Evangelhos: a historicidade dos evangelhos

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 427/1997)

por José Miguel Garcia

Em síntese: Ao passo que no século passado os críticos propunham a redação dos Evangelhos em datas muito distantes de Jesus, adentrando-se por decênios no século II, afim de “dar o prazo” necessário à criação do mito “Jesus Deus e Homem”, muitos dos críticos do sécu­lo XX têm outra perspectiva. Não são guiados por premissas filosóficas apenas, mas pela evidência de numerosos papiros antigos que vêm sen­do descobertos e interpretados; estes mostram que a redação dos

Evan­gelhos ocorreu em datas muito próximas de Jesus. Como espécimens de tais descobertas, podem-se citar a de José O’Callaghan S. J., que atribui a redação de Marcos a meados do século I, e a Carsten Peter Thiede, que chega a semelhante conclusão com referência a S. Mateus.

O Pe. José Miguel Garcia, por outra via, defende a antigüidade da composição dos Evangelhos: julga que muitas das passagens respecti­vas só podem ser adequadamente entendidas se traduzidas para o aramaico, que era a língua falada por Jesus e pelos primeiros pregado­res, da Palavra. Isto demonstra que o texto grego dos Evangelhos vem a ser uma quase tradução da pregação de Jesus e dos Apóstolos.

***

A fixação da data de origem dos Evangelhos é ponto muito delica­do, pois está ligada à questão da historicidade e fidelidade histórica dos mesmos.

No século passado, os críticos impregnados de racionalismo, atribuíam à origem dos Evangelhos datas tardias, distanciando-a de Je­sus por decênios ou mesmo mais de um século. Com isto queriam “dar um prazo” para que a figura de Jesus fosse aureolada, embelezada e endeusada pelos discípulos; afinal a história de Jesus narrada pelos evangelistas teria muito pouco de Fidedigno e muito de ficção. É o que exprime o quadro abaixo:

S.Mateus S.Marcos S.Lucas S.João
Baur 1847

130-134

150

cerca de 150

160-170

Volkmar 1870

105-110

75-80

cerca de 100

150-160

Keim 1873

68

120

90

130

Hilgenfeld 1875

70

81-96

100

120-140

Renan 1877

84

76

94

125

Holtzmann 1885

87

68

70-100

100-133

Weiss 1890

70

69

80

95

Jülicher 1894

70-100

80-120

após 100

81-96

Réville 1897

a breves intervalos entre 98-117

130-140

Harnack 1897

70-75

65-70

78-93

80-110

 

No século XX, o quadro tem mudado. Muitos dos estudiosos não se guiam apenas por premissas filosóficas, mas têm a seu dispor um novo acervo de material papiráceo, que evidencia datas muito mais próximas de Jesus para redação dos Evangelhos. Com efeito; a papirologia ou a descoberta e o estudo de papiros antigos têm levado a ver que os Evangelhos datam do século I; a Palavra escrita parece fazer eco direto à pregação oral dos Apóstolos” Já citamos a propósito o caso de José O’Callaghan S. J., que julga poder situar a redação de Marcos em mea­dos do século I; ver PR 288/1986, pp. 194-200. Foi citado também em PR 398/1995, pp. 290-294 o trabalho de Carsten Peter Thiede, que che­ga a conclusão semelhantes para o texto de S. Mateus.

O Pe. José Miguel Garcia propõe as mesmas teses analisando o texto grego dos Evangelhos à luz de uma possível tradução aramaica do mesmo; verifica que vinte ou mais passagens obscuras ou controverti­das dos Evangelhos se tornam, claras ou mais inteligíveis se se supõe um arquétipo aramaico subjacente ao atual texto grego. Isto quer dizer que o texto escrito dos Evangelhos é a ressonância grega da pregação aramaica de Jesus e dos primeiros discípulos. Há, pois, continuidade entre Jesus e o texto escrito dos Evangelhos; este não refere as idéias imaginosas de antigas gerações cristãs, mas sim o conteúdo da mensa­gem apregoada pelo próprio Senhor Jesus.

O texto que se segue, é o de uma conferência proferida pelo Pe. José Miguel Garcia no Rio de Janeiro aos 18/9/97. – O autor é Doutor em Teologia pela Faculdade de Teologia do Norte da Espanha, com sede em Burgos. Em 1980/81 estudou na École Biblique de Jerusalém sob a orientação do famoso Pe. Prof. Pierre Benoh O. P., obtendo o título de Aluno Diplomado. A seguir, dedicou-se intensamente aos estudos bíbli­cos, consagrando-se muito especialmente às pesquisas concernentes ao texto grego e a uma possível versão aramaica do mesmo.

A nossa revista é muito grata ao Pe. José Miguel Garcia pela vali­osa colaboração que lhe presta.

I. Introdução

No ano 253 houve uma grande peste na cidade de Alexandria. Daquela epidemia, que açoitou por igual pagãos e cristãos, nos dá notí­cia uma carta de Dionísio, o bispo da referida cidade. Nela descreve o comportamento dos cristãos com estas palavras.

“A maioria dos nossos irmãos, por excesso de seu amor e de seu afeto fraterno, esquecendo-se de si mesmos e unidos uns aos outros, visitavam sem precaução os enfermos, serviam-nos com abundância, cuidavam deles em Cristo e até morriam contentíssimos com eles, constrangidos pelo mal dos outros; atraiam sobre si a enfermidade do próximo e assumiam voluntariamente suas dores. Muitos que curaram e fortalece­ram a outros, morreram, transferindo para si mesmos a morte daqueles e convertendo em realidade o dito popular, que sempre parecia mera cortesia: ‘Despedindo-se deles como humildes servidores’. Em todo caso, os melhores de nossos irmãos partiram da vida deste mundo, presbíteros alguns -, diáconos e leigos, todos muito elogiados, já que este gênero de morte, por muita piedade e fé robusta que entranha, em nada parece ser inferior ao martírio. Assim, tomavam com as palmas de suas mãos e em seus regaços os corpos dos santos (cristãos), limpavam-lhes os olhos, fechavam suas bocas e, agarrando-se a eles e abraçando-os, depois de lavá-los e envolvê-los em sudários, os levavam nos ombros e os enterra­vam. Pouco depois, recebiam eles estes mesmos cuidados, pois sempre os que ficavam seguiam os passos de quem os precederam.“.

E, acrescenta, referindo-se aos cidadãos não cristãos:

“Ao contrário, entre os pagãos dava-se o oposto: apartavam os que começavam a adoecer; evitavam os mais queridos e atiravam moribundos às ruas e cadáveres insepultos ao lixo, tentando evitar o contágio e a companhia da morte, tarefa nada fácil até para os que tinham mais interesse em executá-las“[1].

Lendo o relato, salta-nos à vista o contraste entre os dois modos de se comportar. Tal contraste deve ter parecido evidente aos olhos dos vizinhos e familiares dos cristãos de Alexandria. E, todavia, uns e outros eram homens e mulheres da mesma raça, vestiam e falavam a mesma língua, compartilhavam com eles as mesmas casas, praças e mercados, realizavam com empenho as mesmas tarefas e trabalhos. Que é que levava os cristãos a proceder de modo tão diferente? Qual era a origem desta humanidade nova? Dionísio de Alexandria no-lo disse rapidamen­te, como se fosse algo conhecido por aqueles aos quais escrevia sua carta: “por excesso de seu amor fraterno cuidavam deles em Cristo”. A origem não era um dever, nem a força de sua decisão, nem muito menos a recordação sentimental de algo sucedido no passado. Tudo realiza­vam dentro de uma presença real que haviam encontrado, Cristo, movi­dos pelo amor mútuo que esta presença, presente no meio deles, havia gerado. A novidade de vida nascia de algo diferente de suas capacida­des, de algo exterior a eles e atuava neles. Sua vida diferente, mudada, era sinal de outra coisa. Eram como seus concidadãos pagãos, porém em sua humanidade florescia algo que vinha de Outrem.

Como nos informa o autor deste relato, o comportamento daqueles cristãos foi o motivo pelo qual muitos pagãos se aproximaram da fé cristã. Na realidade, alguém se interessa por um passado por causa de um pre­sente atraente, fascinante. Se nos interessa uma mostra sobre a origem do Cristianismo, é pelo encontro feito com esta humanidade transformada. Acontece-nos o que se dá com o rapaz apaixonado: preocupa-se em co­nhecer a história passada, a infância e a adolescência da moça que ama, por causa da experiência de afeto real que tem por essa pessoa viva que encontrou e acompanha. Naturalmente, uma pessoa não se interessa pelo Cristianismo através do exame de sua história ou da leitura dos Evange­lhos. Como na origem, como no século IV, também hoje tudo começa com um encontro humano, que nos faz contemporâneos ao acontecimento cris­tão, quer dizer, a Cristo. Um encontro humano no qual se percebe uma correspondência com os desejos do coração, com a ânsia de humanidade, de vida, que alguém experimenta no seu íntimo; em tais casos, aquelas pessoas encontradas contêm uma Presença que se experimenta e se reco­nhece como resposta às exigências e perguntas que a realidade nos des­perta. Por isto alguém é atraído, fascinado por esses homens mudados. Dito com outras palavras: em um fato presente se manifesta e se reconhece um acontecimento do passado, que se revela como significado e origem do fato presente. Se alguém recém-chegado a Alexandria durante a peste, surpreendido pelo modo de se comportar dos cristãos, perguntasse a al­gum deles: “Quem sois vós?”, esse mesmo não poderia responder de modo adequado, não daria uma razão suficiente, a não ser referindo-se a um fato passado, no qual começou a história, a novidade da qual participa. Se não se chegasse àquela origem, não se chegaria a compreender o que sucede no presente; o que percebem os sentidos, é incompreensível, se não se reconhece o acontecimento passado que o origina. A excepcionalidade do fato presente, da pessoa mudada que encontro, nasce daquele aconteci­mento do passado. Um acontecimento que está narrado nos Evangelhos.

2. Uma Tradição Sagrada

A peculiaridade destes livros reside principalmente no seu conteúdo, que se propõe como acontecimento único: o fato de que Deus se fez ho­mem em Jesus, para ser companhia e Salvador do homem. Proclamam algo nunca ouvido: que um homem, Jesus de Nazaré, é Deus. Os Evangelhos são o testemunho daqueles que encontraram Jesus e conviveram com Ele. Nestes livros recolheram as palavras e os atos de Jesus de Nazaré, sua vida de pregação, Paixão, morte e ressurreição. Mas, sobretudo, através da narração destes acontecimentos anunciam quem é este Jesus, qual é a sua “pretensão”. Não transmitem apenas uma doutrina ou um conjunto de ver­dades, mas também o ser de uma pessoa. De fato, o motivo principal pelo qual foram escritos os Evangelhos, segundo se lê neles, é comunicar a todos este acontecimento extraordinário, é conhecer Jesus. Ao final de seu Evangelho, São João afirma: “Isto foi escrito para que creiais que Jesus é o Messias, o Filho de Deus” (Jo 20,31). Ou, como disse São Lucas no prólogo a seu Evangelho: “… para que conheças a firmeza dos ensinamentos que recebeste de viva voz”; isto quer dizer: o que foi anunciado, e que não é outra coisa senão o visto, contemplado e tocado pelas testemunhas, como afirma São João na sua primeira carta (cf. 1Jo 1,1-4).

São documentos, pois, vinculados à intenção de anunciar, de dar a conhecer algo que aconteceu e que se reconhece como vital para a vida do homem. Compreende-se facilmente que todos aqueles que cre­ram em Cristo, tenham manifestado por esses escritos um afeto, uma predileção especial. A Igreja, desde os seus primórdios, como nos infor­mam as notícias dos antigos Padres da Igreja (Papias de Hierápolis, Inácio de Antioquia, Irineu de Lião, Justino, Clemente de Alexandria, etc.), os venerou e leu publicamente em suas celebrações. Assim mantinha viva a memória do que havia sucedido. Ao mesmo tempo, serviam de critério para discernir a verdade da experiência transmitida por aqueles que ha­viam sido testemunhas desse acontecimento nunca escutado.

O motivo da veneração da Igreja por tais livros reside certamente em que falam de Jesus, ou seja, daquele que é a origem e o sentido da própria Igreja. Mas, também… porque transmitem a pregação de Jesus; são suas palavras e seus atos, venerados desde o início como tradição sagrada. O exegeta escandinavo H. Riesenfeld, em seu famoso trabalho sobre as origens da tradição evangélica, publicado em 1959, afirma:

‘As palavras de Jesus e as narrações de seus atos foram concebi­dos desde uma data muito antiga como uma nova e definitiva Aliança’.

Segundo este estudioso, certamente a causa pela qual a tradição das palavras e atos de Jesus foi considerada como sagrada, é não so­mente o conteúdo da mesma, mas também a sua origem: deriva do mes­mo Jesus. De fato, nos Evangelhos aparece Jesus como um Mestre que instrui seus discípulos. E, mais, neles se faz menção explícita à transmis­são de uma doutrina: “Ele os instruía” (cf. Mt 13,11; Mc 9,30; Lc 11,1, etc). Isto significa que Jesus fez seus discípulos e, antes de tudo, os Doze aprender; mais ainda… que os fez aprender de memória. suas pa­lavras[2]. De fato, muitas palavras de Jesus foram cuidadosamente formu­ladas com vista à sua transmissão. Com isto, não se pretende afirmar evidentemente que os Evangelhos, tais como nos chegaram, provêm de Jesus. Sem dúvida alguma, os evangelistas, ,para escrever seus livros, tiveram que recolher as palavras e os relatos, agrupá-los e dar-lhes um marco definitivo, trabalho do qual nos informa São Lucas no começo de seu Evangelho (Lc 1, 1-4). Porém, certamente, esta tradição que se cris­talizou em nossos Evangelhos, se memorizava e recitava como palavra sagrada, em virtude do fato de que suas origens e linhas fundamentais estão em Jesus como Mestre de seus discípulos.

Por algumas afirmações contidas no Novo Testamento – segue afir­mando H. Riesenfeld – sabemos que esta tradição sagrada foi transmiti­da não de forma anárquica e anônima, como sustentam certos estudio­sos da história das formas (Formgeschichte), mas seguindo leis pré-estabelecidas e através daqueles designados para tal fim: os apósto­los[3]. Com efeito, algumas passagens da obra de São Lucas afirmam que uma das principais obrigações dos Doze era, junto com a pregação e o cuidado das comunicações, o serviço da Palavra (At 6, 2). E, no prólogo de seu Evangelho, ao informar-nos da existência de outros relatos se­melhantes, situa sua origem na “transmissão daqueles que, desde o iní­cio, foram testemunhas oculares e convertidos em ministros da palavra” (Lc 1,2). Daí a importância, depois da traição e morte de Judas Iscariotes, de encontrar um substituto, como disse São Pedro em seu breve discur­so no primeiro capítulo dos Atos, “entre os homens que nos acompanha­ram todo o tempo em que viveu entre nós o Senhor Jesus, a partir do batismo de João até o dia em que do nosso meio foi arrebatado para o alto” (At 1, 21s). A eles corresponde a transmissão desta tradição sobre Jesus, desta palavra sagrada, que data de muito cedo, como dissemos, e que é considerada a palavra de Deus da Nova Aliança.

O lugar onde se recitava ou proclamava o conteúdo desta tradi­ção eram as assembléias de comunidade.

Desde então, até hoje, a Igreja proclama os santos Evangelhos nas celebrações eucarísticas, indicando que o Evangelho só pode ser lido e compreendido na Igreja. Quer dizer, a verdadeira compreensão só se dá se se participa da experiência humana que a gerou…, do mesmo modo como a poesia amorosa só é compreensível a quem participa des­sa experiência humana, ou uma sinfonia clássica só é apreciada por quem está familiarizado com tal tipo de música. Pois bem, como a tradi­ção sagrada da Antiga Aliança, recolhida nos livros do Antigo Testamen­to, era proclamada nas celebrações rituais judaicas da sinagoga e do Templo, de modo igual foram também as celebrações próprias do Cristi­anismo o contexto de proclamação da Palavra de Deus na Nova Aliança, ou seja, da tradição de Jesus. Pelos Atos dos Apóstolos sabemos que os cristãos de Jerusalém participavam do culto judaico e ali escutavam a leitura dos livros da Antiga Aliança e rezavam as orações que haviam aprendido quando crianças. Contudo, junto à sua participação no culto judaico, desde o começo, a comunidade cristã se reunia em casas par­ticulares para a fração do pão, a oração e o ensinamento dos Apósto­los (At 2, 42). É natural considerar este ensinamento apostólico, antes de tudo, como a narração dos atos e das palavras de Jesus. Certamente não só como um complemento ao ensinamento que recebiam na sinago­ga, mas como seu cumprimento. Esta é a razão, provavelmente, pela qual as palavras e os atos de Jesus não se encontram citados nas pre­gações missionárias e, muito raramente, nas instruções à comunidade, como observamos nas epístolas recolhidas do Novo Testamento. Não obstante, a pregação missionária e a instrução às comunidades pressu­punham e dependiam das palavras e dos atos de Jesus.

Evidentemente o número de “tradentes” autorizados (aqueles que tinham a permissão de transmitir esta tradição) cresceu com a difusão do Cristianismo, ou seja, ao aumentar o número das comunidades. Prova­velmente esta circunstância também influiu na necessidade não só de fixar por escrito esta tradição (processo que deve ter começado logo), mas de realizar uma narração seguida desde a aparição pública de Je­sus até sua ascensão ao céu, isto é, o que são nossos Evangelhos atu­ais. O fato de que os Apóstolos, as testemunhas oculares, não puderam chegar a todas as comunidades ou se viram obrigados a abandonar aque­las que haviam fundado por causa de sua atividade missionária, suscitou a necessidade de redigir por escrito a tradição sagrada e de escrever um relato contínuo do que Jesus disse e fez, e não apenas coleções de pa­lavras ou milagres (semelhantes à coleção que se pode reconstruir da fonte comum a Mateus e Lucas = fonte Q). Transmitindo uma informação antiga, assegura Eusébio de Cesaréia que este foi o motivo pelo qual Mateus decidiu escrever seu Evangelho: “Mateus, que primeiro havia pregado aos hebreus, quando estava a ponto de partir até outros, entregou por escrito seu Evangelho, em sua língua materna, suprindo assim por meio da escritu­ra o que faltava de sua presença entre aqueles de quem se afastava”.[4]

3. A Crítica Moderna

A Igreja desde sempre defendeu o valor histórico desses livros chamados “Evangelhos”; ela os leu com a certeza de que as coisas afir­madas neles correspondiam ao que Jesus disse de si mesmo e os fatos narrados coincidiam substancialmente com o que havia sucedido. Em poucas palavras: a Igreja considerou tais livros como testemunhos de fatos ocorridos na história. Para o corroborar, bastam algumas citações da Constituição Dogmática sobre a Divina Revelação do Concílio do Vaticano II. Aí lemos:

“A Santa Madre Igreja defendeu sempre a historicidade dos Evan­gelhos; afirma que narram fielmente o que Jesus, o Filho de Deus, viven­do entre os homens, fez e ensinou realmente até o dia da Ascensão”. Mais adiante, assegura-se que a Igreja afirmou sem titubear, com firme­za e máxima constância, que os Evangelhos “nos transmitiram dados autênticos e genuínos sobre Jesus” (DV 19).

Por isto a Igreja teve sempre a convicção de que sua fé em Jesus se baseia no que Este disse e fez, há dois mil anos, na Palestina. A fé católica está tão vinculada ao sucedido historicamente que a Igreja não duvidou em incluir no Credo, que recitamos a cada domingo, a referên­cia a um personagem histórico, um personagem odiado por sua cruelda­de e intransigência: Pôncio Pilatos.

Todavia esta certeza da Igreja não impediu que muitos estudiosos dos últimos séculos tenham questionado com insistência o valor históri­co dos Evangelhos. Segundo o parecer destes autores, os Evangelhos são de valor histórico limitado ou nulo, pois sua intenção é puramente propagandista. Segundo o parecer desses autores, os Evangelhos nos transmitem o que pensavam os cristãos e não o que realmente sucedeu. A respeito do que Jesus disse e fez, não poderíamos alcançar certeza alguma. Basta ver, como exemplo, o que um Dicionário das Religiões afirma sobre Jesus:

“Legendário fundador da religião cristã, cuja existência histórica não pode ser demonstrada com certeza, reconhecido como Deus no culto” (A. Donini).

E um dos exegetas do Novo Testamento, da maior influência, R. Bultmann afirma que nada sabemos a respeito de como Jesus viveu, falou e procedeu; nada do conteúdo de sua pregação e de sua humanidade histó­rica. A única coisa que sabemos com segurança, é que foi um judeu do século primeiro que a Igreja proclamou Deus. Na realidade, a única coisa que temos nos Evangelhos é o que a Igreja confessa a respeito de Jesus.

Apesar da suspeita sobre o valor histórico, estes estudiosos mo­dernos enfrentam um dado que não se pode evitar: a existência dos Evan­gelhos e o fato de que neles se afirma que um homem, Jesus de Nazaré, é considerado Filho de Deus por um grupo de judeus da Palestina do século primeiro. Ao não aceitar a explicação que a Igreja deu desde suas origens, criaram uma explicação alternativa. Segundo esta explicação, os Evangelhos seriam o resultado de um processo de mitificação da pes­soa de Jesus, segundo o qual quem não era mais que um profeta foi transformado em Filho de Deus. Com efeito – afirmam -, ao se difundir a fé cristã pelo Império Romano, os missionários cristãos tiveram que com­petir com os fundadores de outros grupos religiosos, descritos como se­res surpreendentes, de qualidades divinas, capazes de realizar atos pro­digiosos. Esta circunstância obrigou-os a engrandecer aquele judeu, Je­sus de Nazaré, que estava na origem da nova fé. Para isso, não duvida­ram em atribui-lhes fatos que não realizou ou colocar em seus lábios palavras que não pronunciou. Os Evangelhos, segundo esta concepção, são o produto da fé e da vida da comunidade primitiva e não o testemu­nho fiel que nos permite chegar à verdade histórica de Jesus.

Este processo de mitificação de Jesus que a comunidade cristã realizou sem temor de ser contraditada, atribuindo-lhe coisas que não suce­deram ou agigantando fatos normais de sua vida, – seguem afirmando estes estudiosos – encontra uma fácil explicação, dado o período de tempo que transcorreu desde a morte de Jesus até a redação final dos Evange­lhos. Em sua opinião, estes livros foram escritos uns cinqüenta anos de­pois dos fatos narrados. Além disso, em uma língua diferente daquela que falaram Jesus e seus contemporâneos, o grego, e sob o influxo do helenismo, isto é, da multiplicidade dos cultos e religiões helênicas, pois é de todo inconcebível que esta mitificação fosse realizada por judeus, dado seu monoteísmo rígido. Eis aqui como se expressa um dos pioneiros da investigação histórica de Jesus, H. S. Reimarus, falando dos milagres:

”Até trinta ou sessenta anos depois da morte de Jesus, não se começou a escrever um relato dos milagres que realizou; isto foi feito em uma língua que os judeus da Palestina não conheciam. Tudo isso ocor­ria em um tempo em que a nação judaica se encontrava num estado de enorme enfraquecimento e confusão por causa da destruição de Jeru­salém no ano70 -, na qual viviam já muito poucos dos que haviam co­nhecido Jesus. Nada, portanto, mais fácil para os autores dos Evange­lhos do que inventar tantos milagres quantos quisessem, semmedo de que seus escritos fossem facilmente entendidos ou refutados“[5].

Do que foi dito até agora, compreende-se a importância da histori­cidade dos Evangelhos. Segundo os resultados da linha dominante da investigação moderna, o que a Igreja crê e anuncia é uma pura invenção ou, no melhor dos casos, um exagero, não uma realidade histórica. Em outras palavras: o que a fé confessa é mentira; portanto, o Cristianismo seria uma fraude e os fiéis cristãos alguns crédulos ingênuos ou igno­rantes. Formula-se assim a relação entre a fé e a história: se é certo que a maior parte do narrado nos Evangelhos não é histórico, mas pura cri­ação da comunidade, em que é que se crê? Qual é o conteúdo da fé cristã? – Negar o valor histórico da fé cristã é destruí-la, confiná-la à irracionalidade. Pois, à diferença de outras crenças, o Cristianismo não é apenas um sentimento religioso nem uma experiência religiosa mera­mente subjetiva nem, muito menos, o simples cumprimento de algumas máximas de comportamento, mas é a adesão a um acontecimento, a uma Pessoa que viveu e morreu faz dois mil anos na Palestina e que, ressuscitado, vive para sempre e está presente no mundo até o final dos séculos. Por isso, a historicidade do que a Igreja anuncia é condição indispensável para a existência do Cristianismo e requisito primário para que o homem dê sua aceitação de forma razoável, humana. O estudo da historicidade dos Evangelhos trata, pois, de saber se o narrado nos Evan­gelhos sucedeu ou não, se o fato que anunciam – Deus se fez homem ­aconteceu historicamente. Não responder ao problema suscitado pela investigação moderna seria cair no fideísmo; seria dizer que os fiéis po­dem continuar crendo em algo contrário à razão, aceitando assim que a fé e a razão sejam duas linhas paralelas, sem contato algum. É esta uma posição totalmente contrária à que caracterizou a Igreja desde sempre, já que, segundo afirma, não existe verdadeira adesão de fé sem a ade­são completa da razão.

4. As investigações sobre a origem aramaica dos Evangelhos

Investigações recentes colocaram a público a falsidade das con­clusões às quais chegou a crítica moderna da suspeita. Em primeiro lugar, verifica-se que os quatro Evangelhos estão cheios de semitismos, o que demonstra que atrás deles existe um texto original aramaico. Expli­carei brevemente o que pretendo afirmar ao falar de semitismos no Evan­gelho grego.

É fácil observar que o texto grego dos Evangelhos que chegou até nós, está cheio de anomalias. Estas podem ser fundamentalmente de dois tipos: 1) um texto grego gramaticalmente correto e claro, mas cujo conteúdo é estranho e, com freqüência, está em contraste com o con­texto, 2) uma formulação estranha ou, até, impossível dentro da gramá­tica grega.

Os dois tipos de dificuldade encontram uma explicação muito sim­ples, se se reconhece o influxo que exerceu sobre o grego a língua aramaica, que era a língua da Palestina no primeiro século, a língua que Jesus falava. Com efeito, estas anomalias são facilmente explicáveis, se se leva em conta que, diante de um texto aramaico, o tradutor pôde ser demasiadamente servil na versão grega, violentando a gramática helênica, ou realizar uma tradução equivocada por causa de entendi­mento equivocado do texto original. Por outro lado, não podemos es­quecer que toda língua possui um certo número de peculiaridades que, traduzidas tais e quais para outra língua, “ao pé da letra”, dizem coisas absurdas. Assim, se tentarmos traduzir literalmente para o espanhol o ditado português “fulano dorme com as galinhas”, diríamos uma coisa absurda: “dormir com as galinhas”, quando na realidade isto é uma for­ma própria (popular) de referir-se a alguém que vai dormir muito cedo. Por outro lado, como assinalou há algum tempo o estudioso americano Millar-Burrows, o único modo de provar que um texto corresponde a uma tradução e não é o texto original, é a descoberta de casos evidentes de redação incorreta. Se estivéssemos diante de uma redação correta, se­ria impossível saber que se trata de uma tradução, pois faltariam as anomalias que o delatam.

Pois bem; em nosso estudo, tivemos que enfrentar numerosas ano­malias do texto grego do Evangelho, que foram resolvidas apelando-se para o substrato aramaico, o que demonstra que, por detrás, existe um original aramaico. Mas o fato de que a tradição de Jesus tenha sido escrita em aramaico significa que sua redação foi realizada na Palestina e em uma língua conhecida pelos judeus; portanto, em uma data muito mais próxima do que aquela que se sugeriu. De fato, os evangelistas geralmente dão por óbvio o conhecimento da situação da Palestina, de sua geografia, costu­mes, modos de construir e cultivar etc., mostrando que os Evangelhos fo­ram escritos por gente para quem tudo isso resulta familiar e destinados a um grupo de pessoas que não necessitavam de explicação alguma. Em outras palavras, a inegável origem aramaica dos nossos Evangelhos gre­gos nos obriga a concluir a existência de uma tradição fixada muito cedo em aramaico, a pouca distância dos fatos narrados nos Evangelhos. Chega­mos à uma idêntica conclusão se levarmos em conta a finalidade pela qual foram escritos os Evangelhos. Já afirmamos que a dita finalidade era a liturgia das comunidades cristãs. Pois bem, visto que tais comunidades existiram logo depois da ressurreição de Jesus na Palestina e arredores, onde a língua falada era o aramaico, se impõe categoricamente a conclusão de que, muito cedo, foram necessários documentos escritos em aramaico que narravam as palavras e os atos de Jesus, para que fossem lidos durante as reuniões dominicais que as comunidades da Palestina celebravam. Tal lei­tura acontecia na presença daqueles que haviam sido testemunhas dos atos e das palavras de Jesus, isto é, de seus contemporâneos. Vejamos em dois exemplos o que acabamos de afirmar sobre a origem aramaico­palestinense. Para tal, faremos referência a duas passagens do Evangelho de S. Marcos, que, segundo os críticos, é o mais primitivo, aquele que me­lhor reflete a tradição original

A) Jesus chega a Jerusalém

No capítulo onze de seu Evangelho, São Marcos narra os aconte­cimentos prévios à Paixão e morte de Jesus. O começo deste capítulo descreve a subida de Jesus e seus discípulos desde Jericó até Jerusa­lém, com estas palavras: “E quando se aproximavam de Jerusalém, de Betfagé e Betânia, junto ao Monte das Oliveiras …” (v. 1). A descrição do caminho que percorre Jesus e seus discípulos é verdadeiramente estra­nha, pois diz o contrário do que ocorreu na realidade. Com efeito, se pela enumeração destes lugares o evangelista quer assinalar o caminho percorrido desde Jericó até Jerusalém, a ordem lógica teria que ter sido o inverso. Além disso, a redação do evangelista não parece pretender descrever um percurso, pois, depois de assinalar o ponto de chegada, Jerusalém, acrescenta em aposição os nomes de duas aldeias, Betfagé e Betânia, como se elas também fossem a meta da viagem. São Mateus e São Lucas preferiram uma redação diferente, na qual desapareceram todas as anomalias. Não é estranho que alguns estudiosos tenham con­siderado a descrição do caminho que São Marcos propõe como um sinal claro de que este evangelista não conhecia a geografia da Palestina e, por isso, as descrições geográficas que temos em seu Evangelho seri­am de caráter geral, aproximativo. Mas, se esta suposição está certa, temos que concluir que o autor do segundo Evangelho não pode ser João Marcos, pois este era originário de Jerusalém; devia estar familiari­zado com a geografia de sua terra e nos dar, portanto, uma informação precisa, exata.

No nosso modo de entender, a estranha redação do texto grego de São Marcos tem fácil explicação a partir do aramaico que podemos supor por trás dele. Com efeito; a preposição grega que rege os nomes de Betfagé e Betânia (eis), é a tradução de uma partícula aramaica (b), que serve para indicar não só o lugar aonde de um movimento, mas também o lugar por onde. O tradutor ao grego pensou que a preposi­ção aramaica diante dos nomes de Betfagé e Betânia indicava também aonde, quando na realidade o que indicava era o lugar por onde Jesus chegava a Jerusalém, vindo de Jericó. Lido assim, o texto aramaico dizia: “E quando se aproximavam de Jerusalém por Betfagé e Betânia…”. Re­cordemos que, nos tempos de Jesus, o caminho que ia de Jericó a Jeru­salém, antes de subir a ladeira oriental do Monte das Oliveiras, tinha à esquerda, a pouca distância, a aldeia de Betfagé e, um pouco mais afas­tada, Betânia. Portanto, é natural dizer que, para chegar a Jerusalém desde Jericó, Jesus subia ao Monte das Oliveiras, passando por Betfagé e Betânia. Assim, pois, o texto aramaico primitivo de São Marcos não só não continha nenhuma inexatidão geográfica, mas era de uma precisão perfeita nesse sentido.

B) Jesus perante o tribunal de Pilatos

No relato evangélico da Paixão, existe um episódio muito conheci­do dentro do processo de Jesus perante Pilatos. Nós nos referimos ao fato de que o Procurador romano, não encontrando delito digno de mor­te no acusado, o quer pôr em liberdade. Porém, as autoridades judaicas pedem sua morte na cruz e reclamam a liberdade de Barrabás, que, sem dúvida, era um delinqüente político, culpado, de uma ou outra forma, do delito de sedição contra Roma. Este episódio não causaria nenhuma surpresa, se não fosse pelo fato de que os Evangelhos parecem fundar a petição dos judeus em um costume jurídico. Eis aqui como a descreve São João: “É costume entre vós que vos ponha em liberdade alguém pela Páscoa (Jo 18, 39). Pois bem, fora dos Evangelhos, nem em escri­tos judaicos nem em documentos pagãos encontramos a menor alusão a esta espécie de anistia anual que o Procurador romano da Judéia con­cedia por ocasião da festa da Páscoa. Esta ausência de documentos que falem de semelhante anistia, suscitou uma avalanche de críticas contra a historicidade do relato evangélico. Uma prova a mais – segundo certos críticos – da inconsistência histórica da tradição evangélica. Uma mostra disso são estas palavras cheias de ironia do francês C. Guignebert:

“Eis aqui outro episódio notavelmente estranho. Em primeiro lugar, não possuímos, fora dos Evangelhos, nenhum testemunho sobre o sur­preendente costume. Como é possível que um malfeitor, inclusive muito perigoso, deva ser posto em liberdade, se o povo o reclama, sem que nenhum escrito judeu nos fale deste exorbitante privilégio?”[6].

E, mais, a ausência de corroboração histórica, fora dos Evange­lhos, do suposto costume que serve de base ao episódio da libertação de Barrabás, levou os estudiosos a considerar todo o relato como legendário; estaríamos diante de uma lenda cuja intenção seria pôr em relevo o enorme delito dos judeus, que preferiram a liberdade de um homicida à do Salvador, pois pediram a morte de Jesus. Apesar de que o Procurador romano quis libertar Jesus, a multidão, à qual o fantástico costume da anistia pascal dava o direito de decidir, se negou. Para repli­car a estas objeções, comecemos por perguntar: é certo que os Evan­gelhos falam unanimemente desse costume?

a) Análise dos textos

Uma leitura atenta das passagens evangélicas que falam da anis­tia pascal como um costume, põe imediatamente de manifesto que o testemunho deste costume não é precisamente unânime. Só em São João (18, 39) parece haver uma referência explícita ao “costume” de libertar um preso por ocasião da Páscoa. No extremo oposto se encon­tra São Lucas: seu relato do episódio não menciona em absoluto o cos­tume. De São Mateus, costuma-se dizer que, em linhas gerais, seu rela­to da Paixão é uma versão literariamente melhorada do segundo Evan­gelho. Neste caso da libertação de Barrabás, podemos falar certamente de melhor redação em São Mateus, porém não é seguro que venha a dizer o mesmo que São Marcos. Impõe-se, portanto, um atento estudo do relato como o lemos no Evangelho de São Marcos, que os estudiosos consideram ser o mais primitivo.

Mc 15, 6. Das duas passagens nas quais se costuma ler neste Evangelho uma alusão ao costume da anistia, segundo uma tradição muito extensa, a primeira diz: “Cada ano pela festa costumava soltar-lhes um preso, o que pediam” (Mc 15, 6). Todavia devemos pontualizar: esta tradução do texto grego não se impõe em absoluto. A expressão inicial grega não tem necessariamente sentido distributivo de “cada fes­ta” (da Páscoa). Pode-se usar também para designar o momento em que tem lugar um fato único, não repetido nem repetitivo, como demons­tram exemplos evidentes nas obras de Flávio Josefo (Bel. 1,229; Ant., 208). Esta expressão, portanto, pode-se traduzir simplesmente por “na festa”, “por ocasião da festa”, sem que seja necessário ler nela alguma alusão a uma repetição da anistia. O segundo elemento deste versículo que parece indicar um costume, é o valor iterativo que se costuma dar ao imperfeito grego, tal como faz a Vulgata: “solebat“. Pois bem, este valor iterativo não é o único que tem o imperfeito grego. Junto a ele, é freqüente o que podemos chamar valor de futuro próximo no passado. E assim São Marcos pode querer dizer: “Na festa, ou por ocasião da festa, ia-lhes soltar um preso, que pediam”.

Portanto, este versículo do relato pode-se entender no sentido de que Pilatos, que tinha sua residência regular em Cesaréia, por ocasião da Páscoa, durante a qual se trasladava a Jerusalém, daria a liberdade a um preso político que as autoridades judaicas e os amigos apoiavam. Nada nos obriga a ver aqui uma alusão a suposta anistia regular de um réu a pedido do povo por ocasião da Páscoa.

Mc 15,8: parece que dois versículos mais adiante, o texto grego de São Marcos fala abertamente de uma anistia costumeira. Pelo menos assim o dão por certo algumas traduções, como esta: “A multidão, subin­do, se pôs a pedir a graça acostumada” (Huby-Benoit). Pois bem, é pre­ciso reconhecer, pelo puro exame lingüístico, que o texto grego não tem este sentido. De fato, quando se faz uma tradução estritamente literal, a versão que resulta é muito violenta, a saber: “E, subindo, a multidão começou a pedir como costumava fazer-lhe (s)” (E. Lohmeyer). A estridência do texto reside na troca de sujeito ao passar da primeira oração – “começou a pedir” – à segunda – “costumava fazer-lhes”. – Na primeira parte o sujeito é a multidão, na segunda Pilatos. O fato de que na primeira parte o sujeito é a multidão, parece exigir que na segunda se fale também de algo que fazia a multidão. A redação de São Marcos é de uma lógica desconcertante.

Uma vez mais, a expressão deste estranho texto grego de São Marcos e a eliminação da não menos estranha anistia pascal nos são dadas pela origem aramaica. Vejamos. Se por baixo do imperfeito do verbo grego fazer supomos um particípio do verbo aramaico que tenha o mesmo signi­ficado (o aramaico utiliza com muita freqüência os particípios, quando nós usamos outras formas verbais), nós nos encontramos perante o paradoxo de que o particípio aramaico deste verbo pode ser lido como ativo ou como passivo. O texto grego de São Marcos neste versículo, com suas estranhe­zas de redação, é o resultado de se haver concedido ao particípio aramaico o valor ativo cujo sujeito – implícito, não se esqueça – é Pilatos. Mas pode ocorrer que na passagem do aramaico para o grego se lera mal, ou seja, se interpretara como ativo um particípio passivo escrito com as mesmas con­soantes. Nesta confusão está a causa da estridência do texto que hoje lemos. Bem agora, no aramaico o particípio passivo do verbo “fazer”, além de “feito”, pode significar “acostumado a”; e, construído em oração nominal, pode equivaler a “acostumar”.

Em conseqüência, o original aramaico de São Marcos pode querer dizer algo bastante diverso, a saber: “E, subindo, a multidão começou a pedir como era de costume deles, ou seja, como costumavam. Não há, portanto, troca de sujeito ao passar do primeiro membro, “começou a pe­dir”, ao segundo, “como era de costume”. Encontramo-nos assim diante de uma proposição que nada tem de elíptico e que faz sentido sem necessida­de de suprir coisa alguma. A estridência do grego tem sua origem – repeti­mos – em um erro de leitura, facilmente explicável em uma escritura quase exclusivamente de consoantes; o tradutor leu as consoantes como particí­pio ativo, e logicamente se serviu do imperfeito ativo grego para traduzi-lo. A possibilidade de confusão dos particípios aramaicos foi confirmada pelos descobrimentos do deserto de Judá, a partir de 1947, onde encontramos ambos os particípios escritos com idêntica perfeição.

b) O costume de Mc 15,8

Forçados pelo estranho grego de São Marcos e pela surpreen­dente alusão a uma anistia anual, da qual não há notícia fora dos Evange­lhos, recorremos ao substrato aramaico, que nos deu este resultado: “E, subindo, a multidão começou a pedir como era de seu costume.” O origi­nal semítico, portanto, não diz que Pilatos, ou o procurador romano, ti­nha o costume de libertar um preso na Páscoa, nem diz que a multidão costumava apresentar-se diante do pretório para reclamar este privilé­gio ao chegar tal data, mas simplesmente alude a que a multidão tinha o costume de reunir-se diante do palácio-pretório e reclamar algo. Deste costume temos muitos testemunhos nos escritos de Flávio Josefo. O tex­to original nos fala, portanto, de um fato isolado e perfeitamente explicá­vel ao marco da carreira política de Pilatos: tratava-se de uma anistia concreta para conseguir o favor do povo em um momento difícil de sua carreira. Qual fosse a causa desta tensão que pretendeu resolver medi­ante tal anistia, não o sabemos com certeza, ainda que bem pudesse ser a morte de Sejano (ano 31 d. C.). Sejano era o homem mais poderoso do Império Romano depois de Tibério; acusado de conspiração foi esquartejado pelas turbas em Roma. Com sua morte, foram caindo tam­bém os que haviam sido amigos do Ministro desaparecido. Neste contex­to se explicaria muito bem que Pilatos, para se congraçar com os judeu – e não perder o cargo (pois era amigo de Sejano), tenha recorrido ao expediente de libertar presos a pedido do povo.

Tenha-se em conta que não são estas duas passagens de São Marcos as únicas em que uma dificuldade geográfica ou histórica pode ser resolvida mediante a sólida hipótese de que a língua original deste Evangelho não foi o grego, mas o aramaico. Semelhantes aos dois tex­tos citados, e inclusive bem mais difíceis que estes, podemos apresentar uns vinte a mais. E não esqueçamos que o Evangelho de São Marcos é o mais breve de todos, pois consta apenas de 16 capítulos.

5. Conclusão

Ao nosso entender, uma das causas pelas quais se questiona o valor histórico dos Evangelhos é o fato de terem sido escritos para cris­tãos, por testemunhas que não são neutras. Todavia, ninguém rechaçou o valor histórico dos dados biográficos de Sócrates transmitidos por seus discípulos Xenofonte e Platão, nem se nega a realidade das façanhas de César narradas por ele mesmo, ou seja, por testemunhas interessa­das. Mas na realidade o verdadeiro motivo de que se tenha introduzido a dúvida sobre a fidelidade dos Evangelhos, é que se julga impossível o que afirmam: que Deus se tenha feito homem. Assim se expressava D. F. Strauss, autor de uma famosa vida de Jesus:

“Não consigo imaginar como a natureza divina e a natureza huma­na podiam ser partes integrantes, diferentes e todavia unidas de uma pessoa histórica. Aquilo que a razão concebe se converte em medida do que possa acontecer na realidade. O que não entra dentro dessa medi­da, não existe ou é absurdo”.

Semelhante atitude implica a negação da categoria da possibilida­de, fechando a razão em sua própria medida e impossibilitando-a de conhecer a realidade ou realizar um verdadeiro estudo dos dados histó­ricos. Seria necessário recordar o que dizia Hamlet a seu bom amigo Horácio: “Existem mais coisas no céu e na terra, Horácio, que na tua filosofia”, isto é, a realidade é maior do que a nossa percepção ou con­cepção da mesma.

A investigação histórica, é verdade, não pode concluir coisa algu­ma sobre a Divindade de Jesus, mas pode estudar as pegadas que um fato excepcional deixou na história e reconhecer que sua explicação exaustiva não encontra outra hipótese mais adequada que a oferecida pelas testemunhas do fato. Neste sentido, a investigação histórica não gera a fé, mas pode mostrar a racionalidade da mesma, respondendo às objeções que a crítica moderna e racionalista construiu ao longo dos últimos séculos. E, isto, não o fazemos por defender os direitos divinos de Jesus, mas os direitos do homem concreto. Nós nos negamos a acei­tar as falsidades que certa exegese construiu como barreiras que impe­dem o homem de hoje de se aproximar de Jesus e reconhecer o verda­deiro dom, a vida plena. Assim como São Paulo discutia e debatia todos aqueles que se opunham ao Cristianismo, considerando-os não inimi­gos de Deus, mas inimigos dos homens, pois pretendiam impedir sua participação na plenitude da vida que é o Acontecimento Cristão, assim também nós nos esforçamos por resolver as dificuldades ou objeções que contra a fé da Igreja têm levantado certos críticos modernos em nome de uma suposta exaltação e libertação do homem, que resultou ser a maior e mais maldita escravidão.

A racionalidade da fé é provada por nosso estudo dos Evange­lhos, mas sobretudo é confirmada pela resposta às exigências humanas por quem adere aos que testemunham e vivem o Acontecimento Cristão. Só esta experiência explica a rápida difusão do Cristianismo. Recorde-­se que, muito poucos anos depois da morte e ressurreição de Jesus, São Paulo vai a Damasco para encarcerar os judeus que haviam crido nele; também muito rapidamente existem cristãos em Antioquia da Síria e, no começo da década de 40, existia uma comunidade cristã em Roma (para fazer referência só aos dados do NT). Por outro lado, a leitura dos escritos do NT, sobretudo as cartas de São Paulo e o livro dos Atos, nos causam surpresa pela organização formidável com que atua e vive a Igreja. Nestes escritos da Igreja primitiva também apalpamos o calor com que os primeiros crentes em Jesus Cristo se sentiam enriquecidos pela nova fé que lhes haviam trazido os Apóstolos, suas testemunhas diretas. Tais escritos falam de um fato extraordinário que se apresenta como definitivo para as exigências e expectativas do coração humano.

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Fontes:

[1] Eusébio de Cesaréia. HE, VII, 22, 7-10.

[2] H. Riesenfeld, p. 20 – 22.

[3] H. Riesenfeld, p. Os encontros do NT aos quais alude são: 1 Cor 11,23­ 25; 15,3; Gal 1,12 etc.

[4] Eusébio de Cesaréia. HE, 111,24-6.

[5] H. S. Reimarus, A ambição de Jesus e seus discípulos, Leiden 1970,119

[6] C. Guignebert

[7] Cf., por exemplo, Hebreu: GenAp 2,17; 10,14; Aramaico: óstracon e contrato de Murabba’at.

[8] Flávio Josefo, Be12,4 (sucessão de Arquelau no reino; para conseguir a simpatia do povo);

Bel 2,175-176 (revolta por causa do uso que Pilatos fez do dinheiro do templo); Ant 18,60 (mesmo episódio, contém esta frase: “começaram a gritar… como costuma fazer a multidão);

Ant 20,215 (substituição do procurador Albino por Gesio Floro).

[9] D. F. Strauss, A vida de Jesus ou o exame crítico de sua história, Milão 1965, 628.

[10] W. Shakspeare, Hamlet.