Espiritismo: uma vida ou muitas?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 442/1999)

por CARLOS G. VALLÉS

Em síntese: Carlos Vallés é um jesuíta espanhol que foi mandado para a Índia a fim de lá estudar. Começou a se interessar pela teoria da reencarnação e consultou vários mestres reencarnacionistas, dos quais ouviu muitas histórias a respeito como também a explanação de problemas ligados à tese da reencarnação. De seus estudos e reflexões resultou o livro que apresentamos abaixo, levando em conta principalmente as objeções que os mestres reencarnacionistas levantam contra a doutrina que professam. A lei do karma com seu caráter inexorável leva a um certo conformismo como também à insensibilidade para com o próximo que sofre, visto que lhe é necessário pagar pecados de vidas anteriores mediante o sofrimento imposto pelo karma.

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O Pe. Carlos Vallés é um jesuíta espanhol que foi enviado para a Índia a fim de estudar na Universidade de Madras. Lá chegando, nada entendia da língua local, mas sentia-se à vontade entre os colegas de turma, que também o acolheram com simpatia. Este fato despertou num jovem indiano a idéia de que C. Vallés fora indiano e vivera na Índia numa encarnação anterior. Impressionado por esta afirmação, o padre resolveu estudar a teoria da reencarnação ouvindo mestres indianos e refletindo sobre o assunto. O resultado desta pesquisa é o livro “Uma vida ou muitas? Os cristãos e a reencarnação”[1].

A obra é interessante porque aborda a temática de maneira original, ou seja, transcrevendo numerosos depoimentos de mestres que, apesar de sua profissão reencarnacionista, vêem na respectiva tese problemas ponderáveis.

O autor expõe os argumentos pró e contra a reencarnação e faz questão de nada concluir, deixando ao leitor a tarefa de optar, embora a tese da reencarnação não seja compatível com a fé católica. A seguir, examinaremos as dificuldades levantadas pelos mestres indianos contra a tese reencarnacionista e as reflexões de Carlos Vallés sobre as mesmas.

1. Preliminar

Logo no seu segundo capítulo o autor cita uma estória que bem evidencia a mente dos indianos reencarnacionistas: acabam comprazendo-se mesmo naquilo que a doutrina tenha de menos atraente:

«Um santo monge, próximo do fim de seus dias, pediu a Deus que lhe revelasse em que ou em quem se reencarnaria da próxima vez. Foram grandes a sua surpresa e a sua tristeza quando Deus lhe disse: ‘Você vai reencarnar em um porco. Olhe, a porca que você vê ali vai ter porquinhos, e o terceiro que nascer terá uma mancha preta no meio da testa; esse será você’.

O bom monge nunca imaginaria que por alguma falta oculta da qual ele nem sequer se lembrava, teria de encarnar-se num animal e, pior, no animal mais imundo de todos e desprezado em todas as culturas, cujo nome representa um insulto em todas as línguas humanas: o porco. Tinha de encontrar algum remédio para essa situação, e se pôs a pensar no que podia fazer.

Finalmente, teve uma idéia. Chamou seu discípulo favorito e lhe disse: ‘Estou metido numa encrenca. Deus me revelou que na próxima encarnação serei um porco, e gostaria de evitá-lo. Ele disse que eu serei o terceiro dos porquinhos daquela porca que ali está, que nascerá com uma mancha preta no meio da testa. Você que é meu discípulo tem de me obedecer sem contestar as minhas ordens. Pois bem, ordeno-lhe que preste muita atenção no que vai acontecer: procure o porquinho com a mancha na testa, o terceiro que nascer, deixe-o crescer por alguns dias para ninguém suspeitar e depois, quando começar a andar sozinho, pegue uma faca grande, e, quando ninguém o perceber, mate-o. É, mate-o. Isto é, mate-me a mim, pois você bem sabe: já que devo ser um porco, quero sê-lo o menor tempo possível. Mate-me logo, e assim logo poderei ser outra coisa. Seja ela qual for, não será pior que esta. Prometa que me obedecerá’.

Prometido. Tudo aconteceu segundo o previsto. Morreu o monge, deu à luz a porca, nasceu o terceiro porquinho com a mancha na testa, e o discípulo observava tudo com cuidado. Passados alguns dias, quando o porquinho andava por si próprio no meio do lixo, o discípulo aproximou-se dele, cercou-o num canto, pegou a faca e se dispôs a matá-lo. Então, o porquinho começou a gritar e dizer com voz humana: ‘Não me mate! Não me mate! Por favor, não me mate, deixe-me viver’. O discípulo, surpreso, perguntou: ‘Mas não me pediu que o matasse, e por justa causa?’ O porquinho respondeu: ‘É, eu pedi, mas quando via a vida do porco do ponto de vista do homem. Agora, vejo-a do ponto de vista do porco… E é magnífica! Olha, não tenho nada para fazer o dia todo, jogo-me na lama à vontade, posso comer qualquer coisa, pois tudo me faz bem, e as pessoas me deixam em paz, pois ninguém se quer aproximar de mim. Isso não é um castigo, é uma recompensa! Deixe que eu desfrute muito tempo isso, e muito obrigado por tudo, por ter-me obedecido e pela sua cooperação. Que Deus o abençoe e você possa tirar proveito desta minha última lição’» (pp. 15s).

Comenta Carlos Vallés: “esta história… é mais que uma história; é a expressão popular de uma antiga tradição teológica indiana”.

Vejamos agora a problemática.

2. Que é o Karma?

À p. 19 escreve o autor:

“Karma, em sânscrito, vem de kar, que significa ‘mão’ e se refere simplesmente a toda ação executada ou ao seu resultado. Engloba assim todas as ações ocorridas nas vidas passadas, cuja somatória, positiva ou negativa, determina nossa sorte na encarnação presente. Portanto karma quer dizer ‘sina’ ou ‘destino’, não como uma força cega externa à pessoa, que determina arbitrariamente aquilo que deve acontecer a cada um, mas como um caminho inevitável que cada pessoa forja para o presente com suas ações do passado. Se sofro agora, esse é o meu karma; isto é, se me comportei de determinada maneira em minhas encarnações anteriores, agora tenho de pagar com sofrimento o preço de meus desvios e excessos. Ao contrário, se agora tenho êxito, satisfação e sorte, é porque estou recolhendo o prêmio de minha boa conduta em vidas passadas. Esse é o meu karma“.

3. Dificuldade 1ª: faltam recordações

«Aqui vem a objeção. A memória é o substrato da pessoa. Sem memória para relacionar o ontem ao hoje na vida de um indivíduo, não existe biografia possível. Receber o prêmio ou o castigo pelas ações boas e más só tem sentido e efeito se nos reconhecemos, sentimos e lembramos como a pessoa que fez a ação no passado…

Sem memória não há pessoa, pois, embora o corpo físico exista como continuidade, a consciência permanente para avaliar hoje as ações de ontem não existe. A memória constante de ser quem somos dá consistência, permanência e continuidade a nosso ser consciente. Se perdemos totalmente a memória e não mais lembramos quem somos, perdemos também nosso passado, nossa história e nossa personalidade. Na prática, deixamos de ser nós mesmos» (p. 76).

«Somos instruídos a nos comportar bem nesta vida e, se possível, ser austeros e fazer penitência e jejum para receber o prêmio na próxima encarnação. Mas, após ter descoberto esse pequeno segredo, digo a mim mesmo: que jejum! Se eu jejuo nesta vida, vou passar fome e quem receberá o prêmio na próxima será (repito sempre: na prática) outra pessoa diferente de mim, pois na próxima encarnação “ela” não se lembrará absolutamente de “mim”, de modo que “eu” passo fome, e “ela” receberá o prêmio. Tenho vontade de fazer totalmente o contrário, ou seja, ter uma vida boa, ainda que para isso seja preciso quebrar normas e leis, e depois que “outro” pague o pato na próxima reencarnação. Eu não vou me preocupar com isso. Então, a teoria da reencarnação, que visa restaurar e motivar a ordem moral, na verdade a deteriora. Ela não serve» (pp. 76s).

«Castigar alguém por uma coisa da qual não se lembra, não tem sentido ético nem pedagógico. Aquele que não tem memória, não se pode arrepender de uma coisa que não lembra, tampouco corrigir o que não sabe» (p. 77).

«Os ladrões de grão reencarnarão em ratos; os de mel, em vespas; os de leite, em corvos; os de carne, em urubus. Aquele que violentar o leito do guru encarnará cem vezes em forma de ervas, arbustos e trepadeiras. O adultério se paga reencarnando numa família de chacais.

Esse catálogo ancestral pode ser contestado; porém, na Índia, ninguém contesta a implacável lei da retribuição imediata na vida seguinte» (p. 88).

«O ciclo ou, como dizemos na Índia, a ‘roda’ das reencarnações é enorme. Os números a esse respeito… não são exatos, e, se não devem ser tomados ao pé da letra, tampouco podem ser tratados com descaso. Revelam uma realidade impalpável na terminologia algébrica… Essa introdução é necessária para evitar caras feias quando eu mencionar o número das reencarnações pelas quais, segundo a crença hindu, deve passar cada ser vivo antes de chegar à libertação final no céu: são oito milhões e quatrocentas mil. De onde vem esse número? Não sei, mas sei que é expressão comum nos lábios indianos, nos diálogos de todos os dias. Gostaria de citar aqui, inclusive, a expressão que se pronuncia com um suspiro, ao se referir o longo caminho que nos trouxe até o momento presente, e que ainda nos falta percorrer até o fim: Lakh choriasi!…

Ainda temos muito caminho a percorrer. Aqui está o interessante. Embora o caminho seja longo, nós que já alcançamos o nível humano, estamos muito perto do fim. Este é o assunto favorito dos pregadores indianos: estamos quase tocando o céu com as mãos; estamos dando os últimos passos após um longo, longuíssimo percurso; adquirimos finalmente o corpo humano, resultado feliz de grandes méritos conquistados e última etapa da reta final. Vamos, agora, desistir, perder terreno, regredir, adiar a entrada definitiva na glória eterna? Não! Ânimo! Vamos em frente! Um último esforço e estaremos lá! Já avistamos a meta, e lá vamos nós com fé e determinação etc. etc. etc. Não há púlpito indiano no qual não tenha sido repetida uma e outra vez esse sermão» (pp. 23s).

4. Dificuldade 2ª: mero adiamento e não solução

«Segundo a doutrina da reencarnação, terei outra oportunidade… para corrigir meus desvios e alcançar o céu quando decidir comportar-me bem. Mas… e se eu não decidir? E se eu teimar em continuar descendo, ao invés de subir, em afundar em vez de me elevar, me purificar e santificar para alcançar a felicidade eterna? Sou livre para fazê-lo … Se não sou forçado a comportar-me bem numa vida, tampouco serei forçado a fazê-lo em milhões de vidas. A diferença reside apenas no tempo; mas, se continuo sendo livre, aconteça o que acontecer ou demorando o tempo que for preciso, ninguém poderá levar-me para o céu à força, nem mesmo por meio de inúmeras reencarnações. A reencarnação consegue apenas retardar a crise, porém não modifica o resultado. É um simples adiamento, não uma solução. Estamos outra vez como no início.

O Mul-lá Naserudín apresentou-se para um exame de história, mas foi reprovado. Na segunda vez que se apresentou, os examinadores tentaram facilitar-lhe a prova, fazendo-lhe as mesmas perguntas e imaginando que as tivesse estudado e pudesse responder-lhes corretamente. Mas não foi assim, e ele foi novamente reprovado. Na terceira vez, aconteceu a mesma coisa. Então, seus amigos lhe disseram: ‘Como é que não consegue aprovação, se o exame é tão fácil?’ E ele disse: ‘Eles sempre fazem as mesmas perguntas, e eu sempre dou as mesmas respostas’. E, claro, sempre alcançava o mesmo resultado» (pp. 86s).

5. Dificuldade 3ª: Conformismo

Carlos Vallés transcreve, às pp. 97-99, reflexões de Kálelkar, fiel discípulo de Gandhi e reencarnacionista:

“Vou esclarecer agora os pontos sobre os quais não concordo com os ortodoxos religiosos. Devemos investigar as causas de todas as coisas, e os avanços da ciência em tais investigações têm sido admiráveis. Não devemos cessar até encontrar provas e demonstrações satisfatórias dos acontecimentos e fenômenos. A esse respeito nossos devotos conservadores e rígidos crentes não se dão ao trabalho de investigar ou procurar provas, mas em cada caso, simplesmente, colocam a reencarnação como resposta; e isso é tudo. Se uma pessoa se comporta de maneira estranha, em vez de procurar um psicólogo, diz que ‘se trata de resíduos de sua encarnação anterior’. Essa resposta é pura preguiça intelectual e negação do espírito científico. É, simplesmente, estupidez, e nada tem de fé religiosa. Eu acho que todos temos de investigar os elementos de nosso tempo e de nossa vida e perscrutar suas causas secretas. Só após tal atitude podemos entrar no terreno da reencarnação. Não aceito um princípio que se baseia na preguiça. O princípio da reencarnação tem agido como anestésico na consciência e na inteligência da sociedade. Impede o progresso, as reformas e as melhoras. Eu me oponho a isso” (p. 202).

Depois diz:

“Temos uma indigestão e ficamos dizendo que é castigo por um pecado numa vida anterior. Quando somos reprovados num exame, em vez de reconhecer que estávamos mal preparados, procuramos uma causa oculta pelo destino fatal prefixado em vidas passadas” (p. 195).

«Em nossa língua gujarati… existe uma expressão que resume essa triste atitude e que ouço muito freqüentemente com grande pena. Se acontece a uma pessoa algo desagradável, costuma-se dizer: ‘É a tua testa’. Supõe-se que nos ossos da testa levamos gravado de forma indelével nosso futuro nesta vida, decretado pela nossa conduta numa vida anterior. As suturas dos ossos do crânio desenham essa escritura indecifrável, que determina infalivelmente aquilo que nos vai ocorrer. Não podemos mudá-lo, como não podemos mudar nossa cabeça. Está escrito em nossa testa. Temos de nos resignar.

A resignação é boa e até pode ser uma virtude, se se enquadra em certos limites razoáveis. Mas, se for exacerbada, poderá dar lugar ao fatalismo (destino, fado…) e à preguiça mais radical. E isso já não é virtude, mas uma paralisia malsã do pensamento e da ação» (pp. 97-99).

Pouco adiante escreve C. Vallés:

«Quando a crença na reencarnação se une à astrologia, como costuma acontecer, pode ter efeitos devastadores. A reencarnação nos traz ao mundo num novo nascimento com as cargas dos anteriores. A astrologia estuda o horóscopo, isto é, o mapa astral do universo no preciso instante desse nosso nascimento e lê nele as linhas do karma que trazemos conosco para a vida. A força da astrologia vem da interpretação do karma. Todos sabemos que o karma é a lei inquebrantável que comanda nossas vidas, e o conhecimento que dele adquirimos, por meio da astrologia, pode ter grande influência em nosso modo de conhecermos a nós mesmos e nos defrontarmos com a vida. Por isso na Índia a astrologia tem tanta importância e nada se empreende sem uma consulta prévia ao astrólogo. As estrelas sabem tudo» (p. 101).

6. Dificuldade 4ª: Laxismo Moral

«O suposto descobrimento de parentescos próximos em vidas passadas pode dar lugar a uma conduta imoral nesta vida. Infelizmente, isso não é tão teórico quanto parece. Escreve Kálelkar:

‘Sinto certo constrangimento em citar outro exemplo, mas não tenho outro remédio. Um homem sentiu atração por uma mulher casada e resolveu consultar seu guru, a quem fazia grandes doações. O guru lhe disse: ‘Os dois foram marido e mulher em vidas passadas e…’ (p. 205). Se há um delito que destrói a sociedade, é o adultério; portanto, invocando parentescos em vidas passadas, existiram ‘homens santos’ que justificaram essa conduta. Disso há inúmeros exemplos em nossos Puranas (escrituras antigas hindus)’ (p. 195).

Há pouco tempo, na minha cidade de Ahmedabad os jornais noticiaram na primeira página um escândalo que estarreceu a consciência pública: numa instituição religiosa, num povoado próximo da capital, um suposto mestre espiritual enganava as damas da mais alta sociedade de Ahmedabad, dizendo que em encarnações anteriores tinham sido suas esposas e que agora ganhariam grande mérito se reatassem essa íntima relação com quem hoje era um mestre espiritual de grande fama e reconhecida santidade. As notícias a respeito se avolumavam dias após dia e, embora a imprensa não citasse nomes, o falatório popular o fazia com facilidade. Demorou algum tempo para que a queixa tomasse corpo, as autoridades fossem alertadas e o mestre trasladasse seus parentescos para outro lugar.

Esses excessos não são comuns, mas dão uma idéia da desordem que sobreviria se começássemos a ter consciência de quem éramos na vida passada e quem eram os que hoje nos rodeiam. Não haveria árvore genealógica que agüentasse…» (pp. 107s).

7. Dificuldade 5ª: Ofensa a quem sofre

«Os dois últimos argumentos de Kálelkar caminham lado a lado e são, a meu ver, os mais fortes. O primeiro refere-se ao insulto pessoal que se faz àquele que sofre nesta vida quando lhe dizem que sofre por ter sido uma pessoa má na vida passada; o segundo, à injustiça social que se impõe a indivíduos ou grupos condenados a sofrer ‘o que merecem’ e pelo qual devem passar necessariamente, se desejam melhorar suas possibilidades de salvação eterna. Ou seja, além do sofrimento atual, lhes é imputada a acusação moral do merecimento, uma vez que, embora pareçam agora pessoas boas, com certeza em outras vidas comportaram-se muito mal, a julgar pelo justo castigo que receberam.

A teoria da reencarnação não pode servir, se transforma cada homem e mulher que sofre em um criminoso que sofre justa condenação por delitos penais. Agrava a situação em vez de aliviá-la. Longe de nos inspirar compaixão,

leva-nos a pensar – se não temos coragem de falar diretamente -: ‘Você merece esse castigo por ter feito o que fez em outra vida’. É muito duro, mas essa é a conclusão lógica.

Hospedei-me numa casa cuja mãe de família contou-me o seguinte: seu filho caçula nascera sadio, mas aos dois anos contraíra poliomielite. Não tendo sido tratado em tempo, ficou aleijado para toda a vida. Quando cheguei àquela casa, ele tinha cinco anos e dava muita pena vê-lo, na sua inocência transparente e na beleza infantil, arrastando pelo chão as pernas inúteis. Sua mãe contou-me tudo, acrescentando: ‘Tão bom e maravilhoso parece este menino…! Porém, algo de muito ruim deve ter feito em sua vida passada para que agora lhe aconteça isso. E, claro, também eu devo ter feito alguma coisa muito ruim para que agora tenha de ser a mãe de um menino aleijado…’ Falou com muita naturalidade e resignação, porém suas palavras calaram fundo em mim. Naquele momento não podia contestar suas crenças nem tinha uma resposta melhor para lhe oferecer; portanto, fiquei quieto. Mas interiormente rebelei-me diante daquela demonstração prática das conseqüências lógicas da reencarnação. Como se não bastasse àquele menino inocente a desgraça de ser aleijado, recaía sobre ele agora a condenação de ser mau… Fui embora triste daquela casa.

Quando o Estado de Gujarat, onde moro, foi declarado independente, a pessoa encarregada de presidir à cerimônia de inauguração e de implorar a bênção de Deus sobre a nova unidade administrativa e lingüística foi o personagem mais querido e venerado em toda a região: Ravishankar Maháraj. Discípulo de Gandhi, trabalhador social, de grande estatura, da casta dos brâmanes, caminhante incansável pelos campos e povoados mais remotos do Gujarat, pregador popular e escritor inspirado, ele encarnara melhor que ninguém o ideal de santidade pessoal e serviço desinteressado aos mais pobres, que Gandhi tinha pregado com sua palavra e seu exemplo. Um corpo nobre e uma boa saúde são herança de boa conduta em encarnações anteriores, e ele, com a estatura – que lhe valeu o apelido de ‘um-palmo-mais-alto’ -‘ a dieta de uma só refeição por dia, à base de arroz e lentilhas, e seus mais de cem anos em plena energia, era imagem e lenda de pureza de alma traduzida em fortaleza de corpo. Perto dos cem anos, sofreu um pequeno acidente: escorregou enquanto tomava banho e quebrou o fêmur. A fratura foi notícia em todos os jornais. O comentário que escutei de uma e outra boca naquele dia, me fez sorrir interiormente, ao constatar que nunca termino de entender este país secreto e milenar, onde tenho passado o melhor de minha vida, sem ainda ter atingido seu mistério. Dizia-se: ‘E nós que acreditávamos que ele era santo…! Deve ter feito alguma coisa errada para agora ter quebrado a perna’. A fratura do fêmur estragou-lhe a auréola de santidade. Agora, terá de esperar até a próxima reencarnação.

Nessa mesma cidade, um monge de reconhecida santidade sofria da próstata. É uma doença comum em homens com mais de cinqüenta anos, mas o monge sentiu vergonha de manifestá-la, pela relação entre um problema físico e a culpa moral. Quando os sintomas se agravaram, adotou uma saída extrema: declarou o ‘suicídio sagrado’, isto é, a partir de determinada data deixaria de se alimentar, com desprendimento total e absoluto de apoio humano, até chegar à morte por inanição, que o levaria à purificação final e salvação imediata. Assim fez. Seu abatimento foi motivo para peregrinação na cidade, durante os dias que durou sua severa agonia. Quando morreu, seu cadáver, sentado na posição de lótus num carro e coberto de guirlandas de flores, foi levado em devota procissão póstuma pelas ruas da cidade. Os que conheciam seu segredo, calaram discretamente diante da devoção popular. O monge salvara a própria reputação.

Esses são casos extremos, que revelam a tendência geral. Tudo que acontece nesta vida, tem sua explicação na vida anterior; portanto, toda dor é filha de uma culpa e, enquanto cumprimos a penitência, pedimos perdão. Como a personalidade, conforme a reencarnação, permanece ao longo dos nascimentos, quando a dor nos aflige, somos pessoas de conduta infame que mereceram num passado próximo o castigo presente. Essa atitude faz com que nos sintamos culpados diante de nós mesmos e condenáveis diante dos outros. Isso favorece nosso complexo de culpa e, pior ainda, a condenação implícita daqueles que vemos sofrer. Tal condenação é injusta, tanto em sua dimensão pessoal de desprezo da pessoa como em sua dimensão social de opressão de um grupo, família ou casta» (pp. 109-112).

8. Dificuldade 6ª: as castas

Escreve Carlos Vallés:

«O nascimento de cada pessoa é determinado inexoravelmente por suas obras na encarnação anterior. Aqueles que se comportaram bem, agora são brâmanes, e os que se comportaram mal são párias. Cada um recebeu o que merece e agora só deve cumprir sua obrigação – que inclui o dever de comportar-se conforme sua casta e ocupar nela o seu lugar -, e nessa ordem de classes situa-se o bem-estar da sociedade. É impossível mudar de casta. Um pobre pode ficar rico e um rico pode ficar pobre, mas o brâmane será sempre brâmane nesta vida e o pária, sempre pária. Qualificação cruel que castiga a sociedade. Nada mudará até a encarnação seguinte.

Uma vez mais, o insulto soma-se ao sofrimento. Nascer pária é uma grande desgraça. E ainda nos dizem que o merecemos; que, se nascemos párias não é por causa de uma desgraça inesperada, mas é um castigo proporcional à nossa iniqüidade. Se esse castigo é tão grande, qual terá sido a nossa culpa? Nascemos marcados pelo estigma do desprezo. Somos criminosos desde o berço e viveremos sempre subjugados pela humilhação de saber que somos culpados pelas baixezas mais hediondas, as quais nos condenam a viver neste triste estado e revelam nossa vilania por meio da cor escura de nossa pele, nossos traços físicos repugnantes e nosso andar acabrunhado e contrafeito. A única libertação está na morte. Aqui a cumplicidade do grupo se une à responsabilidade da pessoa. Não apenas o indivíduo é culpado e desprezível, mas seus pais, irmãos, toda a sua família e amigos e o grupo inteiro de párias que se unem à sua miséria e se definem como o nível mais baixo do gênero humano, merecedor de humilhação, desprezo e opressão. Agora podemos entender, de verdade, as palavras de Kálelkar contra os que pensam desse modo:

‘Essa gente se apóia na reencarnação para perpetrar toda classe de injustiças e atropelos à sociedade. Se temos de dar um exemplo terrível disso, aí estão os ‘intocáveis’: os párias. Geração após geração, oprimimos os ‘filhos de Deus’, deixando-os indefesos e incapazes de se refazer. Para justificar tão grande injustiça e pecado, os ortodoxos repetem: ‘Na vida passada você cometeu graves pecados, razão pela qual nasceu pária. Sua obrigação agora é servir às castas altas com humildade e fidelidade. Sofrer toda injustiça como penitência por seus pecados e assim, após sete encarnações, lhe será concedida uma casta mais alta’: Agora – acrescenta com ironia – os párias estão reagindo e clamando por justiça, organizando-se para rejeitar as crueldades a que são submetidos… Então, os ortodoxos começarão a sofrer e pensar que isso lhes acontece, porque (os ortodoxos) cometeram graves pecados em vidas passadas» (p. 204).

«O mesmo Joe Fisher, no livro que citei várias vezes e que escreveu em defesa da reencarnação, com tristeza escreve o seguinte:

‘O sistema de castas na Índia é o reflexo mais triste da crença na reencarnação. A casta na qual a pessoa nasce, é conseqüência direta de sua vida anterior e não pode ser mudada. Isso deu lugar a acusações de que o sistema favorece o estancamento social, a resignação, a insensibilidade, o sofrimento e a opressão. A esperança de se obter alguma melhora nesta vida torna-se praticamente nula para milhões de nativos. A única coisa que pode mudar é a posição da pessoa na vida seguinte e, segundo dizem, em grande parte o que determina esse estado é precisamente o grau de fidelidade da pessoa no cumprimento dos deveres e proibições de sua casta nesta vida’ (p. 92).

Ambos os testemunhos exprimem uma situação que pode ser qualificada de diabólica: a pessoa fica presa a seu nascimento desonroso, e a única maneira de sair dele consiste em obedecer fielmente às regras que a obrigam a aceitar sua miséria e servir humildemente às castas superiores. Os membros de tais castas sabem muito bem disso e aproveitam para se fazer servir por esses seres inferiores e, ainda, humilhá-los por sua baixeza e lembrar-lhes que sua única esperança de salvação está em comportar-se bem e servir com fidelidade a seus amos natos» (pp. 116-118).

Conclusão

Detivemo-nos na análise do livro de Carlos Vallés, pois oferece informações pouco conhecidas ao público ocidental; apresenta a encarnação tal como é vista em seu ambiente de origem, como doutrina que marcou profundamente a cultura indiana. O Ocidente é menos pessimista quando professa a reencarnação. Todavia tanto no Oriente como no Ocidente o retorno à carne é sinal de imperfeição, que só pode ser considerado negativamente, com desdém da corporeidade. Ora isto não se coaduna com a visão cristã do mundo e do homem, como se demonstrará no artigo seguinte.

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Nota:

[1] Tradução de Yvonne Maria de Campos Teixeira da Silva. – Ed. Loyola, São Paulo, 1998, 130x190mm, 141 pp.