particular. Considera-o um verdadeiro filho da Igreja e reconhece a retidão das intenções de Galileu, dizendo-lhe que nada temesse de seus caluniadores.
2.2. O Segundo Processo (1633)
Em novembro de 1618 apareceram três cometas na Europa. Foi o estopim para recomeçarem as discussões, com Galileu violento no falar como antes.
Entre 1624 e 1630 Galileu escreve um novo livro: “Diálogo sobre os dois Sistemas Máximos do Mundo, o Ptolomaico e o Copernicano”. Galileu comunicara ao Papa Urbano VIII que pretendia escrever esse livro. O Papa o apoiara, aconselhando-o, porém, a não entrar em conflito com o Santo Ofício e a tratar o sistema de Copérnico como hipótese. Uma recomendação perfeitamente correta para os dias atuais, pois agora é ponto pacífico que em ciência nada é definitivo.
Em maio de 1630 Galileu vai a Roma para obter o necessário “Imprimatur”. O encarregado de examinar seu livro, Pe. Riccardi, era amigo pessoal de Galileu. Concluiu que eram necessárias algumas correções:
1° – Mudar o título, que era “Diálogo sobre as marés”, porque destacava muito
o único argumento (e errado) de Galileu para provar o sistema copernicano.
2° – Alterar algumas passagens.
3° – Alterar o prefácio, de modo a não apresentar o sistema heliocêntrico como verdade segura, mas sim como hipótese.
Diante disso, Galileu resolveu imprimir o livro em Florença. Riccardi concordou, desde que Galileu lhe trouxesse o primeiro exemplar da obra, com as devidas correções, para receber o “Imprimatur”. Galileu argumenta com a peste, que dificultava a comunicação entre as duas cidades. Mais uma vez, cede Riccardi, concordando com o exame da obra em Florença, bastando enviar a Roma o título e o Prefácio.
Em Florença, Galileu consegue que o revisor seja outro amigo seu, Stefani, que foi induzido a pensar que a obra já tinha sido aprovada em Roma. Stefani concedeu a autorização. O título e o prefácio foram enviados a Roma para aprovação e o livro foi publicado em 1631.
Quando Riccardi recebeu um exemplar da obra completa, viu com surpresa que, antes da aprovação florentina, figurava a sua. E sem nenhuma correção no corpo do livro: o sistema copernicano era apresentado em toda a obra, exceto no Prefácio, como verdade incontroversa.
Urbano VIII, pressionado pelos inimigos de Galileu, e considerando a desobediência formal à proibição de 1616, passou o assunto à Inquisição.
A comissão encarregada de examinar a obra grupou a censura em oito pontos, esclarecendo nas conclusões que todos eles podiam ser corrigidos (as marés como falsa prova, apresentar o sistema copernicano apenas como hipótese, etc.). Mas, acrescentava, a desobediência era um agravante bastante sério (o grifo é nosso, pois as conclusões da comissão mostram que o problema era, basicamente, disciplinar).
Galileu, chamado a Roma para julgamento, depois de vários adiamentos (doença, velhice, peste, inundações, foram os motivos alegados), lá chega em 12/02/1633. Hospedou-se inicialmente no palácio do Embaixador de Florença; depois passou a residir no edifício da Inquisição, em aposentos do Fiscal da Inquisição, “cômodos e abertos” (nada de aprisionamento em masmorras, “a pão e água”, como diz uma das lendas).
Foi submetido a quatro interrogatórios:
– No primeiro negou que houvesse defendido o sistema heliocêntrico em seu livro.
– No segundo declarou que, relendo o livro, reparara que em alguns trechos o leitor podia realmente pensar que ele defendia tal sistema.
– No terceiro desculpou-se por desobedecer à proibição de 1616, afirmando que a advertência tinha sido verbal e que não se recordava de uma ordem para ele em particular.
– No quarto e último interrogatório (em 21/06/1633), quando lhe perguntaram solenemente se defendia o sistema copernicano, respondeu negativamente.
No dia seguinte, em Decreto do Santo Ofício, é publicada a sentença, na qual consta: “… é absolvido da suspeição de heresia, desde que abjure, maldiga e deteste ditos erros e heresias…”. Galileu ouviu de pé e com a cabeça descoberta a leitura de sua condenação (três anos de prisão; recitação semanal dos sete salmos penitenciais, por três anos). Depois, de joelhos e com uma mão sobre os Evangelhos, assinou um ato de abjuração, no qual declarava que era “justamente suspeito de heresia”.
Nesta ocasião, Galileu teria exclamado, batendo com o pé no chão: “E pure si muove” (e todavia se move). Lenda inverossímil, dadas as circunstâncias (estava de joelhos). É uma fantasia que apareceu pela primeira vez em 1757 (mais de um século depois), em obra de Baretti.
Além das penas pessoais, também foi proibido o livro de Galileu.
No dia seguinte, a sentença é comutada pelo Papa. Galileu vai viver no palácio do Embaixador de Florença e depois passa para a casa do Arcebispo Piccolomini, seu discípulo e admirador, em uma espécie de prisão domiciliar. Foi-lhe permitido voltar a Florença em 10/12/1633, cinco meses e oito dias depois da condenação.
Como se vê, nada de condenação por heresia, torturas, fogueira, etc. É verdade que durante o processo, em virtude de suas evasivas, foi ameaçado de tortura, de acordo com os trâmites processuais. Por outra, a tortura nunca era infligida a pessoas idosas ou enfermas. Galileu estaria isento por ambas as condições.
Embora reconheçamos que o segundo processo teve, como gravame, a vaidade e a insinceridade de Galileu, devemos todavia lamentar profundamente a primeira condenação de 1616 como inquietante erro judicial, e como abuso de poder diretamente catastrófico em suas conseqüências (proibição das obras de Copérnico).
Em 1637 fica cego. Em 1638 publica o livro “Diálogo das duas novas ciências”, que são a Resistência dos Materiais e a Mecânica Racional, básicas para vários ramos da engenharia.
Morre em 08/01/1642, assistido por um sacerdote, como bom católico.
Seria para desejar que os críticos contemporâneos conhecessem melhor os temas que eles criticam, a fim de não cometerem injustiças em nome da justiça.
À guisa de complemento, convém notar que, aos 31/10/1992, o Santo Padre João Paulo II reconheceu o erro dos teólogos do século XVII. A condenação de Galileu por parte do Santo Ofício não afeta a infalibilidade do magistério da Igreja, pois esta só se exerce em matéria de fé e de Moral; o assunto abordado no debate entre Galileu e os teólogos era de ciências naturais,… ciências que, segundo a mentalidade do século XVII, deveriam aprender da S. Escritura a concepção geocêntrica. Disse então o Papa:
“A partir do século das Luzes até os nossos dias, o caso Galileu constituiu uma espécie de mito, no qual a imagem que se tinha formado dos eventos estava bem longe da realidade… Uma trágica incompreensão recíproca foi interpretada como o reflexo da oposição entre ciência e fé. Os esclarecimentos fornecidos pelos recentes estudos históricos permitem-nos afirmar que este doloroso mal-entendido já pertence ao passado”.
A propósito ver PR 371/1993, pp. 160-170.
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NOTAS:
[1] Equinócio é a época do ano (ocorrente de seis em seis meses) em que o Sol, no seu aparente movimento sobre a eclíptica, corta o quadro celeste; nessa ocasião (21 de março e 23 de setembro) o dia e a noite têm a mesma duração. – Acontece, porém, que o movimento do equinócio vai sofrendo um lento recuo de 50″, 26 por ano: isto se chama “a precessão dos equinócios”, em conseqüência da qual o momento do equinócio vai sendo lentamente antecipado.
[2] Reproduziremos, a seguir, as páginas 118-124 de PR 382/1994, da autoria do Prof. Dr. Joaquim Blessmann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre e Doutor em Ciências pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), Membro da Academia Nacional de Engenharia do Brasil, Membro correspondente da congênere Academia da Argentina.