Direito Natural: existe um direito natural?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 035/1960)


«Existe realmente o que se chama Direito natural, isto é, direitos e deveres decorrentes da natureza humana como tal?

Somos freqüentemente levados a crer que as leis sociais só têm fundamento na vontade do legislador humano, podendo por isto variar a gosto do mesmo».

Em nossa resposta, averiguaremos primeiramente o que se entende por «Direito natural»; a seguir, esboçaremos o histórico da questão proposta, para poder com segurança asseverar algo sobre a existência de um Direito dito «natural».

1. Que é o Direito Natural?

1. Não raro empregam-se indiferentemente as expressões «lei natural» e «Direito natural». Faz-se mister, porém, distin­gui-las.

«Lei natural», em Moral, vem a ser o conjunto de normas que, impregnadas na natureza humana desde a sua origem, encaminham o indivíduo para o seu Fim Supremo ou a bem-aventurança eterna; essas normas têm por objeto todo e qual­quer tipo de bem que o homem possa praticar na terra: assim «amar a Deus sobre todas as coisas, não desesperar da Provi­dência Divina, não matar, não roubar, etc».

Quanto ao «Direito natural», ele coincide com uma parte ou um aspecto apenas da lei natural: visa unicamente esse tipo de bem que é a justiça, ou seja, as relações do homem com o seu semelhante. O Direito regra, sim, o intercâmbio de indivíduo humano com indivíduo, de indivíduo com grupo, e de comunidade com comunidade. Define-se, por isto, o Direito natural como sendo o conjunto de normas impressas na natureza humana, a fim de que realize adequadamente a sua vida social ou comunitária na terra.

Desta conceituação decorrem algumas conseqüências importantes:

1) o Direito tem por objeto atos externos e visíveis, que interes­sam não somente ao agente, mas também a outras pessoas; o Direito pode mesmo abstrair das disposições internas do sujeito, considerando apenas a repercussão exterior dos seus atos (dai o perigo de formalismo vazio ou farisaísmo no cultivo extremado do Direito). — A Moral, ao contrário, tem por objeto não somente os atos externos, mas também e principalmente os atos internos do indivíduo; ela julga as intenções de quem age, os seus próprios pensamentos e afetos.

2) O Direito, por causa da sua repercussão social, tem sempre anexo a si uma sanção temporal: compreende-se que a sociedade exerça certo controle sobre os cidadãos para que observem as normas do Direito, pois a comunidade pode exigir que alguém nas suas relações com o próximo se comporte como deve. — A Moral, ao contrário, não está por si sujeita ao controle da comunidade: esta não pode obrigar alguém a ser intrinsecamente bom; ninguém se torna bom por violência da polícia. Alguém pode, sim, ser constrangido pelo Direito público a prestar assistência material aos seus genitores, mas nunca poderá ser obrigado a tomar em relação a eles uma atitude interior de piedade filial.

Em suma, dir-se-á: a Moral visa diretamente a consciência do indivíduo, ao passo que o Direito contempla o comportamento externo. Contudo nem em teoria nem na prática se pode acentuar rigidamente esta distinção, pois há muitas virtudes que por si parecem nada ter de comum com a justiça e o Direito (como a temperança, a prudência), contudo vêm a ser indiretamente objeto da justiça e, por conseguinte, do Direito; além disto, o cumprimento prático de um dever jurídico permanece sempre imperfeito, se não é animado pela atitude interior (moral) correspondente; assim o filho que dá seu tributo financeiro aos pais, sem, porém, os reverenciar devidamente, ainda não realiza plenamente o seu papel.

2) Ao lado do Direito natural, coloca-se o Direito positivo, que é o conjunto de normas sociais direta e livremente conce­bidas pelos homens em vista do bem comum (… da família, da nação, da sociedade internacional). Como se compreende, essa legislação, a fim de atingir os seus objetivos, pode e deve variar dentro de certos limites, adaptando-se às circunstâncias de vida de cada povo e cada época. Ora é justamente este fato que dá origem ao problema focalizado no cabeçalho do presente artigo: será que tais variações dependem unicamente do arbítrio dos legisladores humanos, de sorte que nada haja de perene no Direito positivo e tudo aquilo que hoje é tido como legal possa amanhã ser declarado ilegal, e vice-versa?

Em demanda de solução para esse problema, passemos a um

2. Esboço histórico da questão

Foi muito comum entre os povos, no decorrer dos tempos a acepção de que as leis que regem as relações dos homens entre si, não dependem exclusivamente da vontade do legislador, mas têm fundamento mais remotos: fundamento na própria natureza do homem e dos elementos que o cercam. Por sua vez, esse fundamento natural ou essa lei natural foi, desde remotas épocas, associada ao conceito de Deus, Autor da natureza, e, em particular, da natureza humana. Em conseqüência, as normas do Direito público sempre tiveram, segundo o teste­munho comum dos povos até a Idade Moderna, um caráter de absoluto não sujeito ao bel-prazer do legislador humano.

1. Não nos deteremos sobre a mentalidade dos povos primitivos, para os quais toda a legislação, tanto religiosa como civil, se derivava, em última análise, da Divindade, geralmente concebida como «o Primeiro Pai» ou «o Pai comum» (Urvater, na linguagem técnica alemã).

2. Entre os gregos clássicos, fez-se ouvir contra a concepção tradicional uma série de pensadores que estabeleciam antítese entre a natureza (Physis, Moira) e a lei (Nemos), como se as leis vigentes na sociedade não tivessem fundamento algum na natureza do homem e das coisas ou como se dependessem unicamente do capricho subje­tivo do legislador; as categorias de «justo» e «injusto» dever-se-iam apenas a convenção humana artificial.

Uma das expressões mais típicas desse modo de pensar é a famosa sentença do sofista Protágoras († 415 a. C.) «O homem é a medida de todas as coisas» (no diálogo de Platão, Teeteto 151s); tal medida, em última análise, vinha a ser, conforme Protágoras e sua escola, o utilitarismo e o hedonismo (a procura do gozo).

Contudo as proposições relativistas provocaram a reação de auto­res que reafirmaram em tom ainda mais consciente a tese tradicional segundo a qual a última fonte do Direito é algo de objetivo, indepen­dente do parecer volúvel dos homens.

Haja vista, entre outros textos, a seguinte passagem de Sófocles na sua peça Antígone (442 a. C.): o tirano Creonte quer fazer preva­lecer a sua arrogância ou o seu desrespeito à lei, em detrimento de Antígone inocente; este então resolve apelar para «as leis não escritas e indestrutíveis dos deuses,… cuja existência não data de hoje nem de ontem, mas é de todos os tempos» (Antígone 452-457).

Nos sistemas de Platão († 347 a. C.) e Aristóteles († 322 a. C.), esboçou-se claramente a noção de um direito fundamental, indepen­dente do arbítrio humano. Em particular, Aristóteles realçou a distin­ção entre o que é justo pela natureza mesma das coisas (isso seria sempre e em toda parte válido) e o que é justo por efeito de uma lei positiva (seria variável); cf. Eth. Nicom. V 7 [10] 1; Ret. I 13,2.

Segundo os estóicos, a justiça é ditada pela reta razão, reta razão que anima tanto o homem quanto o universo, constituindo a natureza mesma das coisas e dando estabilidade às leis do comportamento humano.

3. Os juristas romanos em geral adotaram as concepções da filosofia grega, reconhecendo a existência de um Direito Natural. Como porta-voz do pensamento comum, baste citar aqui Ulpiano († 228): «Ius naturale est quod natura omnia animalia docuit. — O Direito natural é aquele que a natureza ensina a todos os seres vivos» (fragm. I § 3; Dig. I 1).

4. O Cristianismo, sobrevindo ao mundo da cultura antiga, corroborou a noção de Direito natural, aprofundando-a à luz do con­ceito de «lei eterna» existente em Deus, como se verá adiante, no parágrafo 3 desta resposta.

5. O séc. XVI, porém, época do Humanismo, deu inicio a nova fase na história do Direito, fase em que o racionalismo lavrou a sentença de auto-destruição dos próprios valores humanos.

O processo se deu por etapas.

A primeira fase de dissolução foi marcada pelo arrefeci­mento da fé no sobrenatural. Já que esta vacilava, muitos pensadores (católicos, protestantes, e até mesmo «independen­tes») procuraram demonstrar a existência do Direito natural (da qual não queriam abrir mão) abstraindo de Deus ou mesmo admitindo a hipótese de que Deus não existisse.

Um dos mais famosos autores neste afã foi o jurista holandês calvinista Hugo Grócio (1583-1645), o qual, supondo a não-existência de Deus (suposição absurda, afirmava ele), procurou basear seu sistema completo de Direito natural e internacional unicamente sobre a razão humana. Conseqüentemente assim definia o Direito natural («ius naturale»):

«Dictatum rectae rationis indicans actui alicui, ex eius convenientia aut disconvenientia cum ipsa natura rationali ac sociali, inesse moralem turpitudinem aut necessitatem moralem. — Ditado da reta razão que, tendo analisado a harmonia ou a desarmonia de determi­nado ato com a natureza racional e social do homem, julga ser tal ato ou moralmente torpe ou moralmente necessário (oportuno)» (De iure belli ac pacis 1625 1. I c. 1 § 10,1).

O Direito natural é imutável, acrescenta Grócio, porque nem mesmo Deus poderia fazer que «o que é por si mesmo mau, deixe de ser mau (quod intrínseca ratione malum est, malum non sit)», ibd. § 10,5. Postos estes princípios, o jurista deles derivava a inviola­bilidade dos tratados e pactos («cum iuris naturae sit stare pactis», ob. cit. proleg. § 15), assim como a plena validade do direito positivo («iura civilia») e a legitimidade dos governos existentes (como se estes fossem resultantes de um pacto ou consentimento inicial dos homens entre si).

Grócio encontrou numerosos discípulos por todo o decorrer dos séc. XVII/ XVIII. O seu sistema, porém, pelo fato mesmo de abstrair de Deus, tomando como fundamento último de todo o Direito a natureza humana, estava fadado a dissolver-se; não levando em conta a noção básica de Deus, os homens nem sequer salvariam a de Direito natural, direito sólido e construtivo da sociedade.

Com efeito (e aqui começa a segunda etapa da evolução dissolutória), os juristas dos séc. XVIII foram propondo como ditames da natureza humana as aspirações pessoais e arbitrá­rias que cada qual nutria, por vezes inspirado em circunstâncias políticas contingentes; o individualismo e o subjetivismo foram campeando nas escolas de Direito: em conseqüência, houve quem afirmasse que a própria vida dos homens em sociedade é decorrente de um contrato realizado entre indivíduos cuja existência natural e primitiva nada tinha de social.

Haja vista, entre outros, o ensinamento de Th. Hobbes († 1679), segundo o qual «homo ad societatem non natura, sed disciplina aptus factus est (o homem foi adaptado à vida em sociedade, não por sua natureza, mas por um artifício de disciplina)»; o estado natural dos homens seria o de guerra de todos contra todos, possuindo cada um por sua natureza mesma o direito a tudo, «ius in omnia»; o medo recíproco, ou seja. a necessidade de paz teria dado origem ao Estado mediante um contrato pelo qual os indivíduos, renunciando inteira­mente ao seu primitivo direito natural, se submetem a um poder absoluto (Cf. The Cive 1642; Leviathan 1651).

Na terceira etapa da dissolução, verificou-se uma reação contra o subjetivismo e o individualismo, reação, porém, pre­cária. Sim; o chamado «positivismo jurídico» no séc. XIX afirmou só reconhecer como fonte de Direito a vontade todo-poderosa do Estado — doutrina esta que se exprimia em breves sentenças: «O que o chefe ordena, é sempre justo» ou «O que não é regrado (pela lei), não pode estar em ordem». Mesmo nos casos em que a aplicação da lei positiva acarreta flagrante injustiça, o positivista não reconhece lei superior para resolver a situação.

O positivismo jurídico é, de certo modo, conseqüência das idéias que Lutero apregoou ao mundo no início da era moderna. Com efeito, ensinando que a natureza humana foi totalmente corrompida pelo pecado dos primeiros pais e que o homem está escravizado sob a concupiscência, possuindo um «servo arbítrio», e não um livre arbítrio, o Reformador alemão só podia lançar o descrédito sobre a natureza humana e concorrer para cancelar a noção de um Direito ou de uma ordem reta das coisas derivada das aspirações mesmas da natureza: toda lei civil deveria ser, conseqüentemente, lei positiva, dependente da vontade do legislador humano.

O termo mais lógico do processo de dissolução do Direito e da Moral foi finalmente atingido no existencialismo contem­porâneo. Jean-Paul Sartre, no seu livrinho «L’existencialisme est-il un humanisme?», denuncia, com razão, a posição absurda de todos os pensadores anteriores que, rejeitando a idéia de Deus, quiseram não obstante guardar as normas da ética e do Direito. Na verdade, diz Sartre, tal pretensão é contraditória: ou a sociedade reconhece as normas do Direito com seu funda­mento autêntico, que é Deus, ou simplesmente deve rejeitar qualquer veleidade de moralidade e juridísmo, pois tal velei­dade seria de todo inconsistente:

«O existencialismo opõe-se fortemente a certo tipo de moral leiga que pretende suprimir Deus com o mínimo de inconvenientes possível. Quando por volta de 1880 alguns professores franceses tentaram constituir uma moral leiga, argumentaram mais ou menos do seguinte modo: ‘Deus é uma hipótese inútil e penosa; suprimimo-la. Contudo, para que haja uma moral, uma sociedade, um mundo poli­ciado, é necessário sejam certos valores levados a sério e considerados de antemão como existentes; é necessário haja de antemão obrigação de ser honesto, de não mentir, de não espancar a esposa, de gerar prole, etc, etc. … Vamos, por conseguinte, realizar um trabalhinho que permita mostrar que tais valores existem, apesar de tudo, inscritos num céu inteligível, embora Deus não exista. Com outras palavras:… nada será alterado, se (declararmos que) Deus não existe; defrontar-nos-emos com as mesmas normas de honestidade, progresso, huma­nismo, e teremos feito de Deus uma hipótese ultrapassada, a qual morrerá tranqüilamente e por si mesma’.

Ora o existencialismo, ao contrário, julga ser muito incômodo que Deus não exista, pois com Deus desaparece toda possibilidade de encontrar valores num céu inteligível; não pode mais haver bem algum de antemão, já que não há consciência infinita e perfeita para o conceber; em parte alguma está escrito que o bem existe, que é preciso ser honesto, que é preciso não mentir, pois precisamente ficamos num plano em que só há homens. Dostoievsky escreveu: ‘Se Deus não existisse, tudo seria permitido’. Tal é o ponto de partida do existencialismo» (L’existencialisme est-il un humanisme? 1946, 34-36).

Sem Deus, não há lei, assegura Sartre com razão, pois lei baseada unicamente na vontade ou no bom senso de um homem carece de título autêntico para se impor a outro homem.

O chamado «positivismo jurídico» veio a lavrar destarte a destruição do próprio Direito. . . Tal é a última palavra da história.

O esboço histórico acima já nos habilita a considerar com mais clareza

3. Os fundamentos do Direito natural

1. O homem é, por sua natureza mesma, destinado a viver em sociedade; não há quem não se veja impelido a procurar seus semelhantes a fim de travar com eles uma comunhão estável de vida. E isto, por dois motivos principais:

a) a natureza humana, como ela se encontra em cada indivíduo, é incapaz de bastar a si mesma ou de atingir o termo das suas aspirações inatas. Com outras palavras: nenhum homem «se realiza» a sós; precisa, para tanto, do auxilio de outros;

b) existe em cada indivíduo uma tendência afetiva que o move a associar-se ao próximo.

A comunhão de vida assim suscitada efetua-se em âmbitos gradativamente mais amplos, isto é, na família, na tribo, na nação e na sociedade internacional. Esses tipos de comunhão de vida são naturais ou espontâneos ao homem.

Ora «ubi societas, ibi ius», reza o adágio; onde há sociedade, ai há Direito, isto é, sistema que oriente as relações dos homens entre si, coordenando as tendências de todos para a consecução do bem comum. Esse sistema não pode deixar de ter seus dita­mes naturais espontâneos, pois as tendências fundamentais são as mesmas em todos os homens. Em outros termos: assim como todo ser traz, gravadas no íntimo de sua natureza, as leis que regem o desenvolvimento de suas atividades, assim também o homem traz a sua lei natural, que tende a levá-lo à obtenção do seu último Fim. Daí dizer-se que existe um Direito natural.

2. O Direito natural, em última análise, não é senão uma participação da Lei eterna ou do conjunto de normas que a sabedoria do Criador concebeu a fim de encaminhar cada criatura para o seu Termo devido. Aliás, é essa índole de «participação da lei eterna» que comunica ao Direito natural um valor de «absoluto» ou de «constante» independente da vontade volúvel dos legisladores humanos.

Quanto às leis positivas humanas, elas não são de todo autônomas: sua função é a de explicitar e aplicar a casos concretos os princípios gerais contidos na lei natural e na lei eterna. Tal afirmação é ilustrada e comprovada não somente pelos testemunhos da história referidos no § 1 deste artigo, mas também pelas seguintes observações:

1) a expressão «lei injusta» não raramente, na linguagem cotidiana, aplicada às leis positivas humanas, significa bem que estas não constituem a fonte do Direito ou da justiça; a lei injusta é precisamente aquela que não leva na devida conta certas aspirações ou exigências dos indivíduos, aspirações ou exigências que se fazem ouvir antes do legislador e que este deveria ser o primeiro a auscultar. Às leis positivas humanas compete em primeira linha o papel de traduzir com fidelidade esses imperativos ditados pela estrutura natural de cada ser.

Uma comparação, por muito grosseira que seja, poderia ainda elucidar o pensamento: toda cadeira, por exemplo, tem sua estrutura própria, que exprime o objetivo e as normas de uso da cadeira; ela foi, sim, fabricada para servir de assento. A rigor, a cadeira pode ser utilizada em vista de outro fim; digamos:… para espancar o próximo. Contudo quem assim utiliza a cadeira, comete um ato de retorsão dos valores, contra o qual protestam as leis da arte ou o pensamento do artífice concretizado no artefato.

Ora o mesmo se dá no setor da natureza humana: não é lícito ao homem fazer uso arbitrário de suas funções naturais (psíquicas e físicas), pois estas são regidas por finalidades que nelas foram profundamente gravadas pelo primeiro Artista ou pelo Criador e que a vontade humana deve observar respeitosamente para não cometer ato hediondo. Assim o objetivo primário da função sexual é a procriação e educação da prole; em vista disto, a natureza exige união estável e indissolúvel de um varão com uma mulher, e exclui o anticoncepcionismo artificial. A propriedade particular, por sua vez, e exigência do desenvolvimento da natureza humana em cada indivíduo, etc.

2) A fim de salvaguardar a justiça ou os direitos das partes interessadas, é necessário fazer exceções às leis positivas. Isto de novo demonstra que o conceito de justiça ou de Direito é mais amplo do que o de lei positiva; é mesmo anterior à noção de lei positiva.

Destarte aparece vão o sistema do positivismo jurídico, segundo o qual toda lei e todo direito seriam exclusivamente dependentes da vontade do legislador. Na verdade — seja permitido repeti-lo — a este toca apenas a função de intérprete da lei eterna de Deus manifestada através da natureza humana ou através da lei natural. O homem é criatura, e não Criador. . . até mesmo no plano jurídico!

3. Uma observação ainda se impõe: embora se afirme a igualdade de aspirações inatas em todos os homens, faz-se mister reconhecer que não poucas populações viveram, e vivem ainda hoje, em contradição ora mais, ora menos flagrante com tais aspirações, principalmente no que diz respeito ao matri­mônio (prática da poligamia, do divórcio, do aborto…); a consciência desses povos parece, em grau variável, embotada, de modo que certas ações contrárias à natureza são por eles toleradas em termos oficiais e públicos. Que dizer desse fato à luz dos princípios que acabam de ser expostos?

O proceder de tais povos está longe de significar que não há Direito natural; quer dizer apenas que ao homem, colocado diante de um preceito, fica sempre a liberdade de o seguir ou não, a ponto mesmo de poder sufocar, parcial ou totalmente, os ditames da lei natural. O Autor da natureza, que é também o Autor do Direito natural, tendo dotado de liberdade o homem, jamais a retira; antes, suporta a derrogação das leis da natu­reza, a fim de que o homem, destinado a ser livre, não se veja rebaixado à categoria de autômato. Contudo, mesmo que as leis positivas de determinado povo contrariem, às leis naturais (o que se dá quando, por exemplo, permitem o divórcio, o aborto, etc), a natureza não deixa de fazer ouvir a sua voz de protesto, acarretando na sociedade múltiplos desajustes, tais como os que acometem os homens de nossos dias.

Em conclusão, apraz registrar aqui a proclamação dos «Direitos do homem» efetuada aos 10 de dezembro de 1948 pela O.N.U. em nome do gênero humano, proclamação que vem a ser em nossos dias uma afirmação pública do Direito natural (embora alguns dos fatores desse documento tenham intencionado fundar um Direito novo em vez de reforçar o Direito natural já existente).

À Igreja, por sua vez, sempre caberá a missão de afirmar o Direito natural, pois a ordem sobrenatural supõe a harmonia natural, tornando a Esposa de Cristo interessada por tudo aquilo que é humano; perante Deus, a Igreja vem a ser responsável pela conser­vação dos valores da própria natureza humana. Era esta concepção que Jacques Maritain exprimia ao Papa Pio XII, quando aos 10 de maio de 1945 se apresentava a S. Santidade como novo embaixador da França junto ao Vaticano; dizia, «em nome simultaneamente dos católicos e dos não-católicos…. que, se aqueles veneram em S. San­tidade… o Vigário do Verbo Encarnado e o Cabeça visível da Santa Igreja, os outros (não-católicos) se voltam respeitosamente para o Papa como sendo o Defensor do Direito natural, da dignidade humana, da justiça e da caridade do gênero humano…, valores que mais do que nunca necessitam… da autoridade moral e dos ensinamentos universais da voz consagrada à Verdade Divina» (cf. «Documentation Catholique» 10/VI/1945. col. 427).


Mais precisamente são focalizadas algumas determinações do Direi­to natural em fascículos anteriores de «P. R.»; assim o que se refere a:


amor e amor livre, em «P. R.» 13/1959, qu. 1;


divórcio, em 7/1957, qu. 4. 5 e 6;


aborto, em 6/1957, qu. 9: 8/1957, qu. 12; 25/1960, qu. 4;


propriedade particular, em 23/1959, qu. 5;


arte e moral, em 1/1958. qu. 11; 25/1960, qu. 5;


moral leiga, em 5/1958, qu. 8; 7/1958, qu. 5.

Sobre o autor