(Revista Pergunte e Responderemos, PR 136/1971)
Em síntese: A Igreja sempre ensinou que a confissão auricular sacramental é estritamente obrigatória para a remissão dos pecados graves ou mortais. Quanto aos pecados veniais, é doutrina clássica que podem ser expiados mediante atos de contrição e de amor a Deus e ao próximo. Tais verdades são ensinadas ainda hoje a toda criança no catecismo.
No decorrer dos séculos, introduziu-se a chamada “confissão de devoção”, ou seja, a confissão de pecados veniais. Embora estes não constituam matéria obrigatória do sacramento, confessá-los é praxe salutar, que a autoridade dos doutores e Papas da Igreja tem recomendado.
Hoje em dia, porém, nota-se que as “confissões de devoção” dificultam, por vezes, o ministério sacerdotal e não produzem os frutos desejados pelos fiéis. Há quem faça da confissão de devoção a ocasião de um desabafo ou também de uma direção espiritual – o que é, sem dúvida, salutar, mas nem sempre oportuno quando um só sacerdote deve atender a todo o ministério paroquial.
Eis por que se pode crer que a S. Igreja venha a lembrar aos seus fiéis que a confissão sacramental só é obrigatória para os casos de pecado mortal. Com isto não ficará abolida a confissão de devoção; muito menos será extinta a própria confissão auricular; esta, tendo sido instituída pelo próprio Cristo (cf. Jo 20,21-23), não pode ser supressa pela Igreja.
Quanto às absolvições dadas coletivamente, elas não constituem o sacramento da Penitencia se não são acompanhadas de confissão específica dos pecados.
Vê-se, pois, que os rumores sabre o assunto tem sido pouco fundamentados e mal formulados, provocando equívocos. Tranqüilizem-se os fiéis: a Igreja, longe de pretender favorecer o laxismo, deseja apenas a frequentação mais consciente e frutuosa do sacramento da Confissão.
Resposta: No inicio de 1971 a imprensa divulgou manchetes como: «Papa pede fim da confissão individual» ou «Igreja pensa em abolir a confissão obrigatória»; esta seria instituição do século XVI… Sob tais títulos foram publicadas notícias assaz confusas, que vêm causando surpresa ou perplexidade em muitos leitores. Há quem julgue que a Igreja se contradiz ou que ludibriou seus fiéis ou que já não insiste na procura da santidade ou das virtudes por parte dos cristãos.
A guisa de espécimen da angústia suscitada pelas notícias confusas da imprensa, seja citada a seguinte carta enviada a PR:
“Escrevi-lhe ontem sobre uma palavra do Papa segundo a qual só os pecados mortais devem ser confessados. Não creio muito no que dizem Rádios e Tevês, mas acabo de ouvir, atribuída a Paulo VI, a declaração de que basta que os homens se confessem a Deus. Como se justificará o que tem sido feito até agora? Não será isso uma confissão tácita de que a confissão auricular foi infeliz invenção dos homens da Igreja, que destarte estavam até agora zombando da credulidade fácil de todos nós?…
Creio nas vantagens de uma direção espiritual, desde que bem feita. Poderá levar uma alma aos cimos da vida unitiva. E já se disse que uma alma que se levanta, levanta consigo o mundo. A recíproca me parece verdadeira: uma alma que se degrada, degrada consigo o mundo. Fiquei desolado quando ouvi a irradiação de que lhe estou falando. Oxalá não se confirme!… Se tiver notícia que ponha a confissão em seus devidos termos, queira ter a bondade de notificar-me, o que antecipadamente agradeço”.
A título de curiosidade, publicamos aqui também uma notícia editada pelo «Correio da Manhã» do Rio de Janeiro aos 11/1/71, com o título «Vaticano nega que mudará a confissão»:
“Frederico Alessandrini, porta-voz do Vaticano, desmentiu informações veiculadas por uma agencia de notícias segundo as quais a Santa Sé teria enviado um documento aos bispos de todo o mundo propondo modificações do sacramento da confissão…
O porta-voz disse que consultou a Congregação para os Sacramentos e verificou que este organismo não tinha feito proposta análoga aos bispos. Acrescentou, porém, que a Congregação estuda possíveis modificações a serem introduzidas na dispensa dos sacramentos”.
A fim de dissipar as dúvidas a tal propósito, exporemos abaixo os termos exatos da questão que se põe atualmente na Igreja sobre a confissão sacramental; ao que se seguirão, em outro artigo, dados relativos à história do sacramento da Penitência.
Confissão: sim ou não?
Procedamos por etapas:
1) É de conhecimento geral que a Igreja está reformando o seu Código de Direito Canônico; procura rever suas leis, a fim de cancelar ou alterar as que estejam obsoletas e introduzir outros cânones, que levem em conta a realidade de nossos tempos. Tal tarefa é não somente legítima, mas também necessária: as leis têm por função orientar a vida; ora esta se desenvolve em circunstâncias que de época em época mudam, exigindo revisão das normas dependentes de épocas ultrapassadas. Caso não se dê tal revisão de leis, estas já não preenchem a sua finalidade.
2) Entre as leis da Igreja, figuram as que se referem ao sacramento da Penitência.
O cânon 906 prescreve que os fiéis de ambos os sexos, a partir da idade da razão, façam ao menos uma confissão anual. Tal é, aliás, o teor do segundo mandamento da Igreja ensinado pelo Catecismo da Doutrina Cristã: «Confessar-se ao menos uma vez por ano».
3) Ao ensinar este mandamento, o Catecismo acrescenta que, se alguém não comete pecado grave ou mortal no decorrer de um ano inteiro, não tem obrigação de se confessar, pois a matéria obrigatória do sacramento da Penitência é o pecado mortal. Este ensinamento corresponde aos cânones 901 e 902, segundo os quais a matéria necessária do sacramento da Confissão são os pecados mortais cometidos após o Batismo[1]; as faltas leves ou veniais, assim como as faltas mortais já uma vez absolvidas, não são matéria obrigatória do sacramento, embora sejam matéria suficiente[2].
Para apagar os pecados veniais, a criança aprende no Catecismo (e os adultos católicos bem o sabem) que há outros meios além da confissão sacramental: rezar um ato de contrição profunda e sincera, exercer a caridade para com o próximo, abster-se de algum prazer (guloseima, divertimento… ) , a fim de excitar o ódio ao pecado e o amor a Deus. Estes atos, provocando um amor mais ardente a Deus, apagam a infidelidade a esse amor (infidelidade que é o pecado venial, no caso). Tal doutrina é clássica na Igreja, datando dos primeiros séculos do Cristianismo. Tenham-se em vista, por exemplo, as palavras de S. Cesário, bispo de Arles na Gália († 542):
“As faltas veniais deverão ser resgatadas por orações contínuas e freqüentes, por jejuns e esmolas copiosas, pela concessão do perdão aos inimigos… Os pecados veniais que não forem expiados por tais meios, serão purificados pelo fogo do purgatório do qual fala o Apóstolo: ‘As obras de cada um serão submetidas ao fogo; aquele cujas obras arderem, perderá sua recompensa’ (1 Cor 3,15). Neste mundo ou nós nos mortificamos voluntariamente pela penitência ou somos experimentados pelas tribulações que Deus nos envia ou que Ele tolera. Se por essas provações dermos graças a Deus, seremos libertados dos pecados veniais; as provações ocorrem, por exemplo, quando um marido, uma esposa, uma criança morre, ou nos é retirada uma parte de nossos bens, aos quais estejamos demasiado apegados… Se, ao contrário, não dermos graças a Deus em nossas tribulações e não resgatarmos nossos pecados veniais pelas boas obras, ficaremos no purgatório até que nossas pequenas falhas sejam queimadas como lenho seco, feno ou palha… [3]
Para vos instruir mais profundamente, apresento-vos as obras mediante as quais as faltas veniais são resgatadas: visitar os doentes e os prisioneiros, restabelecer a concórdia entre os inimigos, jejuar nas épocas determinadas pela Igreja, lavar os pés aos hóspedes e peregrinos, vigiar freqüentemente em oração noturna, distribuir esmola aos pobres, perdoar aos nossos inimigos cada vez que o peçam. Por estas obras e outras semelhantes, podemos diariamente resgatar os pecados de menos gravidade.
Para os pecados mortais, esses remédios não bastam… O pecador deverá separar-se da comunhão da Igreja, permanecer no luto e na aflição e fazer penitência pública” (sermão 179, n° 4. 6-7, ed. Morin II pp. 684-689).
Hoje em dia a maneira de se administrar o sacramento da Penitência já não é a do séc. VI, mas é importante verificar no texto acima a menção das duas formas de se obter a remissão dos pecados (segundo sejam leves ou graves).
4) A criança também aprende no Catecismo que não há obrigação estrita de se confessarem os fiéis antes de cada Comunhão eucarística. Alguém pode comungar todos os dias ou todos os domingos sem ter de se confessar de cada vez, desde que não haja cometido pecado grave. Faça então um ato de contrição sincera e vá comungar.
Tais pontos pertencem aos rudimentos da catequese cristã e correspondem à doutrina tradicional da Igreja.
5) Acontece, porém, que no decorrer dos tempos (mais precisamente: a partir dos séc. VI/VII se introduziu a praxe de se confessarem os fiéis mesmo sem terem pecados mortais, ou seja, acusando apenas faltas veniais. Tal costume se deve, em parte, aos monges irlandeses (S. Columba, S. Columbano e discípulos) que transmitiram ao povo cristão o costume de manifestar a consciência (com suas falhas e seus predicados) a um pai espiritual, a fim de receber dele a oportuna orientação (fora dos mosteiros, o papel do pai espiritual veio a ser exercido pelos sacerdotes em confissão sacramental).
A tal praxe se dá, por vezes, o nome de «confissão de devoção». Seguindo-a, muitos fiéis se acostumaram a freqüentar o sacramento da Penitência regularmente (uma vez por semana, de quinze em quinze dias, de mês em mês …) . A confissão de devoção foi elogiada pelo Papa Pio XII como algo de salutar e apto a suscitar copiosos frutos espirituais:
“Verdade é que há vários modos, todos muito louváveis,… de apagar as faltas; contudo, para que as almas se adiantem com ardor crescente no caminho da virtude, desejamos recomendar vivamente o piedoso uso, introduzido na Igreja sob o impulso do Espírito Santo, de recorrer à confissão freqüente. Esta aumenta na alma o verdadeiro conhecimento de si mesma, favorece a humildade cristã, tende a desarraigar os maus hábitos, combate a negligência espiritual e a tibieza, purifica a consciência, fortalece a vontade, presta-se à direção espiritual e, por efeito próprio do sacramento, aumenta a graça” (enc. “Mystici Corporis Christi”, datada de 1943).
Na verdade, a confissão efetuada com as devidas disposições de arrependimento e propósito é sempre um revigoramento da alma; confere a graça sacramental, mediante a qual o cristão mais eficazmente pode evitar o pecado e combater a concupiscência.
6) Todavia verifica-se que a confissão de devoção se torna, muitas vezes, algo de difícil ou quase impraticável: numerosas igrejas, em domingos, dias santos, primeiras sextas-feiras do mês, só dispõem de um sacerdote para atender a todo o ministério paroquial: celebração da S. Missa, confissões, batizados, aconselhamento… O padre que deseje ouvir cada um dos penitentes em particular, deve então renunciar à observância do horário paroquial.
7) Diante da situação exposta, nos últimos tempos havia quem pensasse que a Igreja acabaria por dispensar, em larga escala ou por completo, a confissão auricular, permitindo aos sacerdotes absolver os fiéis coletivamente a fim de que pudessem, sem ulterior condição, receber a S. Comunhão. Em favor desta praxe mais larga, podiam-se apontar indultos da Santa Sé válidos para casos de guerra e de missão: diante de perigo bélico ou em territórios raramente freqüentados por missionários, a S. Penitenciaria havia permitido a absolvição coletiva, ficando, porém, a obrigação de se confessarem os fiéis na primeira ocasião tranqüila (com efeito, a Igreja em seus indultos sempre incutiu a necessidade de se fazer posteriormente a confissão dos pecados já absolvidos coletivamente em caso de emergência). Não se poderia julgar que os casos de emergência ou os casos em que não se podem ouvir os fiéis um por um em confissão, se tornam cada vez mais freqüentes, se não habituais, em nossos dias? Em conseqüência – perguntava-se – não se deveria dispensar, no comum dos casos, a confissão auricular?
8) Não é, porém, segundo essa orientação que a S. Igreja tenciona prover à pastoral do sacramento da Penitência. Na verdade, não está em poder da Igreja abolir a obrigatoriedade habitual da confissão sacramental, pois esta não é de instituição eclesiástica, mas de preceito ou direito divino. Com efeito, na noite de Páscoa o Senhor apareceu aos discípulos, soprou-lhes na face e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo; àqueles a quem perdoardes os pecados, serão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, serão retidos» (Jo 20,22s). O Senhor concedeu, pois, a seus apóstolos a faculdade ele absolver ou não absolver em nome de Deus; ora o exercício desta faculdade supõe conhecimento de causa, o que não pode ser obtido senão mediante manifestação da consciência ou confissão dos pecados do penitente; ouvindo a este, o ministro pode avaliar-lhe as disposições e proferir o juízo correspondente em nome do Senhor. Eis por que se diz que a confissão dos pecados é de instituição divina e não pode ser supressa pela Igreja.
O que a Igreja pode fazer na presente contingência, é lembrar aos fiéis que a confissão só é obrigatória para os casos de pecado mortal, havendo outros e numerosos meios para se apagarem os pecados veniais. Conscientes disto, os fiéis sem escrúpulo poderão reduzir suas confissões de devoção, permitindo aos sacerdotes atender com mais vagar às pessoas e aos encargos que necessária e impreterivelmente precisam da atenção do sacerdote. Isto não quer dizer que a Igreja venha a abolir a confissão de devoção (os fiéis sempre terão legítimo direito a esta!), mas, sim, que Ela reavivará nos cristãos a consciência exata da doutrina concernente ao sacramento da Confissão.
A tradicional doutrina da Igreja sugere, entre outras coisas, a distinção entre confissão sacramental e direção espiritual. Esta consiste em propor ao cristão conselhos e diretrizes para que progrida nos caminhos da oração, vença as tentações, proceda cristãmente numa determinada fase de vida… É geralmente algo de minucioso e demorado; supõe a abordagem de temas que não pertencem ao essencial do sacramento da Penitência. Daí desejar-se que a direção espiritual seja exercida fora do sacramento da Penitência; diretor espiritual e confessor não devem necessariamente ser a mesma pessoa.
9) Não se sabe em que termos precisos a Igreja tenciona propor aos fiéis as idéias atrás ou outras semelhantes. Por ora, nenhuma determinação foi publicada. Julga-se que as instituições referentes ao assunto só serão editadas depois de consulta feita pela Santa Sé ao episcopado do mundo inteiro. Como quer que seja, é certo que as novas determinações não contradirão à clássica doutrina da Igreja sobre o sacramento da Confissão. Para a tranqüilidade dos fiéis, é necessário que estes saibam que a Igreja nada inova de maneira arbitrária ou incoerente, mas sempre desenvolvendo princípios contidos no Evangelho e no patrimônio da Tradição, ou seja, «tirando do seu tesouro dados novos e velhos» (Mt 13,52).
10) Do que foi dito até aqui se depreende que as «confissões comunitárias» nas quais não se faz a acusação específica dos pecados, não são o sacramento da Penitência; vêm a ser ritos ou paraliturgias penitenciais, que têm o grande valor de excitar os fiéis à contrição, dispondo-os assim a receber o perdão dos pecados veniais. Tais ritos talvez doravante se tornem mais e mais freqüentes – o que poderá ser útil aos fiéis, mas nunca tomarão o lugar da confissão auricular, sempre necessária para, a remissão dos pecados graves.
Estas considerações terão seu complemento no próximo artigo, em que se proporá um sumário da história do sacramento da Penitência.
____
NOTAS:
[1] Se alguém é batizado após o uso da razão ou em idade adulta, não está obrigado a confessar os pecados que haja cometido antes do Batismo.
[2] O que quer dizer: alguém que só tenha faltas leves ou faltas graves já absolvidas, pode pedir e receber o sacramento da Confissão, caso o deseje.
[3] A fé não ensina que haja fogo no purgatório. A metáfora do fogo é inspirada por 1 Cor 3,15. Cf. PR 8/1957, pp. 9-12.