Ciência e Fé: Copérnico e Galileu lançados na fogueira?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 450/1999)

 

Em síntese: Propaga-se ainda a notícia de que Copérnico e Galileu foram pela Inquisição lançados na fogueira por causa de sua teoria heliocêntrica. Tal afirmação é falsa: as obras de Copérnico pouca reper­cussão tiveram em sua época (primeira metade do século XVI); uma de­las – “Sobre a Revolução dos Corpos Celestes” – foi mesmo dedicada ao Papa Paulo III, que aceitou a dedicatória sem lhe fazer objeções. Quanto a Galileu, sabe-se que foi condenado pelo Santo Ofício, pois nos séculos XVI/XVII acreditavam todos os cristãos que a Bíblia ensina o geocentrismo; Galileu morreu aos 8/01/1642, assistido por um sacerdote, como bom católico em paz com a Igreja.

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Continua a ser difundida, até mesmo em manuais de formação ca­tólica, a notícia segundo a qual Nicolau Copérnico e Galileu Galilei foram condenados à fogueira pela Inquisição. Eis o que se lê no manual de catequese crismal “Decidi ser cristão – Crisma 2”, publicado pela diocese de Caxias do Sul (RS):

“É verdade que houve muitas injustiças e que os tribunais da inquisição chegaram até a ameaçar e condenar à fogueira cientistas como Copérnico e Galileu Galilei, porque tinham idéias que hoje qualquer cri­ança sabe: que a terra é redonda e gira em torno do sol” (pp. 72s).

Ora tal notícia e falsa. Para comprovar a falsidade, vão, a seguir, relatados os fatos históricos em perspectiva serena e objetiva.

1. Nicolau Copérnico (1473-1543)

Apresentaremos: 1) a pessoa e a obra de Nicolau Copérnico e 2) as dificuldades que na época se opunham à aceitação do heliocentrismo.

1.1. Nicolau Copérnico: pessoa e obra

Nicolau nasceu aos 14/02/1473 em Torun (Polônia) e faleceu em Frauenburg (Polônia) aos 24/05/1543 de morte natural, em santa paz com a Igreja.

Estudou Astronomia e Matemática na Universidade de Cracóvia e, por três anos, Direito Canônico em Bolonha (Itália). Em 1500 lecionou Astronomia na Universidade Sapientia de Roma. Voltou para a Polônia em 1505 e foi nomeado cônego da catedral de Frauenburg, onde conti­nuou seus estudos. Com efeito; Copérnico, usando de poucos e modes­tos instrumentos, fabricou uma lente, que ele colocou sobre uma torre perto da catedral. Pôs-se a observar a precessão dos equinócios[1] – pes­quisa a que fora iniciado por famoso mestre da época, o astrônomo Domenico Maria Novarra, de Ferrara. Suas conclusões foram muito úteis para a reforma do calendário ocorrida em 1582 por efeito dos estudos do matemático Clávius, da Companhia de Jesus. Em 1530 Copérnico co­meçou a escrever a sua famosa obra De revolutionibus orbium caelestium libri sex (Seis Livros sobre a Revolução dos Corpos Celes­tes); tiveram notícia dessa iniciativa o Cardeal Nicolau Schönberg em 1536, o qual aprovou o empreendimento, como também o astrônomo João Joaquim Retico em 1539, o qual publicou um compêndio do pensa­mento de Copérnico. Terminada a obra, foi enviada à tipografia de Nürenberg (Alemanha), que só deu a lume o impresso em 1543, pouco antes do falecimento de Copérnico. Este dedicou tal obra ao Papa Paulo III, cultor da ciência astronômica, que aceitou tranqüilamente a dedicató­ria, sem lhe opor objeção. O escrito de Copérnico era prefaciado pelo teólogo luterano Andrea Osiander, que dava a entender que as teorias de Copérnico eram meras hipóteses, pois tanto os luteranos como os cató­licos, de modo geral, julgavam que a Bíblia ensina o geocentrismo.

Segundo Copérnico, o Sol ocupa o centro do sistema planetário; em torno dele giram os planetas em órbitas circulares, na seguinte or­dem: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno. Tal concepção encontrou exígua acolhida na época, de tal modo estava arraigada a te­oria geocêntrica, que não somente a Bíblia (Js 10, 12s; Ecl 1, 5), mas também a observação astronômica dos séculos anteriores pareciam en­sinar. Por conseguinte Nicolau Copérnico não foi incomodado por causa de suas idéias e morreu em paz com a Igreja no ano de 1543.

Vejamos as principais dificuldades que o heliocentrismo encontra­va nos séculos XVI/XVII.

1.2. Dificuldades contra o heliocentrismo

a – Sistema geocêntrico

É o sistema mais antigo, cuja origem é incerta. Na antiguidade apre­sentaram-no, entre outros, Hiparco (190 a 120 a.C.). No século II de nos­sa era, o grego Claudio Ptolomeu fez melhoramentos na hipótese de Hiparco, mostrando, por suas observações, que as órbitas dos planetas não podem ser circulares, como queriam Hiparco e Aristóteles, entre outros (o círculo era símbolo da perfeição). A Terra, imóvel, ocupa o centro do universo. Em torno dela giram, na seguinte ordem: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno.

Esta concepção perdurou não só na Antiguidade, mas também por toda a Idade Média, em parte pela adesão de Aristóteles ao geocentrismo, em parte pelas objeções postas ao heliocentrismo, como veremos mais adiante.

b – Sistema heliocêntrico

Aristarco de Samos (século III a.C.) foi o primeiro a adotar e ensi­nar o sistema heliocêntrico. De acordo com Aristarco, o Sol está imóvel no centro do universo, e à sua volta os planetas descrevem órbitas circu­lares; as estrelas fixas encontram-se em uma esfera cristalina. Avaliou que as distâncias entre as estrelas eram extraordinariamente superiores à distância entre Sol e Terra.

Não havia provas convincentes de que a realidade estivesse de acordo com esta teoria, mas ela justificava plenamente a regularidade do movimento dos planetas. Por outro lado, havia argumentos de peso con­tra ela, baseados nos conhecimentos e no “bom senso” da época, prove­nientes da observação de fenômenos naturais. O argumento de maior importância era o seguinte:

Se a Terra gira em torno do Sol, é necessário que também gire em torno de si, para produzir o dia e a noite. Se ela gira em torno de si, deve haver um movimento relativo terra-ar e, portanto, para quem está parado na superfície da Terra, um vento com a mesma velocidade. Se estou andando a cavalo, pensavam, quanto mais rápido andar o cavalo, mais veloz o vento que sentirei, devido ao movimento relativo cavalo-ar. Se estou parado, não sobre o cavalo, mas sim na superfície da Terra, e ela está “correndo” em sua rotação, deverei sentir um vento correspondente. E qual a velocidade deste vento? Os gregos já tinham feito o cálculo. Mais precisamente, Eratóstenes, medindo a diferença de latitude entre Siena (atualmente, Assuan) e Alexandria, e medindo a distância entre estas duas cidades, determinou a circunferência da Terra, no Equador. Foi concluído que, se a Terra girasse sobre si mesma, a velocidade no Equador seria de cerca de 400 m/s (1.440 km/h). E esta seria a velocida­de do vento causado pela rotação da Terra, velocidade essa suficiente para destruir florestas, veículos, construções, etc. (na realidade, a veloci­dade é ainda maior: 1.670 km/h). Este vento não existe. Logo: a Terra não pode ter o movimento de rotação requerido pelo sistema heliocêntrico para formar dias e noites.

Outro argumento contra o sistema heliocêntrico é o que expore­mos a seguir:

Se uma pedra for atirada verticalmente para cima, enquanto ela sobe e desce, a Terra se desloca e a pedra chocar-se-á com o terreno em um ponto afastado do ponto de lançamento. Se, após seu lançamento, a pedra levar dez segundos para chocar-se com o terreno, no Equador ela estaria a quatro quilômetros a oeste de seu ponto de lançamento! Ora isto não acontece.

Por estas e outras dificuldades, a teoria heliocêntrica foi abando­nada, voltando a ser apresentada muitos séculos depois por Nicolau Copérnico.

c – A interpretação da Bíblia

Nos séculos XVI/XVII, a interpretação da Bíblia era feita de modo rígido e, em geral, atendo-se exageradamente ao sentido literal do texto. Como causa principal desse modo de proceder, está o protestantismo, que, desde o manifesto de Lutero, em 1517, vinha promulgando a livre interpretação da Bíblia. Para evitar os males que estavam sendo causa­dos à fé cristã por este modo de proceder, a Igreja passou a se fixar mais no sentido literal das palavras, enquanto não houvesse motivos fortes que desaconselhassem tal proceder.

Naquela época, com o exíguo desenvolvimento das ciências natu­rais, as Escrituras eram usadas também para explicações científicas. Sem o conhecimento dos gêneros literários dos antigos orientais e do sentido correto de certas palavras, os teólogos interpretavam a Bíblia literalmen­te, o que, aliás, é um princípio da hermenêutica: Não é lícito abandonar o sentido literal de um texto, sem que haja evidentes indícios de que é metafórico; ora estes indícios ocorrem, por exemplo, no caso de existi­rem argumentos de peso a favor de uma hipótese científica.

Além do quê, a interpretação literal de certos trechos da Bíblia (que apontavam para o geocentrismo) estava de acordo com o bom senso geral da época, que via o movimento do Sol e da Lua, bem como com os filósofos aristotélicos e com a quase totalidade dos astrônomos. Antes de Galileu, Aristarco e Copérnico já haviam lançado a hipótese do heliocentrismo, mas sem qualquer argumento convincente. E sem que alguém tivesse refutado o forte argumento contrário à rotação da Terra: “e o vento, o vento de 1.440 km/h oriundo da rotação da Terra?”.

Passamos agora ao estudo de

2. Galileu Galilei: os Processos[2]

2.1. O primeiro Processo (1616)

Galileu soube de um aparelho inventado por um holandês que per­mitia ver objetos afastados com nitidez (telescópio). A partir dessas infor­mações construiu um telescópio com melhores características e com ele fez muitas descobertas, tais como:

– as manchas do Sol (que não é, pois, o corpo perfeito descrito por Aristóteles);

– as crateras da Lua (que, portanto, não é a esfera lisa, perfeita, admitida por Aristóteles);

– a Via Láctea é constituída por um grande número de estrelas;

– Júpiter possui Luas (Galileu descobriu quatro), o que demonstra­va que a Terra não era o centro de tudo;

– Vênus tem fases como a Lua; pelo que, muito provavelmente, deveria girar em torno do Sol.

Estas descobertas foram publicadas em 1610 e trouxeram uma grande popularidade a Galileu. Entre os que o cumprimentaram e admi­ravam seu trabalho, estavam o astrônomo Kepler e o matemático jesuíta Clavius (já citado à p. 496 deste artigo).

Por outro lado, os aristotélicos reagiram violentamente, inclusive duvidando da competência de Galileu como pesquisador: manchas sola­res e relevo da Lua dever-se-iam a sujeira nas lentes do telescópio; ou­tras descobertas não passariam de ilusões de ótica.

Em 1611 Galileu esteve em Roma e foi muito homenageado por cientistas e nobres. Foi recebido como membro da Academia dei Lincei. Os jesuítas (muitos dos quais eram professores e astrônomos) dedica­ram-lhe uma festa acadêmica no Colégio Romano, com a presença de condes, duques, muitos prelados e alguns Cardeais. O próprio Papa Paulo V concedeu-lhe audiência.

Os problemas começaram com a publicação do livro “Contro il moto della terra” (Contra o movimento da Terra), do teólogo Ludovico delle Colombe, neste mesmo ano (1611). Ludovico elogiava Galileu, mas cita­va trechos da Bíblia e argumentos dos Santos Padres para demonstrar a tese geocêntrica. Eis algumas das citações: Salmo 104, 5: “Fundaste a terra em bases sólidas, que são eternamente inabaláveis”; Eclesiastes 1, 4-5: “Uma geração passa, outra vem; mas a Terra sempre subsiste. O sol se levanta, o sol se põe; apressa-se a voltar ao seu lugar”.

O problema é que Galileu, em vez de responder com argumentos físicos, usou argumentos bíblicos, citando outro trecho que parece de­fender a tese contrária: Salmo 96, 9: “Diante d’Ele estremece a terra inteira”.

E assim a disputa, que deveria ser de caráter científico, passou para a exegese e a teologia. Os debates se multiplicaram. O beneditino Castelli, professor na Universidade de Pisa, defendia a opinião de Galileu. Este escreveu diversas cartas, dirigidas, entre outros, ao próprio Castelli, a Clavius e ao Cardeal Belarmino, defendendo-se. Da carta a Castelli transcrevemos um trecho, notável pela posição correta assumida por Galileu, no que diz respeito à interpretação da Bíblia:

“A Escritura não se engana, mas sim os seus intérpretes e comentadores, de várias maneiras, entre as quais uma gravíssima e freqüentíssima, quando querem fixar-se sempre no puro sentido literal, pois assim aparecerão não só diversas contradições, mas também gra­ves erros e heresias; seria necessário dar a Deus pés e mãos, e olhos, e também coisas corpóreas e humanas, como cólera, arrependimento, ódio, esquecimento do passado e ignorância do futuro. Donde, assim como na Escritura se encontram muitas proposições falsas quanto ao sentido nu das palavras, mas assim postas para se acomodarem ao numeroso vul­go, assim … é necessário que os sábios comentadores apresentem o verdadeiro sentido”.

O dominicano Lorini enviou à Sagrada Congregação do Index (In­quisição Romana) uma cópia dessa carta, que tinha sido difundida por meio de cópias. A carta foi examinada, qualificada favoravelmente e o caso encerrado.

Entretanto, Galileu insistia em debater no terreno exegético-­escriturístico, abandonando as razões científicas do sistema astronômi­co que defendia. Queria forçar uma decisão urgente da Sagrada Congre­gação para que certas passagens da Escritura fossem interpretadas de modo diferente do usual havia séculos.

Foi advertido para que deixasse o lado teológico da questão e usas­se apenas argumentos das ciências naturais para justificar o sistema heliocêntrico.

Foscarini (Carmelita, Provincial da Calábria) publica em 1615 obra em que defende a opinião de Copérnico.

O Cardeal Belarmino recomenda prudência a Galileu e a Foscarini: que não apresentassem o sistema heliocêntrico como verdade definitiva (o que não existe na ciência; nesta, nada é definitivo) e que não forças­sem reinterpretações da Sagrada Escritura, enquanto não houvesse pro­vas demonstrativas do novo sistema. Eis trechos de sua carta:

“Uma coisa é sustentar o movimento da Terra e a estabilidade do Sol como hipótese, e isso está muito bem dito e não tem perigo algum…, e é tudo quanto deveria bastar ao matemático”.

E mais adiante, na mesma carta:

“Quando fosse verdadeiramente demonstrado que o Sol está no centro do mundo e a Terra no terceiro céu, e que o Sol não circunda a Terra, mas sim a Terra circunda o Sol, então seria necessário com muitas considerações explicar as Escrituras, e, antes de afirmar ser falso o que dizem, admitir, pelo contrário, que são coisas que não podemos enten­der. Por mim, não acreditarei que seja possível tal demonstração, até que me seja apresentada”.

O fato é que Galileu não dispunha de alguma prova concreta ou convincente. A prova em que insistia, do fluxo e refluxo das marés, esta­va errada. As marés são causadas pela força gravitacional da Lua e do Sol. Ademais, se fossem causadas pela rotação da Terra, deveria haver só uma maré por dia, e não duas.

Acenou como prova, para os ventos alísios, mas não pôde quantificar o fenômeno. E aí estava certo, pois o desvio para o Oeste dos ventos que sopram para o Equador em ambos os hemisférios é causado pela rotação da Terra.

Em conclusão: não tinha provas científicas. Como vimos, tentou provar suas idéias por meio da Bíblia. Somente muito mais tarde, em 1851, é que Foucault conseguiu provar o movimento de rotação da Terra, com um pêndulo dependurado do teto do Panteon de Paris, que oscila em um plano fixo enquanto a Terra gira.

Entrementes, o padre dominicano Caccini fazia vários ataques aos matemáticos e aos adeptos de Galileu. O primeiro destes ataques acon­teceu por ocasião de um sermão sobre o milagre de Josué (em que o Sol teria parado); ver Js 10, 7-15. Caccini foi chamado a Roma para explicar os ataques a Galileu. Caccini aproveita a ocasião para, junto com outros, pressionar o Santo Ofício para que Galileu fosse condenado.

Galileu continua, com seu estilo polêmico, a discutir. Diz a Enciclo­pédia Mirador Internacional (verbete Galileu) que Galileu era “de um es­tilo de grande veracidade, freqüentemente irônico e mordaz, pois era um temperamento polêmico”. Eis exemplos de seu estilo de argumentar, nada científico: recorria aos vocábulos “idiotas, bufos, hipócritas, impostores, ignorantes, estúpidos, animais”.

Em 24/01/1616, em sessão do Santo Ofício, os consultores apre­sentam seu parecer sobre a controvérsia. Qualificam duas proposições:

1 ° – Sol fixo. É considerada falsa e absurda do ponto de vista fi­losófico e formalmente herética, por estar em contradição com várias passagens da Sagrada Escritura, de acordo com o sentido literal e a in­terpretação corrente dos Padres da Igreja.

2° – Rotação da Terra e translação em torno do Sol. Falsa e absur­da, do ponto de vista filosófico, e errônea na fé.

No dia seguinte, há uma reunião dos Cardeais, sob a presidência do Papa Paulo V, para avaliar o parecer dos consultores e pronunciar uma decisão. Foram tomadas duas medidas:

1° – O Cardeal Belarmino é encarregado de, em audiência particu­lar, convencer Galileu de abandonar a teoria copernicana. Galileu nega-­se a tal. Recebe, então, de Belarmino, diante de um comissário da Inqui­sição e de outras pessoas, o preceito formal de não sustentar, ensinar ou defender tal teoria. Galileu promete obediência. Não houve processo for­mal, nem sentença, abjuração ou penitência.

2° – Por decreto da Sagrada Congregação do Index, foram proibi­dos os livros de Copérnico, de Foscarini e, de forma geral, dos que de­fendiam o sistema heliocêntrico. Nenhuma referência nem à obra nem ao nome de Galileu.

Observa-se que a obra de Copérnico, já com 80 anos, até então tinha sido deixada pela Igreja Católica à livre discussão, e havia eclesiás­ticos que a defendiam. E nela baseou-se a reforma do calendário em 1582, já referida.

O que provocou, depois de tanto tempo, sua proibição, foi a atitude de Galileu, querendo impor como certa, verdadeira, uma teoria para a qual não tinha provas objetivas. Pelo contrário, insistia em uma prova falsa, a das marés. E jamais ele ou outro contemporâneo conseguiu ex­plicar o paradoxo do vento de 1.440 km/h, na linha do Equador, que “de­veria” existir em virtude da rotação da Terra. Galileu, lançando mão de razões exegéticas e insistindo em uma reinterpretação da Bíblia, acabou forçando uma decisão imatura e lamentável da Sagrada Congregação do Index.

É de destacar que, em 11/03/1616, Paulo V recebeu Galileu em audiência particular. Considera-o um verdadeiro filho da Igreja e reco­nhece a retidão das intenções de Galileu, dizendo-lhe que nada temesse de seus caluniadores.

2.2. O Segundo Processo (1633)

Em novembro de 1618 apareceram três cometas na Europa. Foi o estopim para recomeçarem as discussões, com Galileu violento no falar como antes.

Entre 1624 e 1630 Galileu escreve um novo livro: “Diálogo sobre os dois Sistemas Máximos do Mundo, o Ptolomaico e o Copernicano”. Galileu comunicara ao Papa Urbano VIII que pretendia escrever esse livro. O Papa o apoiara, aconselhando-o, porém, a não entrar em conflito com o Santo Ofício e a tratar o sistema de Copérnico como hipótese. Uma recomendação perfeitamente correta para os dias atuais, pois ago­ra é ponto pacífico que em ciência nada é definitivo.

Em maio de 1630 Galileu vai a Roma para obter o necessário “Imprimatur”. O encarregado de examinar seu livro, Pe. Riccardi, era amigo pessoal de Galileu. Concluiu que eram necessárias algumas correções:

1° – Mudar o título, que era “Diálogo sobre as marés”, porque des­tacava muito

o único argumento (e errado) de Galileu para provar o siste­ma copernicano.

2° – Alterar algumas passagens.

3° – Alterar o prefácio, de modo a não apresentar o sistema heliocêntrico como verdade segura, mas sim como hipótese.

Diante disso, Galileu resolveu imprimir o livro em Florença. Riccardi concordou, desde que Galileu lhe trouxesse o primeiro exemplar da obra, com as devidas correções, para receber o “Imprimatur”. Galileu argu­menta com a peste, que dificultava a comunicação entre as duas cida­des. Mais uma vez, cede Riccardi, concordando com o exame da obra em Florença, bastando enviar a Roma o título e o Prefácio.

Em Florença, Galileu consegue que o revisor seja outro amigo seu, Stefani, que foi induzido a pensar que a obra já tinha sido aprovada em Roma. Stefani concedeu a autorização. O título e o prefácio foram envia­dos a Roma para aprovação e o livro foi publicado em 1631.

Quando Riccardi recebeu um exemplar da obra completa, viu com surpresa que, antes da aprovação florentina, figurava a sua. E sem ne­nhuma correção no corpo do livro: o sistema copernicano era apresenta­do em toda a obra, exceto no Prefácio, como verdade incontroversa.

Urbano VIII, pressionado pelos inimigos de Galileu, e consideran­do a desobediência formal à proibição de 1616, passou o assunto à In­quisição.

A comissão encarregada de examinar a obra grupou a censura em oito pontos, esclarecendo nas conclusões que todos eles podiam ser corrigidos (as marés como falsa prova, apresentar o sistema copernicano apenas como hipótese, etc.). Mas, acrescentava, a desobediência era um agravante bastante sério (o grifo é nosso, pois as conclusões da comissão mostram que o problema era, basicamente, disciplinar).

Galileu, chamado a Roma para julgamento, depois de vários adia­mentos (doença, velhice, peste, inundações, foram os motivos alegados), lá chega em 12/02/1633. Hospedou-se inicialmente no palácio do Em­baixador de Florença; depois passou a residir no edifício da Inquisição, em aposentos do Fiscal da Inquisição, “cômodos e abertos” (nada de aprisionamento em masmorras, “a pão e água”, como diz uma das len­das).

Foi submetido a quatro interrogatórios:

– No primeiro negou que houvesse defendido o sistema heliocêntrico em seu livro.

– No segundo declarou que, relendo o livro, reparara que em al­guns trechos o leitor podia realmente pensar que ele defendia tal siste­ma.

– No terceiro desculpou-se por desobedecer à proibição de 1616, afirmando que a advertência tinha sido verbal e que não se recordava de uma ordem para ele em particular.

– No quarto e último interrogatório (em 21/06/1633), quando lhe perguntaram solenemente se defendia o sistema copernicano, respon­deu negativamente.

No dia seguinte, em Decreto do Santo Ofício, é publicada a senten­ça, na qual consta: “… é absolvido da suspeição de heresia, desde que abjure, maldiga e deteste ditos erros e heresias…”. Galileu ouviu de pé e com a cabeça descoberta a leitura de sua condenação (três anos de prisão; recitação semanal dos sete salmos penitenciais, por três anos). Depois, de joelhos e com uma mão sobre os Evangelhos, assinou um ato de abjuração, no qual declarava que era “justamente suspeito de here­sia”.

Nesta ocasião, Galileu teria exclamado, batendo com o pé no chão: “E pure si muove” (e todavia se move). Lenda inverossímil, dadas as circunstâncias (estava de joelhos). É uma fantasia que apareceu pela primeira vez em 1757 (mais de um século depois), em obra de Baretti.

Além das penas pessoais, também foi proibido o livro de Galileu.

No dia seguinte, a sentença é comutada pelo Papa. Galileu vai viver no palácio do Embaixador de Florença e depois passa para a casa do Arcebispo Piccolomini, seu discípulo e admirador, em uma espécie de prisão domiciliar. Foi-lhe permitido voltar a Florença em 10/12/1633, cin­co meses e oito dias depois da condenação.

Como se vê, nada de condenação por heresia, torturas, fogueira, etc. É verdade que durante o processo, em virtude de suas evasivas, foi ameaçado de tortura, de acordo com os trâmites processuais. Por outra, a tortura nunca era infligida a pessoas idosas ou enfermas. Galileu esta­ria isento por ambas as condições.

Embora reconheçamos que o segundo processo teve, como gravame, a vaidade e a insinceridade de Galileu, devemos todavia la­mentar profundamente a primeira condenação de 1616 como inquietante erro judicial, e como abuso de poder diretamente catastrófico em suas conseqüências (proibição das obras de Copérnico).

Em 1637 fica cego. Em 1638 publica o livro “Diálogo das duas no­vas ciências”, que são a Resistência dos Materiais e a Mecânica Racio­nal, básicas para vários ramos da engenharia.

Morre em 08/01/1642, assistido por um sacerdote, como bom cató­lico.

Seria para desejar que os críticos contemporâneos conhecessem melhor os temas que eles criticam, a fim de não cometerem injustiças em nome da justiça.

À guisa de complemento, convém notar que, aos 31/10/1992, o Santo Padre João Paulo II reconheceu o erro dos teólogos do século XVII. A condenação de Galileu por parte do Santo Ofício não afeta a infalibilidade do magistério da Igreja, pois esta só se exerce em matéria de fé e de Moral; o assunto abordado no debate entre Galileu e os teólo­gos era de ciências naturais,… ciências que, segundo a mentalidade do século XVII, deveriam aprender da S. Escritura a concepção geocêntrica. Disse então o Papa:

“A partir do século das Luzes até os nossos dias, o caso Galileu constituiu uma espécie de mito, no qual a imagem que se tinha formado dos eventos estava bem longe da realidade… Uma trágica incompreensão recíproca foi interpretada como o reflexo da oposição entre ciência e fé. Os esclarecimentos fornecidos pelos recentes estudos históricos permi­tem-nos afirmar que este doloroso mal-entendido já pertence ao passa­do”.

A propósito ver PR 371/1993, pp. 160-170.

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NOTAS:

[1] Equinócio é a época do ano (ocorrente de seis em seis meses) em que o Sol, no seu aparente movimento sobre a eclíptica, corta o quadro celeste; nessa ocasião (21 de março e 23 de setembro) o dia e a noite têm a mesma duração. – Acontece, porém, que o movimento do equinócio vai sofrendo um lento recuo de 50″, 26 por ano: isto se chama “a precessão dos equinócios”, em conseqüência da qual o mo­mento do equinócio vai sendo lentamente antecipado.

[2] Reproduziremos, a seguir, as páginas 118-124 de PR 382/1994, da autoria do Prof. Dr. Joaquim Blessmann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre e Doutor em Ciências pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), Membro da Aca­demia Nacional de Engenharia do Brasil, Membro correspondente da congênere Academia da Argentina.

 

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