Culto: o culto dos santos

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 348/1991)

Em síntese: O culto dos Santos, ponto nevrálgico no diálogo entre católicos e protestantes, é justificado pela Tradição cristã mais antiga, apoia­da aliás em fundamentos bíblicos pré-cristãos (cf. 2Mc 15,14). O Concílio de Trento o reafirmou, procurando, porém, coibir abusos e mal-entendidos instaurados na piedade católica. O Concílio do Vaticano II reiterou a dou­trina da Igreja, pondo em relevo os aspectos cristocêntrico e teocêntrico dessa prática de piedade.

Com efeito. A solidariedade existente entre os membros do povo de Deus não é extinta pela passagem da vida terrestre para a celeste; ao contrá­rio, o amor fraterno que anima os justos nesta vida, é liberto de escórias do pecado na outra vida; torna-se, pois, mais ardoroso e genuíno. Deus, que nos fez membros da mesma comunhão, proporciona aos Santos no céu o conhe­cimento de nossas necessidades para que eles possam interceder por nós, como intercederiam na terra. Essa intercessão quer-nos levar mais a fundo dentro do plano de Deus; é encaminhada para a glória de Deus e o louvor do Redentor; os Santos são totalmente relativos a Cristo; são obras-primas de Cristo, que nos levam, por suas preces e seus exemplos, a reconhecer me­lhor a grandeza da nossa Redenção.

Vê-se, pois, quanto é entranhada na teologia católica a devoção aos Santos. Não é obrigatória, mas facultativa; como quer que seja, decorre de lúcida compreensão do plano salvífico de Deus, principalmente no que diz respeito à Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus e Mãe dos homens (cf. Jo 19,25-27).

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Sabe-se que um dos pontos nevrálgicos no relacionamento entre cató­licos e protestantes é a veneração dos Santos, que inclui a prece dirigida aos mesmos e a estima das relíquias. Os discípulos de Lutero julgam haver nis­to graves desvios doutrinários, que eles atribuem à Tradição católica.

Visto que o assunto volta freqüentemente à baila, vamos dedicar-lhe as páginas seguintes.

1. A história da questão

O culto de veneração (não de adoração) dos Santos foi até o sécu­lo XVI prática tranqüila e óbvia entre os cristãos.

As raízes desta praxe estão já nas páginas do Antigo Testamento. – Com efeito; até o século II a.C. os judeus professavam a existência do cheol ou o entorpecimento da consciência dos defuntos relegados promiscuamente para um lugar subterrâneo dito cheol; aí estariam incapazes de receber qual­quer sanção. No século II dissipou-se tal noção; aflorou no povo de Israel a consciência de que os irmãos que deixam esta vida, mantêm lúcido um nú­cleo de sua personalidade e vivem como membros da Aliança de Deus com o seu povo; conseqüentemente, são solidários com os fiéis peregrinos na terra e intercedem por eles. É o caso, por exemplo, de Jeremias profeta que, fale­cido no século VI a.C., aparece a Judas Macabeu no século II a.C., junta­mente com o Sumo Sacerdote Onias (também falecido), como “o amigo de seus irmãos, aquele que muito ora pelo povo, pela cidade santa, Jeremias, o profeta de Deus” (2Mc 15,14).[1]

No Novo Testamento esta consciência se fortalece: na epístola aos Hebreus, o autor recorda os justos do Antigo Testamento, heróis da fé, e insinua a sua solidariedade com os irmãos ainda vivos na terra. Com efeito, afirma:

“Todos eles, embora pela fé tenham recebido um bom testemunho, apesar disso não obtiveram a realização da promessa. Pois Deus previa para nós algo de melhor, a fim de que sem nós não chegassem à plena realização” (Hb 11,39s).

Logo a seguir, o autor imagina esses justos colocados num estádio como que a torcer pelos irmãos ainda existentes neste mundo; constituem uma densa nuvem de torcedores interessados no bom êxito do certame que nos toca:

“Portanto também nós, com tal nuvem de testemunhas ao nosso re­dor, rejeitando todo fardo e o pecado que nos envolve, corramos com perse­verança para o certame que nos é proposto” (Hb 12,1).

Corremos, pois, acompanhados por testemunhas que nos querem ver vitoriosos como eles foram.

Consciente disto, já nos seus primeiros tempos a Igreja começou a prestar veneração particular àqueles defuntos que por sua vida e morte ha­viam confessado Jesus Cristo. Como relatam as fontes históricas, na segunda metade do século II, firmou-se o costume de haver uma celebração eucarísti­ca em cima do túmulo dos mártires no dia do aniversário da sua morte (con­siderado como o dia do seu natalício). Após o período de perseguições, que se encerra em 313 com a Paz de Constantino, os cristãos construíram cape­las e igrejas sobre os túmulos dos mártires.

A veneração dos mártires, após a era do martírio sistemático, esten­deu-se aos monges (que procuravam viver o espírito do martírio em absoluta renúncia no deserto); em seguida, foi devotada também aos Bispos e sacer­dotes e demais fiéis do povo de Deus. Os Bispos eram os juízes da devoção espontânea dos cristãos, de modo que lhes competia aprovar ou não tal ou tal manifestação de piedade. Os Santos eram proclamados pela piedade dos fiéis e os Bispos consentiam ou não consentiam em tais gestos.

Nos séculos VIII/IX foi debatida a questão das imagens (iconoclasmo). O objeto da controvérsia eram principalmente as imagens de Jesus Cris­to; só acidentalmente foram abordadas as imagens dos Santos e, conse­qüentemente, o culto dos Santos. – O Concílio Ecumênico de Nicéia II (787) declarou lícito o uso de imagens sagradas: a estas se presta um culto relativo à pessoa ou às pessoas representada(s) pelas imagens. Tal culto em relação aos Santos é de veneração (dulia) e não de adoração (latréia), que compete a Deus só.

Um passo adiante no aprofundamento da temática foi dado pelo Papa João XV: em 993 ele procedeu à primeira canonização formal. Isto quer dizer que doravante não valeria mais a aclamação de um Santo por parte do povo de Deus, aprovada pelo Bispo local. O Papa atribuía exclusi­vamente a si a função de canonizar os Santos[2] – o que se faria após me­ticuloso processo ou exame dos respectivos indícios de santidade, a fim de se evitarem equívocos por parte do entusiasmo das massas de fiéis. O pri­meiro Santo assim canonizado foi Santo Ulrico, Bispo de Augsburgo (Bavie­ra), falecido em 973. Nessa ocasião (em 993) João XV endereçou a encíclica Cum conventus esset aos Bispos da Alemanha e da Gália, em que realça dois importantes princípios da veneração dos Santos:

“Honramos os servos para que a honra recaia sobre o Senhor, que dis­se: ‘Quem vos acolhe, a Mim acolhe’ (Mt 10,40). Além do quê, nós, que não podemos confiar em nossas próprias virtudes, sejamos sempre ajudados pe­las preces e os méritos dos Santos” (Denzinger-Schõnmetzer, Enquirídio n° 756 [342]).

Em plena Idade Média, o Concílio do Latrão IV (1215) promulgou uma advertência sobre abusos ocorrentes no culto das relíquias:

“O fato de que alguns expõem relíquias dos Santos para vendê-las e as apresentam ao público desordenadamente, tem acarretado danos para a religião cristã. A fim de que isto não mais aconteça, estabelecemos pe­lo presente decreto que doravante as relíquias antigas não sejam expostas fora do respectivo cofre nem sejam apresentadas para venda. As que fo­rem recém-descobertas, ninguém ouse venerá-las publicamente sem que tenham sido previamente reconhecidas pelo Pontífice Romano. De res­to, os prelados não permitam que os fiéis desejosos de venerar relíquias nas igrejas desses prelados sejam iludidos por falsas imagens ou documen­tos, como em vários lugares, por motivo de lucro, tem acontecido habitual­mente” (Denzinger-Schönmetzer, Enquirídio n° 818 [440]).

Vê-se que na época havia abusos decorrentes da fragilidade humana, abusos, porém, que não deviam implicar a supressão do uso justificado por motivos teológicos, como adiante se verá.

O culto dos Santos e das relíquias era algo de tão radicado na piedade católica que o Papa Martinho V, no questionário apresentado aos seguidores de Wiclef e Huss (contestatários reformistas dos séculos XIV e XV), incluiu a seguinte pergunta:

“Crê e afirma que é lícito aos fiéis venerar as relíquias e as imagens dos Santos?’ (Bula Inter Cunctas, de 22/02/1418, questão 29; D.-S., Enqui­rídio n° 1269 [679]).

De acordo com o princípio tradicional Lex Orandi Lex Credendi (a lei da oração é a lei da fé, a oração é expressão e escola de fé autêntica), o culto dos Santos praticado na Liturgia da Igreja não era apenas uma questão de disciplina ou uma prática venerável; era, sim, algo que se prendia ao patrimô­nio da fé católica. Negar o culto de veneração aos Santos seria ferir, ao me­nos indiretamente, uma verdade de fé católica. Eis por que o Papa mandava perguntar aos contestatários se aceitavam a veneração dos Santos.

Os abusos já condenados pela autoridade da Igreja no século XIII fo­ram-se avolumando nos séculos subseqüentes. O fim da Idade Média foi de piedade férvida ou mesmo exuberante, mas pouco ilustrada pela doutrina da fé, de modo que os fiéis manifestavam seus sentimentos religiosos de manei­ras evidentemente aberrantes. Isto provocou a réplica de Lutero e Calvino no século XVI.

Os dois reformadores aceitavam a veneração dos Santos (aliás, quem não venera um herói ou uma heroína?), mas contestavam a sua função de intercessores; esta parecia-lhes derrogar à exclusividade da ação salvífica de Jesus Cristo; em particular, Lutero argumentava que também o justo per­manece pecador (é um pecador revestido do manto dos méritos de Cristo, mas pecador debaixo de uma capa de justiça); por conseguinte,dizia Lutero, os justos não podem ser instrumentos de salvação.

A estas asserções o Concílio de Trento respondeu tanto na Profissão de Fé Tridentina (13/11/1564, D.-S. 1867 [998]) como no “Decreto sobre a Invocação, a Veneração e as Relíquias dos Santos e as Imagens Sagradas” (3/12/1563). Este último afirma seis pontos:

<!–[if !supportLists]–>1) <!–[endif]–>Os Santos, que reinam com Cristo, oram pelos homens;

<!–[if !supportLists]–>2) <!–[endif]–>Invocá-los e implorar a sua intercessão é coisa boa e útil;

3) No entanto, Cristo fica sendo o único Redentor;

4) Os benefícios em resposta à oração vêm de Deus através de seu Filho (a Deo per Filium).

O Concílio ainda exortou os Bispos a que instruíssem os fiéis con­forme a Tradição da Igreja e impedissem os abusos existentes:

5) A veneração das relíquias se justifica pelo fato de que os corpos dos Santos eram templos do Espírito Santo e serão ressuscitados para a vida eterna;

6) As imagens dos Santos prestem-se honra e veneração, tendo-se em vista Aquele ou aquele(a)s que tais imagens representam. A veneração das imagens estimula o agradecimento a Deus e a imitação dos heróis da fé (ver D.-S., Enquirídio no 1821-1825 [984-9881).

Como se vê, o Concílio de Trento reiterou a doutrina tradicional da Igreja, ao mesmo tempo que repeliu quaisquer abusos, para os quais chamou a atenção dos Bispos e mestres da fé, encarregados de velar pela pureza da doutrina e da piedade cristãs. – Note-se, porém, que os padres conciliares quiseram salvaguardar a liberdade dos fiéis frente ao culto dos Santos; este é tido como bom e útil (bonum et utile), não, porém, obrigatório. A Igreja como tal cultua os Santos em seu calendário litúrgico, mas deixa ao critério de cada fiel definir os termos de sua devoção pessoal.

Até o Concílio do Vaticano II (1962-65) nada de novo se disse em caráter oficial sobre o assunto. Este último Concílio retomou a temática e deu-lhe uma formulação bem mais precisa e correspondente às objeções protestantes; enfatizou especialmente o caráter cristocêntrico e teocêntrico do culto dos Santos (Cristo e Deus Pai é que, em última análise, são cultua­dos quando se cultuam os Santos).

Assim, por exemplo, reza a Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia:

“Nos natalícios dos Santos a Igreja apregoa o mistério de Páscoa vivi­do pelos Santos que com Cristo sofreram e foram glorificados, e propõe o seu exemplo aos fiéis, para que atraia por Cristo todos ao Pai e por seus méritos obtenham os benefícios de Deus” (n4 104).

Este texto dá um caráter fortemente teocêntrico e cristocêntrico ao culto dos Santos. Ele nos induz a reconhecer o mistério da Páscoa ou da vitória de Cristo sobre o pecado e a morte. O exemplo dos Santos deve levar os fiéis ao Pai mediante Jesus Cristo. – O mesmo é dito pouco adiante:

“As festas dos Santos proclamam as maravilhas de Cristo realizadas em seus servos e mostram aos fiéis os exemplos oportunos a ser imitados” (n° 111).

A Constituição Lumen Gentium insiste sobre o enfoque cristocêntri­co, quando afirma:

“Assim como a comunhão cristã entre os cristãos na terra mais nos aproxima de Cristo, assim o consórcio com os Santos nos une também a Cristo, do qual como de sua Fonte e cabeça promana toda a graça e a vida do próprio Povo de Deus. Convém, portanto, sumamente que amemos esses amigos e co-herdeiros de Jesus Cristo, além disso irmãos e exímios benfei­tores nossos; rendamos as devidas graças a Deus por meio deles, os invoque­mos com súplicas e recorramos às suas orações, à sua intercessão e ao seu auxílio para impetrarmos de Deus as graças necessárias por meio de Seu Filho Jesus Cristo, único Redentor e Salvador nosso. Pois todo genuíno testemunho de amor manifestado por nós aos habitantes do céu, por sua própria natureza, tende para Cristo e termina em Cristo, que é a coroa de todos os Santos e, por Ele, em Deus, que é admirável nos seus Santos e neles é engrandecido” (n° 50).

Assim o Concílio do Vaticano II apresentou a veneração aos Santos como algo de logicamente inserido no patrimônio da genuína fé e algo de salutar, tendente a nos fazer mais e mais admirar a obra de salvação de Deus, que toma novas e novas facetas em cada Santo. Estes nos levam a Deus; são totalmente relativos a Deus, como bem dizia S. Agostinho: “Deus é Deus sem eles, mas eles que são sem Deus? – Ipse enim sine illis Deus est; illi sine illo quid sunt?” (sermão 128, 3).

Procuremos agora aprofundar as razões teológicas subjacentes ao cul­to dos Santos.

2. Razões teológicas

Eis como teologicamente se fundamenta a intercessão dos Santos por nós em atendimento às preces que lhes dirigimos:

A salvação cristã é comunitária, e não individualista, como atesta a Escritura do Novo Testamento, propondo a imagem do Corpo de Cristo, no qual cada membro tem uma função e desempenha papel indispensável; cf. 1Cor 12,12-17. É por isto também que os cristãos pedem a ajuda de seus irmãos na terra; solicitam especialmente orações para que possam chegar ao seu Objetivo Supremo, a exemplo do que os Apóstolos faziam e mandavam fazer (cf. Tg 5,16; 2Cor 1,3.7.9; FI 1,9; CI 4,3). Há, pois, comunhão e soli­dariedade entre os cristãos, assim expressa pelo Apóstolo: “Alegrai-vos com os que se alegram; chorai com os que choram. Tende a mesma estima uns pelos outros” (R m 12,15s).

Ora Deus, que é o autor dessa comunhão solidária, não permite que ela se extinga com a morte; na verdade, a chamada “morte” não é extinção da vida, mas transição de uma modalidade de vida para outra. Ao contrário, a morte liberta o cristão dos entraves do pecado e da sedução das paixões, permitindo que o seu amor a Deus e aos irmãos se torne mais puro. Disto se segue que a comunicação de amor fraterno entre vivos e defuntos não so­mente seja possível, mas venha a ser mesmo uma conseqüência do aperfei­çoamento do amor dos que passaram para o além. O Senhor Deus se encar­rega de os tornar cientes das necessidades dos seus irmãos na terra, já que sem essa intervenção de Deus não haveria intercâmbio entre cristãos pere­grinos e cristãos consumados. Por conseguinte, a oração dos Santos pelos viandantes deste mundo é o desdobramento do seu amor a Deus e ao próxi­mo, que caracterizou a sua vida na terra e agora é pleno ou livre de obstácu­los. Os justos falecidos querem ajudar-nos a atingir o termo de nossa voca­ção, que é “participar da sorte dos Santos na luz” (Cl 1,12). O amor e a bondade dos Santos, isto é, aquilo que constitui a santidade, permanecem para sempre.

Foi está argumentação que moveu os mestres da Tradição cristã a professar a intercessão dos Santos pelos irmãos na terra. Eis aqui três tes­temunhos:

Orígenes de Alexandria (+ 250), no seu Tratado sobre a Oração, reco­lhe as passagens bíblicas que falam da intercessão dos Santos e dos profetas, e propõe a seguinte reflexão: as virtudes cultivadas nesta vida são definiti­vamente aperfeiçoadas no além. Ora a mais valiosa de todas é a caridade; esta portanto na outra vida é ainda mais ardente do que na vida presente. Por conseguinte, os Santos falecidos exercem seu amor para com os irmãos na terra mediante a intercessão dirigida a Deus em favor das necessidades desses peregrinos. Ver “Sobre a Oração” n° 11 2.

S. Tomás de Aquino (+ 1274) professa semelhante doutrina. Pergunta, na Suma Teológica II/II 83, 11, se os Santos na pátria rezam por nós. E res­ponde afirmativamente; sim, a oração pelos outros decorre do amor ao pró­ximo. Ora, quanto mais perfeitos no amor forem os Santos na outra vida, tanto mais hão de rezar pelos peregrinos na terra, a fim de os ajudar a chegar à vida eterna.[3]

Até mesmo o pensador protestante Gottfried W. Leibniz (+ 1716) declara não entender por que não se deve recorrer aos Santos na oração. Mais: chama a atenção para a estrutura cristocêntrica e teocêntrica dos nossos pedidos aos Santos, que, conforme Leibniz, obedecem ao seguinte modelo:

“Considera, ó Deus, as tribulações que eles (os Santos) suportaram por tua graça em prol do teu nome; ouve as suas orações, às quais o teu Filho unigênito conferiu força e valor”.[4]

O motivo pelo qual os bem-aventurados respondem às nossas preces, é o seu amor muito vivo:

“Os bem-aventurados olham agora para as nossas vicissitudes muito mais do que durante esta vida terrena e vêem tudo de mais perto… O seu amor e a sua vontade de ajudar são muito mais ardentes e as suas orações muito mais eficazes do que durante a vida terrena. É certo que Deus escuta também as orações dos vivos e que nós esperamos proficuamente que as nossas orações se unam às dos irmãos. Não vejo, por isto, razão pela qual devamos duvidar da idéia de invocar um bem-aventurado ou um anjo santo e de implorar a sua intercessão e a sua ajuda” (obra citada, p. 190).

Merece especial atenção o fato de que a oração aos Santos e a inter­cessão dos Santos não derrogam à unicidade do Salvador e Mediador Jesus Cristo. Ao contrário, esse intercâmbio entre vivos e mortos decorre da obra redentora de Cristo e dá glória ao Salvador; é expressão da excelência dessa salvação. Mais ainda: os Santos são relativos a Jesus Cristo; tudo devem a Este e em tudo encaminham os seus irmãos para Jesus, como notava o

Con­cílio do Vaticano II citado à p. 268 deste fascículo.

Os Santos não são doadores nem fontes de graças; são apenas advoga­dos, que intercedem por eficácia da mediação salvifica de Jesus Cristo.

3. Questões complementares

1. À luz destas verdades, compreende-se também a legitimidade do culto das relíquias. Estas são fragmentos dos ossos dos Santos ou objetos que serviram ao seu uso. Ora todas as culturas praticaram o respeito e a ve­neração (não a adoração) tanto dos despojos mortais como dos pertences de seus heróis. Que se pode objetar a uma viúva que tenha diante dos olhos a fotografia do marido e conserve carinhosamente os objetos usados por ele? Como seria violento e antinatural impedir a tal viúva a veneração das relí­quias do marido, é também violento, para um cristão, impedir-lhe que guar­de a estima aos sinais materiais que lembram os heróis da fé.

É certo outrossim que a profissão de que os homens ressuscitarão no fim dos tempos, incutiu grande apreço aos despojos mortais dos Santos, elevados à dignidade de templos do Espírito Santo durante a vida presente (cf. 1Cor 6,15-20). – Verdade é que Deus não recolherá as cinzas esparsas do cadáver para provocar a ressurreição, mas a matéria primeira (no sentido aristotélico-tomista) unida à alma do indivíduo assumirá as feições do res­pectivo corpo, tornando-se a carne gloriosa correspondente a tal alma.

Os abusos registrados no decorrer da história quanto ao culto dos Santos não são razão suficiente para se condenar a devoção aos mesmos e às suas relíquias.

2. É claro, porém, que a veneração dos Santos em suas diversas moda­lidades fica sendo algo de facultativo para cada fiel católico. Contudo seria muito estranho que um católico não tivesse devoção alguma a Maria Santíssima, a mais bendita de todas as mulheres (cf. Lc 1,42) e a Mãe da Vida, a nova Eva; a devoção a Maria decorre da própria vocação do cristão a ser “um outro Jesus” (cf. Rm 8,29). Com efeito; quanto mais alguém é um outro Je­sus, tanto mais também é devoto filho de Maria, pois Jesus foi todo Filho do Pai (como Deus) e todo filho de Maria (como homem). Assim a devoção a Maria resulta logicamente do Cristocentrismo da piedade cristã.

3. Ainda uma observação: há Santos tidos como protetores em espe­ciais situações de necessidade: assim Santa Edviges seria a intercessora dos endividados; Santa Rita de Cássia, a dos fiéis envolvidos em problemas inso­lúveis; Santo Antônio de Pádua, o tutor dos namorados e noivos… Essa relação entre o Santo e determinada carência dos irmãos peregrinos deve ter fundamento na vida do respectivo Santo; é de crer que este tenha obtido grandes graças de Deus outrora em ocasiões semelhantes às dos seus devo­tos. – Tal relacionamento é aceitável, mas não deve degenerar em superstição.

4. Verifica-se assim a legitimidade e até mesmo a conveniência do cul­to dos Santos. Quem compreendeu bem o que é o Cristianismo, não o pode imaginar sem essa comunhão viva entre os membro do Corpo de Cristo, quer estejam ainda peregrinando na terra, quer já se achem na glória do céu. Somente os abusos e as caricaturas puderam desfigurar essa tão bela reali­dade, levando muitos cristãos a negá-la; negam-na simplesmente porque estão equivocados a respeito.

5. A imagem do Santo deve pairar nitidamente ante os olhos do cris­tão, pois o Santo é o reflexo mais límpido de Deus e é o ser humano realiza­do por excelência. O bom médico, o bom músico, o bom cientista podem ser homens maus, mas o Santo será sempre um homem bom (ou uma mulher boa); será um homem tão perfeito quanto possível dentro das limitações humanas. Há, pois, necessidade enorme de Santos em nosso mundo; são o tesouro e a riqueza da Igreja (a concretização dos méritos de Cristo, fonte de toda santidade) e o autêntico patrimônio da humanidade. Por isto o mundo não pode deixar de clamar: “Senhor, dá-nos Santos!­

A propósito muito se recomenda o livro de Wolfgang Beinert, O Culto aos Santos Hoje. Ed. Paulinas, São Paulo 1990.

Ver também PR 336/1990, pp. 220-236 (Cristianismo e paganismo).

APÊNDICE
UM TESTEMUNHO ELOQÜENTE

Para ilustrar as verdades da fé, são muito significativos os exemplos dos próprios Santos e justos que as viveram e vivem concretamente. – Daí a conveniência de se citar aqui o testemunho de fim de vida do Pe. Júlio Fra­gata S.J., que faleceu em Portugal aos 27/12/1985.

Nascido em 1920, o Pe. Fragata S.J. foi professor universitário em Braga e no Porto e Superior Provincial da Província Portuguesa da Compa­nhia de Jesus. Era homem de grande erudição associada a modéstia e discri­ção. Revelou a riqueza de sua vida espiritual no fim da sua existência terres­tre, como se poderá depreender dos trechos e notícias que se seguem:

1. As vésperas de ser operado de um câncer no estômago, registrava em seu “Diário Espiritual”:

“Tenho sentido certa alegria em deixar este mundo como, quando e onde o Senhor quiser, entregando-lhe totalmente todo o meu fim de carrei­ra aqui. Mas hoje, na Eucaristia, senti que, assim como, Jesus, deixando este mundo, começou a fazer ainda maior bem nele, também só desejo deixar este mundo para que, do outro mundo, tenha ocasião de fazer ainda maior bem. Só ‘passando a fazer bem’ se dá real glória a Deus; e creio que o Se­nhor disporá que termine a minha vida neste mundo quando estiver em circunstâncias de fazer, do outro mundo, maior bem neste mundo. Quero pedir a Nossa Senhora que me ampare nesta vida, para que nela seja de tal modo purificado que, ao sair deste mundo, possa logo começar a fazer maior bem aqui. Senti rápida, mas elevada consideração neste pensamento” (Braga, 30/05/85).

2. Freqüentemente sublinhava que o sofrimento era uma riqueza que não se podia desperdiçar, que a sua partida para Deus ia ser benéfica, uma graça para ele e para os irmãos. Assim, afirmava no seu Depoimento, trans­bordante de esperança e otimismo cristãos:

“Na expectativa de tudo o que me pode acontecer, desejo evitar es­banjar aquilo que mais se esbanja neste mundo, que é o sofrimento. Porque o sofrimento sem amor é um esbanjamento.

No Calvário, três estão crucificados: o mau ladrão, que não aceita o sofrimento, apesar de padecer; o bom ladrão, que o aceita e por isso ouve de Jesus as consoladoras palavras: ‘Hoje estarás comigo no Paraíso’. Mas há também o sofrimento de Cristo, onde culmina o amor numa eficácia da Redenção. Pedir-Te-ei demasiado, Senhor, se o sofrimento que me espera for mais que mera aceitação, tornando-se entrega voluntária como a Tua, em holocausto pela salvação do mundo?… Tu conheces a minha fragilidade e como preciso do Teu perdão; penetras também a minha ânsia de ser contigo ‘cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo’. Aceita, Pai, a minha entrega e dá-me a força do Teu Espírito para que habite em mim a fortaleza de Cristo” (25/09/85).

3. Atesta o Pe. Manuel Morujão, Superior da Comunidade Jesuíta na Faculdade de Filosofia de Braga, de que o Pe. Júlio Fragata era membro:

“Das idéias que mais freqüentemente lhe ouvi repetir nos seus últi­mos meses, era o sublinhar insistente que a sua partida para e Casa do Pai ia ser um bem para nós, que por nós iria interceder junto de Deus, que de lá nos poderia ser mais útil e fazer maior bem. Poucos meses antes da sua partida, conversávamos à mesa sobre qual seria a nossa ocupação na eter­nidade. De súbito nos interrompeu, com voz de quem conhece a verdade por dentro: – No céu, ama-se! O descanso eterno é sumamente ativo em amor, em Deus-Amor.

Demos a palavra ao Pe. Fragata através desta página do seu ‘Diário Espiritual’:

‘Tenho recebido tantas visitas, telefonemas, cartas, mostras de dedica­ção e carinho por parte de médicos, pessoas que me tratam:.. que não sei como demonstrar o meu reconhecimento…

Bem sei que tudo é graça Tua e que Tu és Aquele que compensa todo o bem que se faz. Julgo que me prometeste compensar todas as atenções para comigo nesta doença, dum modo muito singularmente especial, como se elas fossem dirigidas diretamente a Ti. Obrigado! Mas também sei que assim como neste mundo toda a dedicação deve ser reconhecida por aquele que a recebe, no outro mundo Tu me darás possibilidades misteriosas, mas eficazes e reais, de poder mostrar este reconhecimento. Julgo que isto é uma conseqüência necessária da nossa unidade em Ti, em comunhão de Santos.

Momentos depois tive a convicção de que o Senhor me atendia este desejo e que faria com que, do Céu, fizesse muito bem em união com Cris­to. Também senti que Ele estará comigo até a morte dando-me grande for­taleza.

Acredito, Senhor, nas surpresas do Teu Amor, mesmo quando estas são dolorosas. Entrego-me à Tua vontade, que quero fazer minha’ (05/10/1985).

O Pe. Fragata partiu para chegar mais até nós. Separou-se de nós para se tornar mais próximo nosso. Perdeu a vida para a ganhar mais em plenitu­de… Mais perto de Deus, mais perto de nós. Partiu com um propósito: fa­zer maior bem. Quem está em Deus, não pode deixar de cumprir!”

(Passagens extraídas de COMMUNIO, edição portuguesa, janeiro/fe­vereiro 1986, pp. 87-89).

Eis um dos mais belos comentários de quanto foi dito sobre a comu­nhão e a intercessão dos Santos. O Pe. Júlio Fragata S.J. teve consciência destas realidades transcendentais e quis vive-las plenamente; elas o ajudaram a considerar a “morte” com um olhar diferente, profundamente cristão; ele sabia que não se tornaria estranho a seus irmãos peregrinos na terra, mas exerceria viva solidariedade com eles!

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NOTAS:

[1] Diz a propósito a Bíblia de Jerusalém em nota de rodapé a 2Mc 15,14: “Esse papel conferido a Jeremias e a Onias é a primeira atestação da crença numa oração dos justos falecidos em favor dos vivos”.

[2] Canonizar é inserir no cânon ou catálogo dos Santos.

[3] “Cum oratio pro aliis facta ex carita te proveniat… quanto sancti qui sunt in patria sunt perfectioris caritatis, tanto magis orant pro viatoribus, qui orationibus adiu vari possunt”.

[4] Leibnizens System der Theologie. Nach dem Manuskripte von Hannover
ins Deutsche übersetzt von R. Rãss and Dr. Weis. Mogúncia, 3ª edição 1825, p. 158.

 

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