Deus: como se explica o mal no mundo

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 005/1957)

“Como se explica o mal no mundo? Parece incompatí­vel com a existência de Deus”.

A questão é das mais disputadas de todos os tempos. Con­tudo ela só admite uma solução, que vamos procurar expor refletindo serenamente.

Antes de perscrutarmos a origem e a razão de ser do mal, faz-se mister definir o que é o mal.

1. Que é o mal?

1) O mal, longe de ser uma entidade positiva, é um não-ser; não constitui uma afirmação, mas uma negação.

Com efeito, não há, nem pode haver, substância cuja na­tureza seja por si essencialmente má; esta seria algo de estra­nho ou absurdo no mundo: não poderia agir, porquanto ne­nhum ser age senão em virtude de uma perfeição que ele possui e atua. A serpente, o escorpião, a bomba atômica… só produ­zem sua ação nociva ou má porque neles há uma entidade posi­tiva que o naturalista ou o físico-químico admiram profundamente. O mal, portanto, é uma negação ou ausência de ser.

2) Não é, porém, qualquer ausência de ser; é apenas a ausência do ser devido ou do ser pertencente à natureza de tal indivíduo (em caso contrário, todo indivíduo seria mau por não possuir toda e qualquer das perfeições espalhadas pelo mundo). Na prática, ninguém diz que a ausência de asas no homem é um mal ou uma desgraça, mas todos reconhecem que a falta de olhos ou a cegueira no mesmo é um infortúnio, pois o homem não foi feito para ter asas e, sim, para ter olhos; a criancinha, pelo simples fato de não falar, não está afetada de um mal, ao passo que o adulto na mesma situação padece au­têntico mal.

Em outros termos: o mal é a falta de conformidade do su­jeito com o respectivo arquétipo ou exemplar. Essa falta de conformidade pode-se verificar na ordem física (tem-se então um corpo doente ou mutilado) ou na ordem moral (tem-se en­tão uma ação alheia ao Fim último devido ou um pecado).

3) Por conseguinte, o mal supõe sempre um bem, ao qual ele sobrevém; só se encontra onde há um valor real, e tem proporções tanto mais vultuosas quando maior é o bem no qual esteja encravado; basta lembrar a hediondez da perversão de um gênio, da corrupção de um santo. É o fato de que o mal está sempre aninhado no bem que lhe dá a aparência de enti­dade positiva.

A experiência comprova que o mal nunca pode ser isolado. Não se encontra o mal como tal (a cegueira ou a surdez subsis­tentes em si mesmas), mas alguém ou alguma coisa boa em que existe a lacuna, o mal (o olho privado de visão, o aparelho auditivo carecente de audição). Não há quem veja as trevas ou ouça o silêncio; estes só são apreendidos se se apreenderam previamente os respectivos contrários (luz e ruído).

Disto se segue que o mal nunca poderá, nem no indiví­duo nem na sociedade, ser tão vasto que absorva e destrua todo o bem, pois em tal caso o mal extinguiria o suporte da sua exis­tência e aniquilaria a si mesmo. O mal só pode existir respei­tando em certo grau o bem; jamais conseguirá triunfar total­mente sobre o bem; para ter realidade, ele há de ser uma ne­gação menor dentro de uma afirmação maior (concretamente, isto quer dizer que os autênticos motivos de tristeza, como são as calamidades físicas para o homem, nunca são tão ponderosos que sobrepujem os autênticos motivos de alegria; no plano mo­ral, nunca o pecado marcará decisivamente o curso da histó­ria…).

4) Onde há ser limitado, mesclado de não-ser, há possi­bilidade de passar do ser para o não-ser, da vida para a morte, da integridade para a mutilação. Somente naquele que é o Ser simplesmente dito, que tem em si mesmo a justificação do seu ser, é que não pode haver deficiência ou mal; isto se dá apenas em Deus.

Na raiz de cada criatura, ao contrário, há um vazio, um não-ser. A criatura hoje existente não era, foi tirada do nada; a sua fonte e razão de ser estão fora dela. Por isto ela pode, tende mesmo, a recair no não-ser donde procede. Traz em si um princípio de deficiência; é boa, viva, justa, bela até certo grau apenas. Não se identifica com a Bondade, a Vida, a Jus­tiça, a Beleza… Por conseguinte, uma criatura por si mesma (abstração feita de prerrogativa concedida pelo Criador) indeficiente ou infalível é contradição.

Eis brevemente o que se refere à existência do mal. Pas­semos agora à questão:

2. Donde vem o mal?

Até aqui consideramos o mal no plano abstrato da espe­culação. Procuremos ver como entrou na realidade concreta, histórica.

1) Deus, em seu desígnio eterno, quis difundir o seu Ser, a sua Bondade, pois, segundo um axioma já formulado pelos Neo-platônicos (séc. 3.° d.C), o Bem é essencialmente difusivo de si. Para isto, decretou tirar do nada criaturas que em grau finito exprimissem, cada qual do seu modo, a infinita Perfei­ção Divina.

2) Criou, pois, os minerais, os vegetais e os animais irra­cionais. Destinados a dar glória ao Criador, eles são movidos, não se movem propriamente, em demanda do seu Fim; não têm a capacidade de reconhecer a Deus e de optar conscientemente por seu supremo objetivo.

Acima dessas criaturas na escala dos seres, e justamente destinado a movê-las (suprindo o que lhes falta), acha-se o ho­mem. Este é dotado de conhecimento intelectivo e da liberdade de arbítrio daí decorrente (veja “Pergunte e Responderemos” 3/1957, qu. 4). Deus chamou-o também a dar glória ao Criador, mas de maneira consciente e espontânea.

A produção de uma criatura livre representava (em lin­guagem humana) certo “perigo” ou “risco” para o Criador. Não há dúvida, ser livre é grande perfeição, maior do que ser autô­mato; e foi esta perfeição que Deus visou ao conceber o ho­mem. Todavia, a liberdade de arbítrio criada, justamente por ser criada, é falível, capaz de fraquejar na sua opção; represen­ta, pois. uma arma de dois gumes…

3) Consoante o seu plano, o Criador, depois de ter feito o homem, colocou-o diante da opção: Deus ou a criatura (em última análise, o próprio Eu humano). Nesta consulta atuou-se a possibilidade menos feliz…: o homem quis ser como Deus, rejeitando o Exemplar Divino.

Os povos mais antigos costumam professar, sob forma de narrativas graciosas, a consciência de que nas origens da his­tória se deu uma desobediência grave dos homens contra o So­berano Senhor, donde resultaram os males crônicos que nos cercam. Cf. E. Bettencourt, Ciência e Fé na história dos pri­mórdios, 3.a ed. AGIR 1958, págs. 178-181.

A Bíblia refere a mesma verdade no episódio do pecado de Adão e Eva (Gênesis 3): o homem livre cometeu uma ação (cujos pormenores não se podem precisar), à qual faltava a con­formidade com o Modelo ou com a Palavra de Deus — o que era um mal moral, um pecado; e acrescenta que desse mal moral decorrem, à guisa de sanção lógica, os males físicos (doenças, misérias, morte); a desordem material foi, pois, acarretada pela desordem espiritual. Donde

LIBERDADE DE ARBÍTRIO:

 MAL MORAL, PECADO

MAL FÍSI­CO (SOFRIMENTO E MORTE).

Por conseguinte, o princípio de toda desgraça vem a ser a livre vontade do homem, que, sem deixar de querer o bem, preferiu, por sua falibilidade natural, o bem aparente ao Bem Real. O primeiro de todos os males vem a ser o mal moral ou pecado; donde se segue que pior é cometer a injustiça (mal mo­ral) do que a padecer (mal físico).

Hoje em dia os homens sofrem e morrem porque o pri­meiro pai pecou (afastou-se da Felicidade e da Vida, que é Deus) e transmitiu a seus descendentes uma natureza desre­grada, além do mais colocada num mundo em que os seres in­feriores não servem sempre ao homem (como o primeiro homem não serviu a Deus). Nem todo sofrimento é conseqüência de um pecado pessoal, mas reduz-se, em última análise, à deso­bediência de Adão.

4) E porque Deus não impediu que Adão pecasse?

O Senhor deu ao primeiro pai os meios suficientes para não pecar; não quis, porém, intervir na vontade do homem, forçando-a a escolher o Bem Real, pois isto equivaleria a retirar ou mutilar um dom outorgado em vista de maior dignidade e glória do gênero humano.

Deus é Pai, não ditador, e quer ser considerado como Pai. Ora, na parábola que Jesus narra em Lc 15, 11-32, o pai deixa partir o filho que lhe pede a herança para ir gozar da vida; embora anteveja os desmandos que o jovem está para cometer, deixa-o ir, justamente porque é pai, não tirano, e quer usar de confiança ao tratar o seu filho; espera ao menos que este, fa­zendo as suas experiências livremente empreendidas, reconheça mais livre e conscientemente a felicidade que há em aderir ao Pai. Assim Deus deixou (e deixa) o homem partir pela via do pecado, segundo a sua livre opção, pois o que Deus quer é o amor filial do homem, não a adesão inconsciente de uma má­quina.

5) E porque Deus, sabedor dos pecados de Adão e dos seus descendentes, não fez, nem faz, somente indivíduos fiéis ao Fim Supremo?

O Senhor certamente poderia proceder assim; só haveria criaturas boas, sem que o Criador tivesse que coagir alguma. Fazendo isso, porém, Ele desfiguraria, mutilaria o conceito de livre arbítrio. Este implica duas possibilidades opostas uma à outra: o Sim e o Não. Mais precisamente, em se tratando dos homens: implica o Sim ao Criador (o que é o Sumo Bem) ou o Não ao Criador (o que é o Sumo Mal). Por conseguinte, é nor­mal, decorrente do conceito mesmo de criatura, e criatura livre, que no conjunto da história parte dos homens diga Sim a Deus, optando pelo Bem Real, outra parte diga Não, falhe, escolhendo o bem apenas aparente ou o mal; não se poderia esperar outro resultado, a menos de um retoque artificioso, pelo qual Deus solaparia a idéia de livre arbítrio; uma história do gênero hu­mano em que todos só escolhessem o bem, não representaria mais a natureza da criatura livre, o exercício da liberdade com todas as suas riquezas e sutilezas (a experiência ensina que, onde muitos têm a possibilidade de fazer alguma coisa, alguns realmente a fazem; num veículo, por exemplo, onde quarenta pessoas tenham a possibilidade de fumar, uma porcentagem de fato fuma: o resultado contrário seria estranho, não correspon­deria à idéia de liberdade de que goza cada qual dos passa­geiros).

6) Mas então Deus não será de algum modo culpado do pecado que o homem comete?

Não; a culpa do pecado não recai sobre Deus. Vejamos bem: em todo ato mau (pecaminoso) há sempre uma entidade positiva, boa, pois todo ato é afirmação de perfeições (só o ser imperfeito não age ou age pouco); esse valor positivo se deve, sem dúvida, ao Criador, pois não há entidade que não se derive de Deus. O mal sobrevém a essa entidade ou a esse bem, como sabemos, pois o pecado nada mais é do que um ato (um valor) que carece de algo…, que carece de conformidade com o seu Exemplar, com o Sumo Bem (Deus). Ora essa carência ou lacuna não se deriva, nem pode derivar, de Deus (porque é um vazio); deve-se unicamente à criatura que, oriunda do não-ser, traz a tendência ao não-ser, a tornar o ser lacunoso. — A título de ilustração, admitamos que um músico se ponha a tocar com uma flauta desafinada; empregará toda a sua arte para pro­duzir a mais bela das melodias com tal instrumento; o resultado porém, não poderá deixar de ser desarmonioso, não por defeito musical do artista, mas em virtude da “má disposição” do ins­trumento. Assim Deus, tendo criado o homem livre e aplicando-lhe a moção suficiente para o bem, não o fará produzir um ato bom, se o homem não estiver bem disposto (o que depende de sua vontade livre) a receber a boa dádiva do Senhor.

Como se vê, o mal. em última análise, se assenta sobre o mistério da liberdade humana, que pode escolher o erro sob a aparência de bem. É verdade que Deus quis criar essa li­berdade sem desconhecer o “risco” que isso acarretava; Ele o quis, porém, unicamente em vista de um bem maior…

E Deus sabia que esse bem maior jamais seria frustrado, mesmo que a liberdade humana falhasse. Nesta hipótese, o pe­cador se tornaria, sem dúvida, infeliz por causa do seu pró­prio pecado, mas Deus ainda assim seria proclamado e glorifi­cado por ele, pois, em última análise, se o pecador sofre pelo pecado, sofre porque a sua natureza feita para Deus protesta contra a violentação, a distorção que a livre vontade do indiví­duo lhe impôs. Esse sofrimento vem a ser a afirmação so­lene de que Deus é o Sumo Bem; ora desde que a criatura o afirme, mesmo que esteja infeliz, ela tem pleno sentido no conjunto dos seres criados, pois o centro em vista do qual tudo foi feito e ao qual tudo se destina, recebendo dele seu significado autêntico, é Deus, não o homem (veja-se o que está dito a respeito do inferno no fascículo “Pergunte e Responderemos” 3/1957. qu. 5).

7) A última palavra, porém, em se tratando do mal, é dita pela Redenção e pelo Cristo crucificado. Esta figura projeta luz que penetra todos os aspectos do problema, mesmo os mais misteriosos.

Sim; Deus não quis ficar indiferente à desgraça do ho­mem. Voltaire dizia a Júpiter que, ao criar-nos, tinha feito “une íroide plaisanterie”, um frio gracejo. Quanto isto é errado!

Deus levou muito a sério o drama do homem. Embora não precisasse da criatura, quis salvar o gênero humano. Em vista disto, tomou a miserável carne humana, fazendo-se “Filho do Homem”, Jesus Cristo, e padeceu a nossa sorte, morrendo. Cristo, porém, não ficou na morte; atravessou-a, venceu-a res­suscitando. Com isto comunicou sentido novo e inestimável va­lor aos nossos padecimentos; se aquilo que Deus toca não pode deixar de ser divinizado, a dor e a morte foram divinizadas de­pois que Cristo as experimentou; deixaram de ser mera sanção, a fim de tornar-se canal, passagem para nova vida, para a gló­ria eterna. Hoje em dia a justiça cumpre-se no cristão quando este sofre e morre em conseqüência do pecado; mas não é a justiça que enfecha a história do homem; é o amor de Deus. Pelos seus padecimentos e morte aceitos em união com o Re­dentor, o cristão desdiz ao egoísmo, identifica-se com a Justiça do Senhor, tornando-se apto a participar da efusão do amor do Pai Celeste.

Para o homem fiel só há uma desgraça autêntica: a perda da união com Cristo ou o pecado, pois, enquanto está unido a Deus, o cristão vence com proveito ou mérito os maiores sofri­mentos (doença, pobreza, perseguições e morte).

Em conclusão: o Cristo pregado à Cruz vem a ser o teste­munho mais eloqüente de que a existência do mal, como a co­nhecemos, não é incompatível com a existência de Deus; para quem considera o Filho de Deus crucificado, torna-se vã qual­quer tentação de acusar de injustiça ou maldade o Criador pelo fato de que Este permite o sofrimento livremente acarretado pelo homem sobre si mesmo. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos”, dizia Jesus (Jo 15,13). Fora, porém, da perspectiva da Cruz de Cristo, o mal constitui problema insolúvel, como atesta Voltaire:

“A felicidade é apenas um sonho, e a dor é a realidade. Há vinte e quatro que o experimento. Não sei tomar outra atitude senão a de me resignar e dizer que, assim como as moscas nasceram para serem consumidas pelas aranhas, assim também os homens nasceram para serem devorados pelo sofrimento”.

O homem, não queiras sofrer a tal ponto! Lembra-te de Deus,… de Deus que se revelou em Cristo, e… alegra-te!

(Pode-se consultar, a respeito, P. Siwek, O Problema do Mal. Rio de Janeiro 1942, na “Biblioteca Francesa de Filoso­fia” de Desclée de Brouwer).