Evangelhos: e a credibilidade dos evangelhos?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 318/1988)

Em síntese: Os mais recentes estudos sobre a origem dos Evangelhos permitem dizer que o texto escrito de Mateus, Marcos, Lucas e João remonta até Jesus, sua fonte,… mediante três etapas. Com efeito; a mensagem passou do Senhor aos Apóstolos; estes a transmitira às antigas comunidades cristãs por eles fundadas (Tessalônica, Corinto, Filipos, Roma…) e, finalmente, estas (ou a Igreja) a entregaram aos Evangelistas. O texto sagrado data da segunda metade do século I, mas sem hiato entre Jesus e Mateus, Marcos, Lucas e João; ao contrário, a pregação oral da Boa-Nova começou com Jesus, continuou com os Apóstolos e discípulos até chegar aos Evangelistas. Essa tramitação permitiu um desdobramento homogêneo da mensagem apregoada por Jesus sob forma seminal; o Espírito prometido pelo Senhor (cf. Jo 14,26; 16,12s) assegurou a fidelidade do desenvolvimento da Boa-Nova. Além disto, verifica-se que os Apóstolos eram ciosos de guardar a verdade dos fatos ocorridos com Jesus, distinguindo nitidamente entre mythos (mito, fábula) e logos (palavra da verdade ou da fé). As tentativas de deturpar o Evangelho ou “inventar” mensagens ocorreram, sem dúvida, como é compreensível, mas foram relegadas para a literatura apócrifa, cujo estilo é evidentemente fantasioso e diverso do estilo sóbrio dos Evangelhos canônicos. Os Apóstolos, longe de criar suas proposições de fé, não queriam ser senão testemunhas, como provam numerosas citações do corpo deste artigo.

São estas algumas ponderações que podem ser feitas frente a artigos da imprensa profana que negam a veracidade dos Evangelhos.

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Os debates sobre o filme “A Última Tentação de Cristo” levantaram a questão da credibilidade dos Evangelhos… Em mais de um órgão da imprensa foi divulgada a tese de que não são narrações históricas, mas, antes, a expressão da criatividade das primeiras gerações cristãs, que imaginaram o Jesus descrito por Mateus, Marcos, Lucas e João. Ora, a bem da verdade, tais afirmações sugerem um atento exame da questão. Consideraremos os dados do problema, e lhes acrescentaremos as ponderações da crítica objetiva e fundamentada.

1. O problema

Eis, por exemplo, o que se lê sob a pena de Richard Outling na página 80 de Manchete n° 899,10/09188:

“Do ponto de vista de muitos acadêmicos, os autores anônimos dos quatro Evangelhos (mais tarde, convencionalmente chamados de Mateus, Marcos, Lucas e João) trabalhavam com material de segunda e terceira mãos, transmitido verbalmente durante algumas décadas antes de ser registrado por escrito.

Conseqüentemente, os Evangelhos não podem ser aceitos como verdade pura; isto é, não podem, em todos os casos, ser considerados como a descrição de acontecimentos indiscutíveis ‘0 Novo Testamento é o testemunho de homens crentes’, disse o teólogo católico liberal Edward Schillebeeckx, da Holanda, ‘0 que dizem não é a história, mas expressões de sua fé em Jesus como Cristo’.

A tentativa dos estudiosos modernos de descobrir o Nazareno real e histórico dos relatos supostamente enfeitados da Bíblia – um processo conhecido como o método histórico-critico ou ‘alta crítica’- produziu alguns resultados não ortodoxos. Alguns exemplos:

– Jesus não afirmou ser o Messias. Essas declarações representam a crença posterior da Igreja, que os autores dos Evangelhos inseriram mais tarde na vida de Cristo.

– Quando Jesus disse que era ‘filho de Deus’, não quis ser entendido ao

pé da letra. A linguagem dessa natureza no Novo Testamento – referir-se a Jesus como o ‘Cordeiro’ ou o ‘Verbo’ de Deus – é metafórica”

No “Jornal do Brasil”, caderno B, p. 2, de 8/8/88, lê-se o comentário de John Dart:

“Quando um trabalho de ficção se afasta dos relatos dos Evangelhos, muitos cristãos alegam que desviar-se do ‘registro histórico’ sobre a vida de Cristo é uma ofensa e, pior, uma blasfêmia. Mas o fato é que o consenso entre os especialistas – aqueles que aplicam os métodos críticos e históricos contemporâneos ao estudo do Bíblia – é de que os textos de Marcos, Mateus, Lucas e João não são registros históricos na acepção moderna da palavra, muito menos testemunhos oculares. Os Evangelhos, segundo eles, são o produto de mentes criativas no terço final do século I – bem depois da morte de Jesus por volta do ano 30…

Elaborações criativas sobre a história bíblica de Jesus fazem parte, há muito tempo, da tradição cultural do Ocidente. As Igrejas dos primeiros tempos da era cristã produziram muitos textos apócrifos como o Evangelho da Infância de Tomé, que conta os milagres feitos pelo Menino Jesus. Especular sobre os laços afetivos entre Cristo e Maria Madalena não é exclusividade A última Tentação. O Evangelho de Maria, um texto agnóstico cristão do século II, e o Evangelho de Felipe, de origem semelhante, possivelmente do século III, estão cheios de especulações a respeito”.

Um leitor não iniciado em tais assuntos poderá, na verdade, julgar que se acha diante de conclusões seguras e bem arquitetadas da pesquisa bíblica, sem desconfiar de leviandade ou superficialidade do noticiário. Eis por que passamos a expor o que a crítica séria e fidedigna hoje em dia propõe sobre a origem dos Evangelhos.

2. Origem e historicidade dos Evangelhos

Os estudos modernos recorrem ao chamado Método da História das Formas, citado pela imprensa como “método histórico crítico” ou “alta crítica” (ver. p. 490 deste fascículo). Em que consiste?

2.1. 0 Método da História das Formas

Jesus nada deixou escrito nem mandou que seus Apóstolos escrevessem, visto que a escrita era difícil e rara na antigüidade. Por isto o Evangelho foi sendo pregado de viva voz na Palestina e fora desta. Aos poucos, porém, para facilitar o uso da memória, os pregadores foram redigindo seções avulsas (uma série de parábolas que ilustrassem o Reino de Deus, a misericórdia do Pai, . . . uma série de milagres de Jesus, ou de altercações com os fariseus…). Essas pequenas unidades (folhas volantes) foram sendo colecionadas, de modo a dar uma síntese dos ensinamentos e dos principais feitos de Jesus. Quatro dessas sínteses foram reconhecidas pela Igreja como canônicas ou autêntica Palavra de Deus; tais são os Evangelhos segundo Mateus, Marcos, Lucas e João.

A compilação e a redação finais devem ter ocorrido entre os anos de 60 e 100. Todavia é de notar que foram feitas em continuidade com a pregação anterior, que procedia do próprio Jesus; não houve hiato entre Jesus e os evangelistas ou entre o ano 30 (Ascensão do Senhor) e as últimas décadas do século I: a palavra do Senhor foi sendo transmitida ininterruptamente. Ora o Método da História das Formas estuda esse intervalo entre Jesus e os Evangelistas (ou estuda a pré-história do texto escrito definitivo), procurando reconstituir o ambiente e os fatores que podem ter influído na redação oral e escrita da pregação dos Apóstolos.

A Igreja Católica reconheceu a validade desse estudo mediante a Instrução Sancta Mater Ecclesia da Pontifícia Comissão Bíblica, de 21/04/1964. Tal documento apresenta três fases na confecção do texto escrito do Evangelho:

1) A pregação de Jesus aos Apóstolos. Jesus, portanto, está na origem do texto que hoje circula (e não apenas a fé dos cristãos do fim do século I, como disse Edward Schillebeeckx). A palavra do Senhor foi entendida com dificuldade pelos Apóstolos antes da Páscoa (pois ainda estavam impregnados de conceitos nacionalistas (cf. Mc 4,13; 6,51s; 8,16-20; 9,10…). – Todavia depois da Páscoa e Pentecostes os Apóstolos compreenderam o sentido dos dizeres e feitos do Mestre; entenderam que o Jesus, companheiro de viagens pelas estradas da Palestina, é o Kyrios, o Senhor Ressuscitado, o Messias ou o Cristo (ver Jo 2,22; 12,16…); aliás, o próprio Senhor lhes havia prometido que o Espírito Santo lhes recordaria tudo o que Ele lhes dissera e os levaria à plenitude da verdade (cf. Jo 14,26; 16,12-14; 7,37-39).

Assim a imagem de Jesus cresceu na mente dos Apóstolos; foi aprofundada e meditada homogeneamente sob a guia do Espírito Santo. O “Jesus da história” tornou-se o “Jesus da fé”; é o mesmo Jesus, outrora percebido com hesitações e mal-entendidos, mas finalmente penetrado autenticamente pela fé e pela experiência dos seus primeiros seguidores.

Ainda se têm nos Evangelhos vestígios ou ecos diretos da pregação de Cristo ou ipsissima verba Christi (as mesmíssimas palavras de Cristo); vejam-se por exemplo,

– a secção de Mt 16,16-19, em que se encontram numerosos aramaísmos, inclusive o trocadilho “Pedro-Pedra”, que só poderia ocorrer em aramaico com a palavra Kepha, e não em grego (Petros-Petra);

– as disputas de Jesus com os fariseus a respeito de textos bíblicos utilizados segundo o método (pesher) dos rabinos antigos: Mt 22,34-40. 41-46; Lc 11,29-32;

– as disputas com os saduceus, que também versavam sobre textos bíblicos interpretados segundo as escolas dos mestres de Israel: Mt 22,23-33…

2) Dos Apóstolos às primeiras comunidades cristãs. Tendo recebido a ordem de pregar ao mundo inteiro (cf. Mt 28,18-20), os Apóstolos

disseminaram a Boa-Nova.

O primeiro tema da pregação dos Apóstolos devia ser a Páscoa, ou seja, a Paixão, a Morte e o triunfo final do Senhor Jesus. Quem aceitasse esse primeiro anúncio (querigma), era levado à catequese ou ao estudo da doutrina e dos feitos de Jesus que durante a vida pública haviam provocado a condenação do Senhor. A pregação dos Apóstolos podia limitar-se a esses dois momentos; compreendia as ocorrências entre o Batismo e a Ascensão do Senhor, sem retroceder até a infância e a vida de Jesus na casa de Nazaré; cf. At 1,21.[1] Foi precisamente o que fez São Marcos no seu Evangelho; São Mateus e São Lucas acrescentaram episódios avulsos da infância de Jesus (cf. Mt 1-2; Lc 1-2) sem ter a intenção de fazer uma biografia ou uma narrativa completa da vida do Senhor.[2]

Ao transmitir a Boa-Nova, os Apóstolos e discípulos tinham sempre em vista as circunstâncias e particularidades características dos seus ouvintes.[3] Procuravam dar à Palavra de Deus o Sitz im Leben, o lugar, a ressonância na vida dos ouvintes. Assim foram redigindo formas literárias adaptadas à finalidade da pregação:

– a forma da catequese sistemática (Mt 5-7; Lc 15…);

– a forma do sermão litúrgico (cf. as narrativas da Paixão e Ressurreição em Mt 26-28; Mc 14-16; Lc 22-24; Jo 13-20);

– a forma de hinos (cf. FI 2,5-11; CI 1,15-20; Ef 1,3-14; 2Tm 2,11-13), doxologias (Rm 16,25s; Jd 24s);

– a forma de apologia: havia textos do Antigo Testamento devidamente selecionados para provar a messianidade de Jesus; Is 7,14 (cf. Mt 1,23); Mq 5,1 (cf. Mt 2,6); Os 11,1 (cf. Mt 2,15); Jr 31,15 (cf. Mt 2,18); Is 40,3 e MI 3,1 (cf. Mc 1,2s); Is 8,23-9,1 (cf. Mt 4,15s)…;

– a forma de controvérsia destinada a responder às objeções levantadas pelos ouvintes; os Apóstolos tiravam do repertório das respostas de Jesus as palavras adequadas às necessidades dos seus interlocutores: assim devia haver dúvidas a respeito do sábado (Mc 2,23-3,6), de casamento e divórcio (Mt 5,31s; 19,3-12), do jejum (Mc 2,18-22; Mt 6,16-18), da volta do Senhor (Mt 24,36; 24,42-25,13; Mc 13,32)…

Assim se foi desenvolvendo homogeneamente a mensagem deixada por Jesus sob forma seminal. Todo este trabalho foi assistido pelo Espírito Santo para que não houvesse desvio nem perversão, como o próprio Senhor o predisse; cf. Jo 14, 26; 16,12s. Esta afirmação é essencial para o cristão; não somente a fé a sugere, mas também argumentos de ordem racional, que adiante serão apresentados. 0 cristão crê que o texto escrito dos Evangelhos, embora tenha passado pelas fases preliminares que uma mensagem possa atravessar, é o eco fiel da doutrina de Jesus, desdobrada organicamente pelos Apóstolos e discípulos a fim de a encarnar nas diversas comunidades por eles fundadas.

3) Das primeiras comunidades aos Evangelistas. Aos poucos foi tomando vulto nas comunidades cristãs o desejo de possuir por escrito o ensinamento de Jesus. Devem ter sido redigidos então pequenos blocos literários avulsos portadores ou de parábolas ou de milagres ou de altercações ou de traços biográficos de Jesus.

Essas peças independentes foram sendo aos poucos agrupadas a fim de se ter o ensinamento completo de Jesus. Dos muitos ensaios resultantes dessa tarefa (cf. Lc 1,1), quatro foram reconhecidos pela Igreja como autêntica Palavra de Deus ou como canônicos: os de Mateus, Marcos, Lucas e João.

O agrupamento foi colocado dentro do quadro da vida terrestre de Jesus. Os mensageiros da Boa-Nova conceberam um esquema simples da vida pública do Senhor, composto de quatro partes:

1) preparação do ministério de Jesus (João Batista, Batismo do Senhor, tentações…);

2) a pregação na Galiléia, com centro em Cafarnaum, à margem do lago de Genesaré;

Mt grego 80

João grego, 100

3) a subida a Jerusalém;

4) os acontecimentos da última semana na Cidade Santa e a glorificação do Senhor Jesus.

Dentro deste esquema biográfico foram sendo enquadrados os blocos que a pregação anterior transmitia independentemente uns dos outros.

Está claro que cada Evangelista, tendo recebido da Igreja a mensagem de Jesus formulada pelos Apóstolos, lhe deu o seu cunho próprio, enfatizando mais este ou aquele aspecto da Boa-Nova e da figura do Senhor (Mateus; por exemplo, é o Evangelista dos judeo-cristãos, Lucas o dos pagãos convertidos ao Cristianismo).

A cronologia da origem dos Evangelhos pode ser assim concebida:

 

As datas acima são aproximadas, mas muito prováveis. A primeira redação do Evangelho deu-se por obra de Mateus na terra de Israel e, por isto, em aramaico. Esta redação serviu de modelo para Marcos e Lucas, que utilizaram o esquema de Mateus, acrescentando-lhe características pessoais. O texto de Mateus foi traduzido para o grego, visto que o aramaico entrou em desuso quando Jerusalém caiu em poder dos romanos no ano de 70; o tradutor, desconhecido a nós, retocou e ampliou o texto aramaico, servindo-se de Mc. Isto quer dizer que o texto grego de Mateus (único existente, porque o aramaico se perdeu) é, segundo alguns aspectos, o mais arcaico e, segundo outros aspectos, o mais recente dentre os sinóticos.

Pergunta-se agora:

2.2. Pode-se crer nos Evangelhos?

Há quem julgue que a mensagem de Jesus, tendo passado por várias instâncias intermediárias, foi sendo aos poucos desfigurada, de modo que o texto escrito já não refere a verdade histórica. – Em resposta observaremos o seguinte:

2.2.1. Testemunhas

Os Apóstolos eram muito ciosos da fidelidade a Jesus e à realidade histórica. Tinham consciência de que a Revelação de Deus aos homens passou pela trama da história do Antigo Testamento e da vida de Jesus; os acontecimentos da história da salvação são portadores de mensagem; ligam-se a

verdades, como também as verdades da Revelação se prendem a fatos históricos. São Paulo chega ao ponto de dizer: “Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé… Se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé” (1Cor 15,14.17). Isto quer dizer que toda a sublimidade da sabedoria cristã se retira de campo ou renuncia a se apresentar se não está ligada ao fato concreto histórico da Ressurreição corporal de Jesus. Por conseguinte, em perspectiva cristã não se pode, sem mais, negar a história bíblica e, apesar disto, afirmar a doutrina religiosa do Cristianismo. Isto se evidencia, entre outras coisas, pelo fato de que os Apóstolos não queriam ser senão testemunhas. . . Com efeito; os conceitos de “testemunho”, “testemunha” e “testemunhar” ocorrem mais de 150 vezes nos escritos do Novo Testamento. Ora “testemunha” é a pessoa que está habilitada a fazer afirmações verídicas, pois tem o conhecimento de causa mais seguro, que é a própria experiência pessoal.

É interessante notar a insistência com que os Apóstolos se apresentam como testemunhas de Jesus; afirmam não transmitir senão o que viram e ouviram. Parece, de certo, que a regra de “testemunhar apenas”, sem nada acrescentar de falso, marcava profundamente a vida e a profissão de fé das antigas comunidades cristãs. Tenham-se em vista as seguintes passagens:

Quando entre a Ascensão e Pentecostes os Apóstolos trataram de substituir Judas, o traidor, estipularam, como qualidade própria do novo Apóstolo, a de testemunha, e… testemunha principalmente da ressurreição do Senhor. Tais foram então as palavras de São Pedro:

“Convém que, dentre esses homens que têm estado em nossa companhia todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu entre nós, a começar do batismo de João até o dia em que de nosso meio foi arrebatado, um deles seja incluído em nosso número, como testemunha da sua ressurreição” (At 1,21s).

No dia de Pentecostes, afirmava São Pedro: “A esse Jesus, Deus

ressuscitou. Disto todos nós somos testemunhas” (At 2,32).

No seu segundo sermão, voltava a dizer São Pedro: “Matastes o príncipe da vida, mas Deus o ressuscitou dos mortos. Disto nós somos testemunhas” (At 3,15).

Diante do sinédrio, Pedro e os Apóstolos responderam:

“Foi Deus quem, com a sua destra, elevou (a Jesus) como Príncipe e Salvador para dar a Israel o arrependimento e a remissão dos pecados. E nós somos testemunhas dessas coisas, nós e o Espírito Santo, que Deus deu a todos os que lhe obedecem” (At 5,3ls).

Em casa de Cornélio, dizia S. Pedro: “E nós somos testemunhas de tudo que (Jesus) fez no país dos judeus e em Jerusalém. Eles O mataram, suspendendo-O a um madeiro. Deus, porém, O ressuscitou ao terceiro dia, e permitiu-Lhe aparecer de modo visível, não a todo o povo, mas às testemunhas antes escolhidas por Deus: a nós, que comemos e bebemos com Ele, depois que ressuscitou dos mortos” (At 10,39-41).

Palavras de São Paulo:”:.. Mas Deus O (Jesus) ressuscitou dos mortos. Por muitos dias apareceu àqueles que com Ele tinham subido da Galiléia para Jerusalém e que são agora suas testemunhas perante o povo” (At 13, 30s).

São Paulo, ao contar sua conversão, refere a seguinte ordem de Deus:

“Levanta-te e põe-te em pé, pois eu te apareci para te constituir ministro e testemunha das coisas que viste, e de outras para as quais hei de me manifestar a ti” (At 26,16).

São Paulo fazia questão de lembrar aos coríntios as principais testemunhas da ressurreição:

“Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, conforme as mesmas Escrituras; apareceu a Cefas e depois aos doze. Posteriormente, apareceu, de uma vez, a mais de quinhentos irmãos, dos quais a maior parte vive até hoje, tendo alguns falecidos. Depois apareceu a Tiago e, em seguida, a todos os apóstolos. Por fim, depois de todos, apareceu também a mim, como a um abortivo” (1 Cor 15,3-8).

Por fim, São Pedro escrevia aos fiéis da Ásia Menor:

“Eu, presbítero… e testemunha dos sofrimentos de Cristo…” (1Pd 5,1).

Aliás, ao acentuar o seu papel de testemunhas, os Apóstolos não faziam senão cumprir os dizeres do Mestre: “Sereis minhas testemunhas” (At 1,8; cf. Lc 24,48).

Intencionando, pois, passar por testemunhas, os Apóstolos terão tomado o devido cuidado para ser fiéis à mensagem de Cristo.

2.2.2 Os mitos e o Evangelho

Não há dúvida, na Igreja nascente houve tentativas de deteriorar a mensagem evangélica. São Paulo se refere a fábulas, erros gnósticos, dualistas, docetistas…, que ele compreendia sob a palavra grega mythoi, mitos, e cuidou zelosamente de que tais mitos não se mesclassem com a autêntica doutrina do Cristianismo, chamada logos.

Observemos como os Apóstolos tinham consciência de que os mitos não fazem parte da mensagem evangélica e, por isto, devem ser banidos da pregação:

1 Tm 1,3s: Ao partir para a Macedônia, pedi-te (ó Timóteo) que permanecesses em Éfeso a fim de admoestares certas pessoas a não ensinarem doutrina diferente nem se apegarem a fábulas (mythois) e genealogias intermináveis’

São Paulo tinha em vista lendas inventadas no século I d.C. para esclarecer fatos do Antigo Testamento; visava também a pesquisas que correspondiam ao gosto dos doutores judaicos e dos homens ecléticos da época.

Mais adiante volta o Apóstolo a exortar:

“Rejeita as fábulas (mythous) profanas, verdadeiros contos de velhas. Exercita-te na piedade” (1 Tm 4,7).

Na segunda carta a Timóteo lê-se ainda:

“Os homens afastarão os ouvidos da verdade e os aplicarão às fábulas (mythous)” (2Tm 4,4).

Mais:

Tt 1,13s: ‘Sede sãos na fé e não deis ouvidos a fábulas (mythois) judaicas ou mandamentos de homens desviados da verdade’:

2Pd 1,16: ‘Não foi seguindo fábulas (mythois) sutis, mas por termos sido testemunhas oculares da sua majestade que vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo’

Do mythos se distingue o logos, a palavra, que São Paulo muito recomenda:

Rm 10,8: ‘Ao teu alcance está a palavra da fé que nós pregamos’:

1Ts 2,13: ‘Sem cessar agradecemos a Deus por terdes acolhido a sua Palavra, que vos pregamos não como palavra humana, mas como na verdade é, a Palavra de Deus, que está produzindo efeito em vós’:

2Tm 2,9: ‘Pelo Evangelho sofro até as cadeias… Mas a Palavra de Deus não está algemada’.

2Tm 2,15: ‘Procura apresentar-te… como um trabalhador… que dispensa com retidão a palavra da verdade’.

Ver ainda Tt 2,5, Tg 1,22s; 1Jo 1,1; At 13,26.

Donde se vê que não se deve admitir tenha sido a mensagem cristã penetrada por mitos e confundida com estes, como se os primeiros pregadores da mesma fossem simplórios e destituídos de discernimento.

De resto, os mitos todos têm estilo vago, do ponto de vista da cronologia e da topografia; não podem propor quadro histórico e geográfico preciso; é o que os isenta de controle. Ora dá-se o contrário nos Evangelhos: a topografia da Palestina é por estes minuciosamente mencionada; também a cronologia respectiva é relacionada com a cronologia profana, como se depreende de Lc 2,1 (referência a César Augusto) e Lc 3,1s (referência a Tibério César, Pôncio Pilatos, Herodes, Filipe, Lisânias…).

Mais ainda: nenhum criador de mitos teria inventado o “mito” do Evangelho, cujos traços são desafiadores e exigentes para a mente humana: a mensagem de Deus feito homem e, mais, … crucificado era escândalo para os judeus e loucura para os gregos (1Cor 1,23). A promessa de ressurreição ou de reunião da alma com o corpo era contrária ao pensamento grego; a Moral cristã, que valorizava a mulher, a criança mesmo indesejada, a família, o trabalho manual, o escravo (cf. a epístola a Filemon…), a estrita monogamia sem divórcio…, só podia encontrar oposição da parte da Filosofia greco-romana. Nada disso tinha condições de partir da mente dos homens do século I da nossa era.

2.2.3. Os apócrifos

Era natural que a fantasia humana elaborasse lendas e estórias a respeito de Jesus, visando a completar, de algum modo, o logos ou a Palavra da pregação dos Apóstolos. Acontece, porém, que a Igreja, sabiamente guiada pelo Espírito Santo, soube discernir da história real essas ficções, relegando-as para a literatura apócrifa. Esta é caracterizada por estilo evidentemente imaginoso e fictício, bem diferente do dos Evangelhos canônicos, como se pode perceber através de simples amostragem:

“O menino Jesus tinha cinco anos quando um dia se encontrava a brincar sobre a passarela de um riacho depois da chuva. Recolhendo a água em pequenas vasilhas, tornava-a cristalina no mesmo instante e a dominava apenas com a sua palavra.

Depois fez uma massa de barro e com ela plasmou doze passarinhos. Era então sábado e havia outros meninos a brincar com Jesus.

Certo judeu, vendo o que Jesus acabara de fazer em dia de festa, foi ter correndo com seu pai José e lhe contou tudo: ‘Olha, teu filho está no riacho e, tomando um pouco de barro, fez doze pássaros, profanando assim o sábado

José foi ter com Jesus e, ao vê-lo, censurou-o dizendo: Por que fazes no sábado o que não é lícito fazer?’ Jesus então bateu palmas e se dirigiu aos passarinhos de barro, dizendo-lhes: Ide-vos!’ E os passarinhos todos se puseram a voar e cantar.

Ao ver isto, os judeus se encheram de admiração e foram contar a seus chefes o que tinham visto Jesus fazer” (Evangelho do Pseudo-Tomé //).

‘Aconteceu que um jovem, ao cortar lenha, deixou cair o machado, que lhe cortou a planta do pé. O infeliz ia morrendo aos poucos por causa da hemorragia. Houve então grande alvoroço e tumulto de muita gente. Jesus também se fez presente; depois de abrir passagem, pela força, entre a multidão, chegou perto do rapaz ferido, e com sua mão apertou o pé danificado do jovem, e este imediatamente ficou curado. Disse então Jesus ao moço: ‘Levanta-te já; continua a cortar lenha e lembra-te de mim’. A multidão, ao ver o ocorrido, adorou o menino, exclamando: ‘Realmente neste menino habita o Espírito de Deus!’ ” (ib. no X).

“Quando Jesus tinha seis anos, sua mãe deu-lhe um jarro para que o fosse encher de água e o levasse para casa. Mas Jesus tropeçou no caminho e o cântaro se quebrou. Então ele estendeu o manto que o cobria, encheu-o de água e levou-o a sua mãe. Esta, ao ver tal maravilha, pôs-se a beijar Jesus. E conservava em seu coração todos os mistérios que ela o via realizar” (ib. n? XI).

Ao contrário do que se dá nos apócrifos, quem lê os Evangelhos canônicos, observa aí notável sobriedade de estilo, sintoma de que os Evangelistas tinham consciência de que a sua mensagem narrada com simplicidade tinha em seu favor o fascínio e poder da verdade e, por isto, não precisava de ser “embelezada” artificialmente para encontrar a aceitação do público.

Pode-se, pois, concluir que a mensagem do Evangelho é de origem transcendente e não terá sido produto do ficcionismo de judeus ou de pagãos da antigüidade. – É isto que mais uma vez nos compete afirmar diante das notícias sensacionalistas de certa imprensa.

A propósito:

GUITTONJEAN, Jesus. Ed. Itatiaia, Belo Horizonte.

LAMBIASI, F., Autenticidade histórica dos Evangelhos. Ed. Paulinas.

MESSORI, VITTORIO, Hipóteses sobre Jesus. Ed. Paulinas.

TERRA, JOAO EVANGELISTA MARTINS, Jesus. Ed. Loyola.

PR 219/1978, pp. 95-108 (panorama da moderna crítica dos Evangelhos).

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NOTAS:

[1] Foi São Pedro mesmo quem fixou os termos da pregação dos Apóstolos: ia desde o Batismo ministrado por João até a Ascensão do Senhor, sendo que a ressurreição era o primeiro e mais importante. Tenhamos em vista as palavras de Pedro antes da escolha de Matias: “E necessário que, dentre os homens que nos acompanharam todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu em nosso meio, a começar do Batismo de João até o dia em que dentre nós foi arrebatado, um destes se tome conosco testemunha da sua ressurreição” (At 1,21s).

[2] É isto que explica a lacuna existente, nos Evangelhos, entre os 12 e os 27/30 anos de Jesus. – Há quem diga que ela se deve a uma hipotética viagem do Senhor pelo Oriente remoto, de modo que os evangelistas nada sabiam a respeito de Jesus nesse período. Tal hipótese é falsa, pois os

Evangelistas sabiam que Jesus fora carpinteiro (cf. Mc 6,3, Mt 13,55). Nada ou quase nada escreveram a respeito de tal período, porque este escapava ao âmbito da pregação que os Apóstolos tinham em vista. Cf. PR 206/1977, pp. 61-76.

[3] Comparem-se entre si A t 13,16-41 e A t 17,22-31. No primeiro caso, São Paulo em Antioquia da Pisídia prega a judeus recorrendo aos textos e feitos do Antigo Testamento, familiar aos ouvintes. No segundo caso, o Apóstolo em Atenas prega aos filósofos pagãos gregos utilizando não o Livro Sagrado, mas argumentos filosóficos e testemunhos da tradição do povo ateniense