(Revista Pergunte e Responderemos, PR 030/1960)
«Se Deus por definição é eterno, ou seja, alheio as categorias de ‘antes’ e ‘depois’, como se pode dizer que tenha criado, em atos sucessivos, o mundo e tudo que nele existe?
Pelo mesmo motivo, pergunta-se como pode Deus ter falado a Adão, isto é, expresso sucessivamente seus pensamentos».
As questões acima se referem às relações entre eternidade e tempo. Como se compreende, o assunto, embora muito belo, é árduo e não pode ser devidamente explanado sem certa purificação prévia de conceitos.
É esta, portanto, que, antes do mais, devemos aqui realizar.
A imaginação leva facilmente a conceber a eternidade como uma grande linha que recobre e ultrapassa, de ambos os lados, uma linha menor, a qual seria o tempo. Com outras palavras: espontaneamente se concebe a eternidade à guisa de um período de tempo infinitamente prolongado tanto na sua parte anterior como na sua parte posterior. — Tal concepção é evidentemente falsa: a eternidade não conhece desenrolar nem divisão de fases, mas é, conforme a definição clássica «a posse perfeita e simultânea de uma vida interminável»; é a vida, por assim dizer, possuída e vivida toda de uma vez; é um instante absoluto, cujas riquezas estão todas simultaneamente presentes. O tempo, ao contrário, mesmo que não tivesse começo nem fim, seria sempre sucessão; se alguém imaginasse um futuro de bilhões de anos, e multiplicasse esses bilhões por outros tantos bilhões, ainda ficaria na linha do tempo que se desenrola; não teria passado para o plano da eternidade; não há mesmo transição do tempo para a eternidade, como não a há do finito para o infinito. O tempo indefinidamente prolongado seria o cúmulo da instabilidade, ao passo que a eternidade é presença e estabilidade por excelência.
Pode-se, de certo modo, ilustrar o que seja a eternidade, mencionando o que se dá com almas santas ou dotadas de união mais ou menos contínua com Deus: para elas, a vida não se esfacela em horas de oração, de trabalho, de repouso…, mas os períodos de trabalho ainda são períodos de oração; tais almas pairam de certa maneira acima da variedade e da fugacidade do tempo, justamente por viverem muito unidas ao Eterno ou a Deus.
Pode-se observar também que Mozart, conforme dizem, sabia ouvir uma peça musical toda de uma só vez, e não sucessivamente, pois a apreendia por inteiro contida nas leis de ritmo que a regiam.
Estas observações são suficientes para que possamos entrar nos temas propostos pelo cabeçalho deste artigo. Distinguiremos o que se refere à ação criadora de Deus, do que diz respeito à sua locução ou às suas comunicações aos homens.
1. Criação sucessiva e eternidade
Deus por definição é eterno. Isto significa, de acordo com o que dissemos, que Ele possui uma vida que não conhece acréscimo nem decréscimo, vida, portanto, que é perfeita. Em Deus, nada começa, mas um só ato coincide com toda a atividade divina…, coincide também com a essência de Deus, pois esse ato não sobrevém, não é acidental, mas é tão originário e necessário quanto a essência divina ou o próprio Deus.
Esse ato, considerado formalmente ou em si mesmo, é uno, pois é infinitamente simples;
considerado, porém, virtualmente ou em sua capacidade de produzir efeito, é múltiplo, pois pode dar existência às mais variadas criaturas; é infinitamente poderoso.
Ora por esse único ato Deus quis que o mundo fosse feito, e feito da maneira exata como ele se tem apresentado no decorrer da história, ou seja, com a sucessão de criaturas (inanimadas e animadas) que têm aparecido e desaparecido no universo. Em outros termos: Deus desde toda a eternidade quis que tais e tais efeitos se vão produzindo no tempo; num ato único e eterno o Todo-Poderoso abraçou a longa série de efeitos que se vão sucedendo através dos séculos. Em linguagem metafórica dir-se-ia: o «fiat» produtor das criaturas foi proferido de maneira perfeita desde toda a eternidade; foi proferido, porém, em vista de tal momento da história,. . . para que tal ou tal criatura começasse a existir em tal época.
Por isto se deve dizer que a ação criadora considerada em si ou em Deus é eterna; considerada, porém, na produção de seus efeitos, é temporal.
É importante acentuar que, cada vez que um efeito de Deus se produz no tempo, algo de novo se dá, não, porém, em Deus, mas fora de Deus, no conjunto das criaturas; a produção desses efeitos temporais não implica alguma mudança real em Deus. Tenha-se em vista uma coluna de pedra à direita da qual esteja colocado um observador; caso tal homem se transfira para o outro lado da coluna, esta passa a ser dita «a coluna da direita» em vez de ser «da esquerda», sem que contudo a coluna tenha sofrido alguma alteração em si mesma. A mudança acarretada para a coluna, no caso, é apenas mudança extrínseca ou de nome. Assim também, depois que as criaturas intencionadas desde toda a eternidade começam a existir no tempo, Deus adquire novo nome ou novo título — o título de Criador —, que em absoluto não supõe mudança real no Altíssimo, pois toda a perfeição produtora das criaturas já existia em Deus desde todo o sempre.
A compreensão de tais idéias será facilitada mediante a observação seguinte: quanto mais uma causa é perfeita, tanto menos se modifica ao agir.
Sim. No grau ínfimo da causalidade, acham-se os instrumentos materiais; ora estes precisam de ser movidos por outra causa e vão-se gastando mais ou menos rapidamente, à medida que produzem seus efeitos.
Num plano superior, encontra-se o homem, que produz principalmente por seu espírito e sua inteligência. Imagine-se um professor; quanto mais ampla e profunda é a sua ciência, tanto menos ele se abala e se consome para ensinar.
No plano supremo de ação está Deus: na base dos análogos citados, segue-se que, a causalidade divina sendo universal e sumamente perfeita, ela não deve acarretar mudança em Deus; Este pode tudo, porque é infinitamente perfeito, e pode tudo sem se modificar, porque é infinitamente simples.
Pouco se ganharia em dissertar mais longamente sobre o assunto, pois envolve a árdua questão das relações do finito e do Infinito, dos quais um dos termos — o Infinito — escapa totalmente à nossa apreensão direta. Afirmem-se, portanto, os princípios acima expostos, e guarde-se sobriedade quanto à explicação de pormenores.
No tocante à narrativa bíblica que parece apresentar o mundo criado em seis dias( Gên 1,1-2,4a), sabe-se que o texto sagrado de modo nenhum visa descrever a maneira como se originou o universo. Cf. «P. R.» 26/1960. qu. 4.