(Revista Pergunte e Responderemos, PR 281/1985)
Em síntese: John Robinson, bispo anglicano de Woolwich (Inglaterra), já se tornou conhecido no Brasil por suas obras críticas: “Um Deus Diferente” e “A Face Humana de Deus”. Publicou mais recentemente os resultados de minuciosa pesquisa científica referente aos escritos do Novo Testamento… resultados que lhe parecem corroborar plenamente a autenticidade da mensagem crista; os livros neotestamentários nos transmitiram fatos históricos assim como o genuíno pensamento de Cristo (Evangelhos) e dos Apóstolos (epístolas); a hipótese de que tenham falsificado o fenômeno “Jesus”, atribuindo-lhe indevidamente dimensões divinas, é afastada; com efeito, e fenômeno “Cristianismo” exige em suas bases a realização de eventos que ultrapassam as dimensões dos acontecimentos históricos comuns; ou Cristo ressuscitou e o Cristianismo pôde surgir e persistir: ou Cristo não ressuscitou.. – mas em tal caso nem o Cristianismo teria surgido, pois não se pode facilmente admitir que vinte séculos de Cristianismo tenham por base a mentira, a fraudulência ou a doença mental de simples pescadores da Galiléia.
O livro é de leitura agradável e altamente enriquecedora. Eis por que vai resumido nas páginas seguintes.
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John Robinson é bispo anglicano de Woolwich (Inglaterra), que se tornou famoso no Brasil por suas obras “Um Deus Diferente” e “A Face Humana de Deus” (cf. PR 99/1968, pp. 101; 174/1974, pp. 232). Pertence à corrente secularizante da teologia anglicana, a ponto que o seu livro “Honest to God» pôde ser traduzido para o francês com o título “Dieu sans Dieu» (Deus sem Deus).
Tal autor escreveu também uma obra critica a respeito do Novo Testamento: “Can we trust the New Testament?” (Podemos confiar no Novo Testamento?), que se destina ao público leigo de cultura média. O autor conclui as suas pesquisas de maneira muito positiva – o que é tanto mais significativo quanto se sabe que John Robinson defende posições.
1. Os manuscritos do Novo Testamento e a crítico
1. Jesus falou aramaico, ao passo que os escritos do Novo Testamento conservados até hoje se acham em grego. Terá havido fidelidade na tradução do aramaico para o grego?
Em resposta, observemos que a linguagem grega do Novo Testamento está cheia de vocábulos e construções aramaicas: o paralelismo semita, o ritmo e a cadência das frases são muitas vezes perceptíveis; cf. Mt 5, 3-12; 6, 1-6.16-18; Mc 14, 36… O grande estudioso Joachim Jeremias esmerou-se por detectar em numerosas passagens do Evangelho ipsissima verba Christi, as próprias palavras de Cristo (cf. Mt 16,16-19; Lc 12, 35-47; 23, 34; o apelativo “Filho do Homem” que só ocorre nos lábios de Jesus e em At 7, 56…)
Ademais é de notar que o grego era a segunda língua da Palestina vinha após o aramaico, e era falado até por pessoas de pouca instrução na terra de Jesus; Pilatos, por exemplo, terá interrogado Jesus e discutido com os judeus em grego. Está claro porém que os evangelistas, ao transmitirem os discursos de Jesus devem ter procurado adaptar um ou outro tópico a compreensão dos gregos gentios; assim em Lc 5,19 o terraço palestinense de Mc 24 torna-se o telhado de uma casa greco romana. Em Mt 1, 23 a profecia de Is 7, 14 é citada de acordo com o texto grego dos LXX e não segundo o hebraico. Estas adaptações não afastam o sentido da mensagem de Jesus.
2. O texto autógrafo (de próprio punho) dos evangelistas se deteriorou e perdeu. Só temos cópias do mesmo. Donde a pergunta: serão fiéis e fidedignas?
Observa-se que os antigos eram, muito mais do que nós, exercitados na arte de copiar; eram meticulosos, chegando a contar linhas, palavras e letras dos textos que eles tinham que transcrever. Isto não quer dizer que não haja variantes ou diferenças a respeito do mesmo trecho nos diversos manuscritos do Novo Testamento (se não os houvesse, estaríamos diante de um milagre). Tais variantes, porém, não afetam o sentido da mensagem; eis alguns exemplos:
Em Jo 3, 25 está dito que surgiu uma discussão entre os discípulos de João e um certo judeu ou certos judeus. Talvez se lesse originariamente, em lugar de “judeu(s)”, Jesus ou os discípulos de Jesus.
Em Jo 19, 29 lê-se que ofereceram a Jesus uma esponja embebida em vinagre, e colocada na ponta de uma vara de hissopo; ora tal haste era frágil demais para sustentar a esponja; conjetura-se que se tratava de uma haste de lança: em lugar de hissopo em grego.
Em Rm 5,1 São Paulo diz: “Uma vez justificados… temos a paz com Deus”, texto que alguns manuscritos transmitem diversamente: …. tenhamos a paz…” – o que é menos condizente com o contexto. A variante se explica pela troca do o breve por o longo: échomen tornou-se échoomen.
Para dirimir as dúvidas deixadas ao leitor pelas cópias do Novo Testamento, existem milhares de manuscritos: quem os confronta entre si, pode explicar o porquê de certas modificações do texto e pode, com segurança, chegar à reconstituição da face originária do texto sagrado. Ademais alguns desses manuscritos são de grande antigüidade; existe, por exemplo, um fragmento de Jo 19 datada de 120/130 – o que supõe a distância de trinta anos apenas ou menos em relação ao autógrafo (tal manuscrito encontra-se em Manchester, Inglaterra, na John Rylands Library).
Em suma, a transmissão do texto do Novo Testamento é garantida por testemunhas de quantidade e qualidade tais que não ocorrem no caso de outros textos antigos: as obras de Cícero, Tito Lívio, Virgílio, Horácio, Platão, Tucídides, Xenofonte… nos chegaram através de um ou de poucos manuscritos, cujas deficiências é impossível corrigir por não haver termos adequados para confrontos.
Quanto às traduções modernas, são cada vez mais esmeradas, de modo a oferecer ao leitor um texto vernáculo que seja o eco fiel dos originais. Entre todas, distingue-se a chamada “Bíblia de Jerusalém”.
2. A crítica do conteúdo do texto
Uma vez estabelecida a fidelidade literária do texto que até nós chegou, põe-se a questão: o conteúdo das páginas do Novo Testamento é fiel aos acontecimentos históricos? Os Evangelhos são relatos concordes com os feitos e dizeres de Jesus?
– Para responder a estas perguntas, a crítica tem-se aplicado ao estudo das fontes, das formas e da redação do texto sagrado.
2.1. O estudo das fontes
Os três Evangelhos sinópticos (Mt, Mc, Lc) apresentam-se muito próximos entre si, a ponto que os podermos ler de relance, colocando-os em três colunas paralelas. Tal fato sugere três hipóteses: ou existe entre eles dependência mútua ou hauriram das mesmas fontes ou deu-se uma coisa e outra.
A discussão entre os autores tem sido longa e sutil, a ponto de não permitir firmar alguma explicação em caráter definitivo. Muito provável é a sentença que admite a mútua dependência dos sinópticos e a existência de fontes (entre as quais a Quelle, Q, coletânea de dizeres de Jesus).
2.2. Crítica das formas
Chama-se “forma literária” a formulação mensagem tal como se encontra hoje nos Evangelhos. Tal formulação depende da tradição e das circunstâncias históricas dentro das quais a Boa-Nova de Jesus Cristo foi sendo apregoada; sem dúvida, os interesses das primeiras comunidades cristãs influenciaram na maneira como se transmitiu a mensagem de Jesus (tais interesses, motivados pelas circunstâncias históricas, seriam: a necessidade de catequese diferenciada para os judeus e para os pagãos convertidos: a necessidade de responder as objeções levantadas pelos judeus (sábado ou domingo? divórcio, sim ou não?, ressurreição dos mortos? jejum?…)). Isto se entende bem, pois também em nossos dias a mensagem do Evangelho é pregada segundo fórmulas literárias diversas, de acordo com o tipo de auditório a que se destina: crianças, jovens, operários, casais, intelectuais.
O reconhecimento deste fato levou alguns críticos, como Rudolf Bultmann, ao ceticismo em relação ao texto dos Evangelhos; estes seriam o eco daquilo que os primeiros cristãos pensavam e professavam, e não o eco daquilo que Jesus disse e fez; tais críticos distinguiram entre o “Jesus da história” (o Jesus real, que ficaria impenetrável aos cristãos de hoje) e o “Jesus da fé” (o Jesus como era concebido pelos cristãos, única realidade que os evangelistas nos transmitiram. Robinson julga que tal distinção não encontra justificativa ou é inaceitável: a pregação da Boa-Nova, embora se tenha adaptado a auditórios diversos em diversas circunstâncias históricas, conservou-se sempre a mesma; cf. pp. 57s. 61s (um fiel católico subscreve a esta afirmação de Robinson, e acrescenta-lhe a devida fundamentação: numerosos textos dos Atos e de São Paulo mostram como os Apóstolos eram ciosos de guardar a identidade da mensagem (cf. Cl 1,88: 2Ts 2,15; 3,6; 1cor 15,1-3). Além do quê, a fé católica professa a assistência do Espírito Santo à Igreja a fim de que nunca seja deturpada a Boa Nova de Jesus).
Encontram-se, sem dúvida, nos Evangelhos vestígios de sistematização da mensagem em vista da catequese: Mt 5-7, por exemplo, é um longo sermão que a evangelista compilou a partir de diversos episódios da vida de Jesus; o mesmo se diga a respeito das coletâneas de parábolas ocorrentes em Mt 13 e Jo 15. A parábola de Mt 22, 1-14 parece resultar da fusão de duas ou três parábolas de Jesus (comparemo-la com Lc 14,16-24). Nada disto, porém, implica que se tenha alterado a doutrina de Jesus no decorrer dos primeiros decênios.
2.3. Crítica da redação
Os críticos julgam que os evangelistas também contribuíram para a redação do texto do Evangelho, inspirando-se em suas concepções teológicas. Alguns exageraram o cunho teológico dado por Mateus, Marcos, Lucas e João ao texto respectivo, a ponto de considerarem os Evangelhos como livros de teologia e não de história. Nesta atitude existe forte dose de hipóteses e de subjetivismo não fundamentados. Isto, porém, não quer dizer que não haja um enfoque próprio de cada evangelista sobre a pessoa e os dizeres de Jesus; é, sim, usual falar do “Evangelho segundo Mateus,… segundo João…”. Tal fato, porém, não se opõe à fidelidade dos evangelistas à história e à mensagem de Jesus. Cf. Robinson pp. 60s.
3. O intervalo de uma geração
Após ter examinado a maneira como trabalharam os evangelistas, Robinson considera a questão das datas em que tiveram origem os nossos Evangelhos. Será que, quando foram escritos definitivamente, ainda havia alguma testemunha ocular e auricular da vida de Jesus, de modo a poder confrontar os escritos com a realidade histórica? Quanto maior for a distância entre as datas de redação e os acontecimentos históricos concernentes a Jesus, tanto menos acreditável será o texto de tais escritos.
Portanto, quando foi escrito o Novo Testamento?
– No século passado, a crítica racionalista, movida por preconceitos ou pelo desejo de desvalorizar tais Escritos, assinalava-lhes o século II. No começo do século XX, os dados foram recuando, de modo a se indicarem os anos de 50 a 150; em meados do século XX, já se admitia o período de 50 a 100. Ora, segundo John Robinson, é preciso retroceder ainda, para ficar entre os anos de 47 e 70; o autor inglês tem consciência de que muitos especialistas do Novo Testamento não o acompanham neste ponto; acrescenta, porém: “Creio que a minha posição representa a direção que os estudos vão tomando” (p 74).
Mais precisamente, Robinson atribui as principais epístolas de São Paulo à década de 50 a 60. A carta aos Hebreus seria do ano de 67 aproximadamente. O Apocalipse é datado dos anos de 68 a 69. Os Atos dos Apóstolos, de 62. os Evangelhos sinópticos são colocados em torno do ano de 60, sem grandes intervalos entre eles; o quarto Evangelho seria de 65 ou pouco posterior.
Adotando estas datas, Robinson reduz a trinta anos aproximadamente a distância entre a crucificação de Jesus e os relatos evangélicos; se se leva em conta que os evangelistas utilizaram fontes orais e escritas referentes a Jesus, pode-se dizer que não há hiato, mas continuidade entre o Jesus histórico e a redação dos Evangelhos; a mesma geração pode ter, de um lado, visto e ouvido Jesus e, de outro lado, lido a mensagem dos Evangelhos. Em tão breve espaço de tempo, é pouco verossímil que lendas se tenham introduzido na mensagem evangélica.
4. Retrato de Jesus por São João.
No século passado e no começo do presente, o Evangelho segundo S. João foi menosprezado como sendo obra de teologia subjetiva e não um relato histórico; datado do ano de 170, apresentaria Jesus dentro das categorias da filosofia mística helenística.
Tal teoria foi bruscamente dissipada pela descoberta do papiro Rylands Greek 457 (p52), escrito por volta de 120/130 e encontrado no Egito em 1935. Este texto supõe necessariamente a redação do autógrafo por volta do ano 100 em Éfeso (admita-se o intervalo de trinta anos para que passasse da Ásia Menor para o Egito).
Nos últimos decênios, muito evoluíram os estudos joaneus; tornou-se claro que João é muito mais fiel à história do que se pensava. Admite-se que o texto de João seja o eco de uma tradição independente, que pode estar tão próxima da fonte JESUS quanto as tradições dos sinópticos. A linguagem utilizada por Jesus em Jo, embora difira da que ocorre nos sinópticos, já não é tida como helenista nem tardia, pois em 1947 foram descobertos os manuscritos de Qumran a N. O. do Mar Morto, que revelam o linguajar de uma comunidade monástica judaica muito semelhante ao de Jesus no quarto Evangelho. Lightfoot chegou mesmo a considerar o Evangelho de João como o livro “mais hebraico” do Novo Testamento.
Desenvolvendo um raciocínio complexo, Robinson julga que Jo é anterior à destruição de Jerusalém ocorrida em 70; com efeito, não faz alusão à destruição do Templo; ora se o autor do quarto Evangelho escrevesse após este fato, tê-la-ia mencionado no seu texto; em 11, 48, Caifás refere-se a ela como algo de futuro. Em conseqüência, Robinson atribuí a origem de Jo ao ano de 65 ou a data pouco posterior. Cf. Robinson p. 100.
Quanto às epístolas de João, são colocadas no início da década de 60; cf. Robinson p. 101. Robinson as atribui ao Apóstolo João, como também o quarto Evangelho; cf. Robinson pp. 101.104s.
João afirma solenemente que o seu testemunho é verdadeiro (19, 34s). Todavia ele refere a verdade histórica não tanto para registrar acontecimentos passados, mas principalmente para suscitar a fé nos leitores (cf. Jo 20, 31). Versa sempre sobre dois planos: o histórico e o teológico, de modo que só o compreende bem quem veja em Jesus a Palavra (preexistente, eterna) feita carne (à semelhança dos homens frágeis).
5. Quem é este homem?
Tal é a questão que se coloca desde a primeira página do Novo Testamento.
5.1. As origens de Jesus
Mateus e Lucas nos falam da genealogia e do nascimento de Jesus não no estilo das biografias modernas, mas de modo a permitir ao leitor perceber o sentido divino ou teológico da história. Por isto não entende Jesus quem considera apenas a história humana de Jesus; também não o entende quem despreza a história ou dela abstrai, mas só quem, aceitando a historicidade da anunciação, do nascimento virginal, dos magos e pastores, do massacre dos inocentes, da fuga para o Egito…, verifica que esses episódios foram narrados para mostrar que assim se cumpriu o plano de Deus e que todos os fatos históricos trazem em filigrana a assinatura de Deus.
A identidade do homem Jesus só pode ser percebida por quem ultrapasse o desenrolar da história humana. A origem de Jesus, em última análise, está na eternidade ou no seio do Pai: Ele é Deus e está voltado para o Pai (Jo 1,1).
A Igreja nascente atribuiu a Jesus vários títulos para designar a sua identidade “um Salvador que e o Cristo o Senhor” (Lc 2,11) “Jesus, o Cristo e o Senhor” (At 2, 36) “o Filho de Deus o Rei de Israel” (Jo 1, 49) “o Messias ou Cristo” (Jo 1, 41); cf. 2Cor 44, 4; F1 2, 5-11; Cl 1, 15-20… – Pergunta-se, porém: que relação tem esses títulos com aquilo que Jesus declarou a esse respeito mesmo? Será que os discípulos compreenderam bem o pensamento de Jesus quando Ele se identificava? – É o que vamos ver.
5.2. A mensagem de Jesus
Poder-se-ia julgar que os discípulos e evangelistas tenham atribuído simplesmente a Jesus o que eles mesmos pensavam a respeito do Mestre. – Ora não foi isto que eles fizeram.
Com efeito. A mensagem de Jesus, segundo os evangelistas, se resume na proclamação da vinda do Reino de Deus; cf. Mc 1,14s. Eis, porém, que a expressão “Reino de Deus” é rara no judaísmo pré-cristão, se bem que se inspire no ensinamento vétero-testamentário relativo à realeza de Deus; cf. Sl 95.96.97.98.99. Notemos, por exemplo, que a locução “Reino de Deus” não se encontra nos manuscritos do Mar Morto, que expressam a espiritualidade israelita dos séculos II/I a. C. Não obstante, essa locução estava constantemente nos lábios de Jesus. Quantas parábolas começam por: “O Reino de Deus é semelhante a …” É a vinda do Reino que explica o comportamento de Jesus: “Se é pelo dedo de Deus que. . . expulso os demônios, sabei que o Reino de Deus chegou até vós” (Lc 11, 20). O cerne da oração ensinada por Jesus reza: “Venha o teu Reino” (Mt 6, 10). Seria, pois, presumível que a noção de Reino aparecesse freqüentemente na pregação da Igreja. Ora ela não ocorre uma só vez nos primeiros discursos dos Atos, que parecem supor fontes anteriores e S. Lucas. Poucas vezes ocorre nos escritos de São Paulo e São João – o que mostra que a noção de Reino era algo de muito acessório na pregação e na doutrina dos primeiros cristãos. Falavam da Igreja mais do que do Reino; a palavra Igreja só aparece duas vezes nos lábios de Jesus (cf. Mt 16,16-19; 18,17s). O que os Apóstolos anunciavam era não a irrupção do Reino de Deus, mas Jesus e a ressurreição (cf. At 17,18). Isto não quer dizer que não haja liame e continuidade entre o Reino de Deus e a Igreja; esta é o começo do cumprimento das promessas referentes ao Reino de Deus. Mas o que importa observar, é que os discípulos souberam respeitar a linguagem, os atos e a pessoa de Jesus, de modo que não colocaram palavras dos discípulos sobre os lábios do Mestre; guardaram incólumes os dizeres do Senhor, sem ceder à tentação de fazer deste um simples porta-voz das primeiras comunidades cristãs.
Semelhante respeito ocorre com relação ao que Jesus disse a propósito de si mesmo. Os discípulos poderiam ter apresentado Jesus a declarar aquilo que eles professavam no tocante a Jesus. Mas tal não se dá. Observemos que os primeiros cristãos chamavam Jesus “Senhor” e “Cristo”, a ponto que, já nas cartas de São Paulo (de 50 em diante), Cristo já não é um título (= o Messias, o Rei Ungido), mas é um nome próprio, unido a Jesus: Jesus Cristo. – Ora nos Evangelhos os títulos “Senhor” c “Cristo” aparecem sobre os lábios dos outros personagens para designar Jesus, ao passo que Jesus, a rigor, não os utiliza. Apenas em Mc 9,41 se lê: “Se alguém vos der um copo d’água por serdes discípulos de Cristo…”; ora este apelativo não se encontra nos paralelos de Mateus e Lucas; donde concluem os estudiosos que não foi Jesus quem se autodesignou como Cristo em Mc.
Jesus utilizou, para se apresentar aos discípulos, o titulo de “Filho do Homem”. Podemos observar que, no Novo Testamento, tal expressão só ocorre nos Evangelhos (quando Jesus fala) e uma vez em At 7,56, quando S. Estêvão vê “os céus abertos e o Filho do Homem em pé à direita de Deus”. Nunca a Igreja antiga recorreu a esse título em sua pregação, embora o conceito de “Filho do Homem” possa estar subjacente à doutrina paulina de “homem novo” ou “homem celeste” (cf. Ef 4, 22-24; 1Cor 15,45-49). – Em Jo 1,19-51, depois que os discípulos usaram os mais diversos nomes para designar Jesus, Este, ao se autodefinir, utiliza a expressão “Filho do Homem” (cf. Jo 1,51).
Quanto ao título “Filho do homem”, é locução semita que significa “homem”; assim em todo o livro de Ezequiel. Em Dn 7,13s, a expressão toma significado pregnante, pois designa o homem ao qual toca a homenagem de todos os povos e cujo Reino não terá fim; designa o Messias (tal é o texto de Dn 7,l3s: “Eu continuava contemplando nas minhas visões noturnas, quando notei, vindo sobre as nuvens do céu, um como Filho de Homem, Ele adiantou-se até o Ancião, e foi introduzido à sua presença A ele foi outorgado o império, a honra e o reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu poder é um poder eterno, que jamais passará, e seu reino jamais será destruído”). Ora Jesus aplicou a si o oráculo de Daniel: “Verão o Filho do Homem vindo entre nuvens com grande poder e glória” (Mc 13,26); pouco antes de morrer, ainda declarou: “Vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poderoso e vindo com as nuvens do céu” (Mc 14, 62). Nestes termos Jesus se apresentava como o Messias predito por Daniel, como o Senhor da história e da humanidade; o Senhor usou o título “Filho do Homem” de preferência a qualquer outro, porque tal apelativo estava isento de conotações políticas (Jesus quis absolutamente evitar que o considerassem um rei no sentido político da palavra; cf. Jo 6, 15; 19, 36).
A propósito John Robinson formula uma pergunta muito interessante: será que os evangelistas, ao referirem palavras de Jesus, não colocaram nessas palavras a imagem do Jesus glorificado pós-pascal? Pode-se crer que são palavras saídas dos lábios de Jesus antes dos acontecimentos pascais que o glorificaram? – Em resposta, Robinson afirma que, para os Apóstolos, o lembrar-se das palavras de Jesus não era um simples exercido de memória; era, sim, evocação de um passado que não era considerado como realidade morta e ultrapassada, mas experiência de um Jesus sempre presente à sua Igreja; as palavras e os feitos de Jesus histórico tomavam o seu sentido pleno na medida em que eram palavras e feitos do Cristo vivo na Igreja e pela Igreja; Jesus prometera aos Apóstolos que o Espírito Santo lhes lembraria tudo o que Jesus lhes tivesse dito (cf. Jo 14,26); Ele os levaria à verdade plena (cf. Jo 16,13) o que quer dizer: o Espírito Santo retomaria as palavras de Jesus e as mostraria aos Apóstolos sob nova luz: ou sob uma luz viva. É o que explica que a linguagem de Jesus, nos relatos evangélicos, possa parecer penetrada pelo clarão pascal.
É precisamente isto que ocorre no quarto Evangelho: o autor vê e apresenta todas as coisas a partir da Páscoa; ele não inventa nem cria, mas situa tudo de modo que a verdadeira luz ilumine cada episódio e na carne de Jesus apareça a glória do Verbo preexistente. São João poderia dizer aos seus leitores: “O que, à primeira vista, os homens julgavam que fossem pontinhos luminosos, eu sei agora que são estrelas”. Aliás, este modo de ver também caracteriza os Evangelhos sinóticos, embora de maneira menos profunda. – Em conseqüência, quando a Igreja nascente atribuía a Jesus os títulos gloriosos de Senhor, Messias, Filho de Deus, um com o Pai, Santo de Deus… Ela estava apresentando os pontos luminosos como estrelas (o que eles realmente eram); estava explicitando o que se achava implícito nos dizeres e nos feitos de Jesus.
5.3. A pessoa de Cristo
Segundo os Evangelhos, Jesus não fazia ostentação de seus títulos. É certo, porém, que Ele morreu por haver “blasfemado” (cf. Mc 14,63, par.; Jo 19,7) ou por se ter feito Deus (cf. Jo 10, 33-36). Aliás, Ele falava com autoridade; não usava a expressão dos Profetas: “Eis o que diz o Senhor…), mas, sim, “Em verdade (amen), eu vos digo…”. Ao passo que o judeu piedoso concluía suas orações com um Amém, expressão de confiança em Deus, Jesus antepunha o Amém às suas declarações, identificando as suas palavras com a Palavra de Deus.
Jesus modificou a Lei usando esta expressão “Vós ouvistes o que foi dito aos antigos (por Deus)… Eu porém vos digo….” (cf. Mt 5, 21.27.31.33.38.43) legislava com a autoridade do próprio Deus. Perdoava os pecados como só Deus pode fazer, e, quando O acusaram de usurpar atribuição exclusiva de Deus, realizou um milagre como sinal do seu poder (cf. Mt 9,1-8); Jesus declarou que a atitude que os homens assumiriam em relação a Ele, seria assumida por Deus em relação aos homens (cf. Mt 25, 31-46) Convidou os homens a segui-Lo para ter a vida e o repouso (cf. Mt 10, 37-39) Isto tudo significa que Jesus não apenas falava como Deus más também agia e procedia como Deus não porque quisesse colocar-se em lugar ao Deus mas porque Ele representava o Pai a tal ponto que quem o via via o próprio Pai; o Pai estava nele e Ele estava no Pai (cf. Jo 14, 9).
Por isto, embora fosse verdadeiro homem, reconhecido como tal pelos seus interlocutores (cf. Jo 10,33), Ele era a Encarnação da Palavra eterna (cf. Jo 1,1.14). Ele já existia quando se fez homem no seio de Maria, a ponto que Ele era anterior a João Batista (cf. Jo 1,15), a Isaías (cf. Jo 12, 41), a Abraão (cf. Jo 8, 58) e à própria criação do mundo (cf. Jo 1, 1-3; 17, 5.24).
Em Jesus, portanto, havia dois planos ou duas realidades: o Divino e o humano, o Eterno e o temporal, que se sobrepunham com efeito dramático.
6. Que foi feito dele?
Depois de termos perguntado: “Quem é este homem?”, ocorre naturalmente a questão: “E que procedeu dele? Que houve a partir dele?”
A resposta há de ser dada não somente no plano da história (“houve e há o Cristianismo…”), mas também no plano teológico: de Jesus procedem o Espírito, o Corpo de Cristo prolongado que é a Igreja, a nova criatura, que São Paulo designava nestes termos: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas antigas; eis que se fez uma realidade nova” (2Cor 5, 17).
Esta novidade que procede do Cristo, tem seu ponto de partida imediato na Páscoa de Jesus, que compreende Paixão, morte e ressurreição do Senhor.
6.1. Processo e morte de Jesus
Os historiadores não costumam duvidar de que Jesus realmente foi preso, crucificado e sepultado. O questionamento tem-se voltado, nos últimos decênios, para as causas de tal desfecho da vida de Jesus, pois há quem diga que o Senhor morreu como revolucionário político; a crucifixão era o castigo infligido a tal tipo de criminosos, ao passo que o apedrejamento é o que tocava aos profetas.
Pergunta-se então: Jesus terá sido um sedicioso nacionalista, anti-romano?
O quarto Evangelho é o que mais material nos oferece para resposta, embora seja de todos o mais teológico.
Refere-nos a declaração categórica de Jesus: “O meu reino não é deste mundo. Se fosse deste mundo, os meus súditos teriam combatido para que não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui” (Jo 18,36).- Além disto, o evangelista põe cm evidência a má fé dos judeus adversários de Jesus. Começaram o diálogo com Pilatos pedindo a condenação de Jesus sem apresentar acusação. Donde a pergunta de Pilatos “Que acusação trazeis contra este homem?”
Responderam: “Se não fosse um malfeitor, não o entregaríamos a ti” (Jo 18, 29s). Dado que isto não bastava, os judeus acusaram Jesus de alta traição (Jo 18, 33). Pilatos, porém, não julgou a acusação suficientemente clara; por isto apresentaram o que para eles era o verdadeiro titulo de acusação: “Ele se fez Filho de Deus” (Jo 19,7). Mas, visto que também assim nada conseguiam, voltaram à acusação política e insinuaram que eles, judeus, eram mais leais ao Imperador do que o Governador: “Se o soltas, não és amigo de César! Todo aquele que se faz rei, opõe-se a César!” (Jo 19,12). Tal tipo de pressão foi suficientemente forte para quebrar a resistência de Pilatos.
Vê-se assim que a acusação de subversão política foi um pretexto para obter da autoridade romana (não interessada em questões religiosas dos judeus) a condenação de Jesus. O verdadeiro motivo da repulsa dos judeus a Jesus era, sim, de ordem teológica: Jesus blasfemara fazendo-se Filho de Deus. Tal reconstituição dos fatos é corroborada se recorremos ao Evangelho de Lucas, onde se lê que os judeus acusaram Jesus diante de Pilatos nestes termos: “Encontramos este homem a subverter nossa nação impedindo que se paguem os impostos a César e pretendendo ser Messias e Rei” (Lc 23, 2). A falsidade desta acusação se depreende das palavras mesmas de Jesus “Devolvei a César o que e de César e a Deus o que e de Deus” (Lc 20,25).
Todavia a morte de Jesus não foi um fim. Se o tivesse sido, não haveria Igreja para contá-la.
Os primeiros cristãos tinham consciência de que tal desenlace fora superado pela Ressurreição do Crucificado “Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação vazia também é a vossa fé” (1Cor 15, 14). E quais seriam os testemunhos históricos em favor da ressurreição de Jesus?
1) O fato do túmulo vazio… Se a notícia do túmulo vazio fosse invenção para convencer os descrentes, teria sido inventada sem habilidade; nos sinóticos a notícia é colocada nos lábios de mulheres, que, conforme a Lei judaica não podiam ter o valor de testemunhas, cf. Mc 16, 7.10s; Lc 24, 11.22s. Se, apesar de tudo, os evangelistas nos referiram o testemunho das mulheres, que a Tradição antiga julgava pobre ou desnecessário, isto só se explica porque se tratava de um testemunho histórico:
“A documentação sugere que a descoberta do túmulo vazio não foi inventada pela Igreja nascente; por conseguinte, ela não gerou a fé na Ressurreição, como também não é o produto da fé. É um dos elementos que foram descobertos naquela manhã e que ficaram inapagavelmente na memória dos fiéis. Por que esse túmulo estava vazio? É esta uma pergunta para a qual nenhuma explicação decisiva jamais foi aduzida, nem no plano natural, nem no sobrenatural” (Robinson, p. 142).
Além do mais, a existência do santo Sudário, meticulosamente investigado nos últimos tempos, não é fato desprezível.
2) As aparições… Seriam a expressão subjetiva do desejo dos discípulos de rever Jesus? – É certo que os Apóstolos e imediatos seguidores de Jesus não imaginavam um Jesus redivivo. Mais: se O tivessem imaginado mentirosamente, é de crer que alguém, cristão ou não cristão, teria denunciado o erro; admitir que o Cristianismo repouse sobre a fraude, sem que alguém a tenha apontado, é exigir demasiada credulidade. Algo deve-se ter produzido em correspondência a tantos testemunhos, inclusive o de Paulo; este anuncia as aparições do Ressuscitado como fatos que lhe foram transmitidos e que ainda podiam ser atestados por muitas pessoas vivas no ano de 56; cf. 1Cor 15,3-8.
3) A consciência da comunidade cristã… Na Igreja nascente a crença na ressurreição de Jesus se baseava sobre “uma consciência espiritual coletiva de Cristo,. .. consciência que não era apenas uma recordação do passado, mas uma presença vivificante. Quando Paulo se dirigia aos neófitos, que, como ele, jamais tinham acompanhado o Cristo, quando ele lhes falava do conhecimento do Cristo Jesus, da participação nos seus sofrimentos e no poder da Ressurreição (F1 3,10), ele apelava para essa experiência de ‘uma nova criatura em Cristo Jesus’ (Robinson, p. 146). A experiência espiritual coletiva é o fato sujeito a controvérsia. Com efeito, o historiador que analise o fenômeno Jesus, se defronta com a realidade da Igreja, que desde o inicio diz que ela mesma só tem sentido se Cristo ressuscitou; se Ele não ressuscitou, a Igreja se retira de cena espontaneamente como algo que não tem significado (cf. 1Cor 15,14-17).
Conclui Robinson: “Estou convencido – ou eu não seria cristão – de que a história, penetrada pela técnica cientifica mais esmerada e rigorosa, é capaz de comprovar o que a fé ensina” (p. 150).
7. Uma Religião na qual podemos confiar
Podemos então confiar no Novo Testamento?
“Creio firmemente que podemos…
Um cristão nada tem a recear a não ser a verdade. Pois só esta pode mostrar se ‘esse movimento vem de Deus’ (At 5, 38-40). Mas o cristão nada tem a recear da verdade. Para ele, a verdade é o Cristo (Jo 14, 6). É grande, maior do que o mundo, e prevalecerá. É também uma realidade viva e crescente” (p 155).
“Sei que o estudo do Novo Testamento me levou a conclusões… que eu não imaginava” (p. 155). “Minha confiança nos documentos básicos da fé cristã antes foi fortalecida de que abalada. A erudição não me confere a fé, mas ela me aumenta a convicção de que minha fé não é despropositada” (p. 156).
Eis, em síntese, o conteúdo do livro de Robinson, que chama a atenção não somente por suas conclusões favoráveis à autenticidade da mensagem do Novo Testamento, mas
também por provir de um critico não católico, que em outras obras já se mostrou muito pouco conservador ou tradicionalista!