(Revista Pergunte e Responderemos, PR 428/1998
Em síntese: Há quem julgue que o psiquismo humano provém do psiquismo do macaco, de modo que o ser humano seria, corpo e alma, produto da evolução. O artigo que se segue, analisa as expressões do psiquismo dos antropóides (chimpanzé, orangotango e gorila) e conclui que, no animal infra-humano, existem instintos numerosos e certeiros (o que se chama “inteligência prática”), não, porém, inteligência abstrativa, capaz de formar conceitos, juízos e raciocínios. Além disto, são mencionados os pretensos casos de linguagem do animal: verifica-se que este é incapaz de articular vocábulos; pode, sim, aprender a linguagem dos gestos, que ele repete, imitando o que lhe é sugerido, sem que conheça o valor dos símbolos e a sua sintaxe.
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O estudo da evolução, principalmente no tocante ao homem, interessa-se mais pelas transformações físicas, corpóreas, do que pelas mudanças psíquicas.
Isto se deve ao fato de que a paleontologia, ao menos nos seus períodos mais antigos, apresenta quase exclusivamente ossos; é de notar também que muitos paleontólogos ignoram o psiquismo em virtude dos seus pressupostos materialistas. – O presente artigo levará em conta o psiquismo dos animais próximos do homem e o do homem, procurando apontar as diferenças essenciais que distinguem um do outro.
1. Tendências e Impulsos nos Animais Irracionais
Uma das primeiras observações a fazer é que o comportamento dos animais infra-humanos é profundamente movido por instintos, ao passo que o do homem é pouco instintivo e muito mais livre e variegado. – Em que consiste propriamente o instinto?
1.1. Instinto
Em todo instinto distinguem-se fundo e forma.
O fundo é a inclinação, o impulso em direção de alguma coisa.
A forma é o modo ou o conjunto de atos que levam à consecução do objetivo almejado. Por exemplo, no caso da construção de um ninho, o fundo do instinto é o impulso para o construir. A forma são as múltiplas modalidades de confecção de um ninho de ave: o ninho de uma andorinha é diferente do de um rouxinol e de um pardal.
No instinto tanto o fundo quanto a forma são congênitos e hereditários; isto significa que, sem aprendizagem, todos os animais da mesma espécie atingem determinado objetivo mediante as mesmas modalidades. Pois bem; os instintos comandam boa parte da atividade dos animais infra-humanos.
1.2. Tendências
No homem há alguns instintos, como o de autoconservação ou autodefesa contra uma agressão. Todavia, ao lado de poucos instintos, há um leque de atividades livres, que dependem de aprendizagem. Esta se faz por raciocínio e empenho da força de vontade.
A criança que cresça no seio de uma família humana, aprende o comportamento humano. Mas, se educada entre animais infra-humanos, aprende a agir como estes. É o que atestam os casos registrados por alguns pesquisadores: L. Malson, por exemplo refere 52 exemplos, não todos suficientemente documentados; ver I Ragazzi Selvaggi, Milano 1971. Eis, porém, um exemplo fidedigno. porque descrito por quem descobriu e acompanhou durante anos as crianças-lobo.
Com efeito; em 1921, em Midnapore (índia), o pastor protestante Singh encontrou na cova de alguns lobos duas crianças, de idade aproximada de dois e oito anos respectivamente, e deu-lhes os nomes de Amalá e Kamalá. Retiradas da cova, as duas crianças se comportavam como lobos; caminhavam a quatro patas; deixavam pender a língua entre os lábios abertos; imitavam a respiração ofegante dos lobos; abriam a boca desmedidamente como se fosse uma goela. Fugiam da luz; só saiam de noite, urrando repetidamente; bebiam lambendo com a língua; comiam como os lobos. Eram agressivas em relação aos homens, mas carinhosas para com os cãozinhos. Foram as duas meninas levadas para um Orfanato e acompanhadas pela esposa do pastor Singh. Amalá viveu apenas um ano; morreu de nefrite. Após dois meses de educação humana, aprendera a dizer “água”; após três meses, adquiriu hábitos humanos. Kamalá, que era mais velha, custou mais a se adaptar ao ambiente humano; morreu também de nefrite, com 16 anos de idade; conseguiu aprender 50 vocábulos; exprimia-se livremente e tinha um comportamento humano.
Outro caso interessante é o do filho, chamado Sin, da Sra. Siruté Galdikas. Educado junto à mãe até os nove meses de idade, mostrou-se em tudo igual aos demais meninos. Aos nove meses foi posto em companhia de uma fêmea de orangotango recém-nascida. Ora Sin dispôs a imitar o animal: trepava nas árvores, caminhava de quatro, entendia-se com o orangotango mediante os gestos habituais de tal espécie. Aos três anos de idade, Sin foi colocado em companhia de outros meninos; então deixou de imitar o orangotango para conduzir-se como os meninos.
Pergunta-se, pois: por que no homem há tal nobreza de comportamentos inatos? Seria isto uma nota de inferioridade ou uma característica de superioridade em relação aos infra-humanos? – Em resposta, afirma-se que é um traço de superioridade, porque é condição para que haja aquela liberdade de arbítrio que vem a ser a grandeza e dignidade do ser humano. Se este fosse programado por sua própria natureza, não poderia escolher; talvez tivesse boa conduta, mas não meritória, porque faltaria a liberdade de escolha.
1.3. Instintos nos antropóides
Detenhamo-nos agora sobre os instintos dos antropóides (gorila, chimpanzé, orangotango).
Os antropóides vivem em grupos. Estão sujeitos aos instintos de territorialidade e de dominação, como os outros animais; todavia procedem diferentemente.
Delimitam o seu território com sinais peculiares. Quando dois bandos rivais se encontram em regiões limítrofes, há manifestações ruidosas, mas sem agressividade.
O domínio é adquirido de diversas maneiras, geralmente mediante exibições de força e habilidade: saltos de acrobacia, quebra de galhos, lances de pedra.
O deslocamento dos bandos, o seu modo de caminhar, os seus gestos e sinais comunicativos são bem definidos e espontâneos. O mesmo se diga das etapas do parto, que são percorridas naturalmente por um instinto certeiro.
Alguns fatos singulares confirmam esta verificação.
O Prof. K. N. Schneider observou dois pequenos chimpanzés: um criado junto à mãe dele, e o outro separado da mãe. Poucas diferenças apresentavam em seu comportamento. Cf. K. N. Schneider, Aus der Jugendentwicklung einer künstlich aufgezogenen Scimpansin,Zeitschrift für Tierpsychologie 7 (1950), pp. 485-558. em
O filhote de gorila, Goka, nasceu e foi criado em gaiola; aos onze meses de idade, quando a noite se aproximava, recolhia galhos e folhagens para fazer seu ninho, como faziam os gorilas em liberdade. Isto quer dizer que o aproximar-se da noite suscitava no animal a necessidade inata de se proteger e defender. Pode até acontecer que tais animais realizem, mesmo sem ter galhos e folhagens, todas as ações necessárias para confeccionar um ninho: recolhem e arrumam os ramos que não existem senão no seu psiquismo.
Também a linguagem dos animais é inata. Os animais superiores emitem sons diversos segundo as circunstâncias. Aproximando-se uma águia, lançam um grito que provoca a fuga acelerada de todo o bando. Aproximando-se um leopardo, o sinal é outro e faz que os seus semelhantes procurem refúgio nas cumeadas das árvores. A aproximação de uma serpente é assinalada por um brado correspondente.
Quando um chimpanzé encontra um alimento bom, emite sons que parecem latidos. Se é atacado, grita forte. Se está em situação alarmante, brada sinistramente. Tais emissões de voz são variegadas, mas inatas, instintivas, definidas pela natureza uma vez por todas. Cf. J. Goldberg, L’animale e I’uomo. Firenze 1973, p. 133.
1.4. A “Inteligência” dos Animais Superiores
Entendemos por “inteligência” a faculdade de conceber idéias ou noções abstratas (como justiça, amor, bondade…), formular juízos e desenvolver raciocínios ou silogismos. Assim entendida, a inteligência é uma faculdade espiritual própria do ser humano. Nos últimos tempos tem-se usado a palavra “inteligência” no sentido de faculdade de resolver problemas singelos, de modo intuitivo, como seriam o de adaptar-se a novas circunstâncias, o de repetir experiências úteis, o de preparar instrumentos primitivos. É isto que se chama “estimativa”, ou “inteligência prática, espaço-temporal, discernimento”.
Ora verificam os pesquisadores que os chimpanzés e animais superiores possuem a estimativa ou inteligência prática. Eis as experiências respectivas:
1.4.1. Fabricação de instrumentos primitivos
A Profª. Jane Van Lawick-Goodall passou diversos anos na floresta, observando o comportamento dos chimpanzés. Verificou, entre outras coisas, o seguinte;
Esses animais podem servir-se de canas de bambu, modificando-as adequadamente para introduzi-las nas brechas de ninhos de termitas, e assim capturar a estes. Sabem confeccionar uma espécie de esponja mastigando folhas vegetais, a fim de colher maior quantidade de água nas cavidades das árvores. Um chimpanzé chegou a fazer uma esponja desse tipo para absorver os últimos resquícios do cérebro no interior de um crânio de babuíno. Também foram vistos chimpanzés a usar “toalhas” confeccionadas com folhas para limpar seu corpo ou pensar suas feridas. Às vezes usam bastões, à guisa de alavanca, para abrir mais o ingresso dos ninhos subterrâneos de certos insetos. Também se observou, na Guiana Francesa, que um chimpanzé utilizou normalmente um tronco de árvore oco, caído no solo como um tambor. Uma fêmea de chimpanzé servia-se de gravetos para limpar os dentes de outros indivíduos; arrancava as folhas ao pequeno ramo, para ficar só com o que lhe interessava.
Os chimpanzés se alimentam de frutas e pequenos animais, mostrando predileção pelo cérebro. A fim de o degustar, alargam com paciência a abertura occipital onde a coluna vertebral se junta ao crânio, roem com os dentes os fragmentos de ossos; uma vez alargado o buraco, sugam o cérebro.
Praticam a caça, geralmente procurando animais que não pesem mais de dez quilos. Observam as etapas para perseguir a presa, capturá-la, matá-la, reparti-la… Cada qual dos caçadores recebe uma parte dos despojos, sem que haja disputa entre eles.
Em todos estes casos, ocorre a inteligência prática, espaço-temporal, não a inteligência abstrativa, que é própria do homem, capaz de ver com a mente o que não se vê com os olhos. A confirmação desta tese foi obtida mediante tentativas de ensinar aos chimpanzés a linguagem humana, expressão da inteligência abstrativa.
1.5. Os Chimpanzés e a Linguagem dos Mudos
Nos últimos decênios os psicólogos norte-americanos se esforçaram por ensinar a linguagem humana aos chimpanzés.
Já que estes não conseguem articular vocábulos, foi-lhes transmitida a linguagem dos mudos ou dos gestos.
À fêmea Washoe dedicaram-se Allen e Beatrice Gardner, propondo-lhe o Ameslan (American Sign Language). Na verdade, Washoe aprendeu certo número de gestos, associados entre si, mediante os quais se comunicava com os homens e com outros macacos.
Os resultados assim obtidos moveram o casal Premack a adotar um sistema de comunicação mais sofisticado: associaram placas de plástico de cores e formas diferentes a determinados atos e objetos. Conseguiram êxito, especialmente com a fêmea Sarah de chimpanzé: o animal parecia entender nomes, pronomes, advérbios, conjunções…
Duan Rumbaugh treinou a fêmea Lana a digitar as teclas de um computador, sobre as quais estavam gravados sinais associados a atos e objetos diversos. Lana chegou a completar frases. Por exemplo, quando o pesquisador escrevia com as teclas convencionais: “Please Machine give…” o animal apertava a tecla que correspondia a apple (maçã).
A fêmea de gorila Koko, adestrada por Francis Patterson, seguindo o método de Gardner, chegou a lançar insultos e dizer mentiras.
Estes dados persuadiram o Prof. H. S. Terrace de que os antropóides podem aprender a linguagem humana. Tomou então um pequeno chimpanzé de duas semanas, dando-lhe o nome de Nim Chimpsky em alusão ao famoso filólogo Noam Chimpsky, que afirmava ser a linguagem privilégio do homem. Aplicou ao animal os gestos do ASL, transmitidos com paciência e habilidade. Os observadores de Nim tomavam nota precisa dos gestos e da cronologia das respostas de Nim; procuraram colher o máximo de informações sobre o animal, recorrendo até a uma câmara de televisão oculta aos olhos de Nim. Verificaram que o chimpanzé aprendeu 125 gestos durante 44 meses de treinamento até os quatro anos de idade. A princípio aprendeu gestos isolados; depois foi associando entre si dois, três e muitos deles. Ao cabo de quatro anos, os pesquisadores haviam registrado 20.000 expressões de Nim consistentes em dois ou três gestos. Terrace julgava que o animal conseguia falar em frases, quando teve que mudar de opinião.
Com efeito. O macaco Nim foi entregue a um Instituto de Oklahoma e os pesquisadores se puseram a examinar atentamente os filmes e as gravações realizadas. Terrace ficou impressionado pelo fato de que em quatro anos Nim não demonstrou progresso algum em suas expressões; ampliou, sim, o número de sinais aprendidos, mas não se verificou nenhum indício de aplicação do significado dos mesmos. – As crianças, quando alongam suas frases, alongam também o seu conteúdo e significado; dizem, por exemplo, “cadeira”, depois “tomar cadeira”, depois “tomar cadeira papai”. Ao contrário, as expressões de Nim com três gestos equivaliam às de dois gestos, por exemplo, “comer Nim”, “comer Nim comer”; “dar laranja me dar laranja comer laranja me comer laranja dar me comer laranja dar me vocês”. Em dezenove meses Nim não fez progresso de conteúdo. O contrário se dá com crianças normais e também com crianças mudas, que falam gesticulando.
Também se notou que Nim produzia muitos sinais supérfluos ou despropositados, ao passo que as crianças vão mais e mais falando propositadamente. Mais: o chimpanzé Nim gesticulava, não como se estivesse dialogando, mas como quem está só; 71 % dos seus gestos eram produzidos de modo a acompanhar os do treinador; as expressões mais significativas eram sugeridas por este; a criança, ao contrário, responde dialogando com a mãe como quem conversa.
Ninguém teria percebido tais pormenores se não tivesse havido os filmes que permitiram observar lentamente os gestos do animal; escapam a quem contempla o animal em suas atitudes espontâneas.
O Prof. Terrace quis examinar também a câmara lenta, os filmes referentes ao aprendizado lingüístico dos antropóides Washoe, Ally e Koko. Nos dois primeiros casos, pôde verificar que Beatrice Gardner realizava os gestos antes de Washoe; Ally imitava sinais efetuados anteriormente pelo treinador em 90% dos casos; Koko fazia o mesmo em 100% das suas expressões.
Em suma, as pesquisas apuradas evidenciaram que os chimpanzés não conhecem os símbolos nem a sintaxe dos sinais que emitem mecanicamente, imitando o que vêem ou o que é sugerido pelo operador.
Quanto à produção de fogo, pergunta-se: está dentro das capacidades da inteligência prática do antropóide ou requer inteligência humana? – O Prof. S. R. James estudou atentamente os lugares em que se afirmava ter havido fogo aceso intencionalmente, e verificou que todos os casos são assaz duvidosos; com efeito, ou se tratava de cinzas vulcânicas ou de incêndio provocado por fatores naturais como raios, ou ainda eram cinzas aparentes, que, analisadas quimicamente, foram tidas como manganês. Há, porém, quem julgue que mesmo a produção de fogo pode ser efeito da inteligência prática, não havendo necessidade de recorrer à inteligência abstrativa ou humana.
2. A Identidade Intelectual do Homem
As experiências dão a ver que os animais, mesmo os mais evoluídos, são dotados de vários e complexos instintos, mas não tem inteligência abstrativa, capaz de formular julgamentos e raciocínios, distinguindo do acidental o essencial em cada objeto. Em vez de instintos propriamente ditos (com seu fundo e sua forma), o homem possui uma vontade livre, capaz de escolher, entre diversos objetos que a inteligência lhe apresenta, aquele que melhor lhe pareça. Por conseguinte, não há transição ou evolução do psiquismo dos animais ao psiquismo do homem. O princípio vital ou psiquismo do animal não abstrai do concreto, material, singular ou não concebe noções abstratas, universais; por isto é material (é eduzido da materia quando o animal é gerado e reabsorvido pela matéria quando o animal perece). Ao contrário, o princípio vital ou a psique do homem é imaterial ou espiritual, porque abstrai do concreto, singular ou abstrai da matéria e formula conceitos universais; percebe mentalmente a essência oculta debaixo dos acidentes.
Por conseguinte, a evolução pode ser admitida para o corpo do homem, não para alma do mesmo. E, admitida a evolução, não se pode dizer que o corpo humano provém dos antropóides (gorila, chimpanzé, orangotango) hoje existentes; estes são demasiado especializados ou evoluídos para poder evoluir ulteriormente. O ser humano provém de um tronco mais rude, dito “primata”, que se foi aperfeiçoando corporalmente até poder tornar-se sede da alma intelectiva, que é espiritual e que, por isto, é criada diretamente por Deus para cada indivíduo humano.
Não há meio-termo entre o antropóide (ou macaco) e o ser humano. Pois o que define um indivíduo vivente, não é a sua ossada, mas o seu princípio vital com a sua expressão psíquica. Ora, o princípio vital é indivisível: ou é 100% de macaco ou 100% de homem. Pode haver autênticos seres humanos com ossada muito rude, como também autênticos macacos com gestos aparentemente humanos.
Este artigo muito deve à obra de Vittorio Marcozzi, Alia Ricerca dei Nostri Predecessori. Edizioni Paoline, Milano 1992.