Evangelhos: “Ele está nos meio de nós”

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 488/1999)

POR UMA EQUIPE DA CNBB

Em síntese: O livro “Ele está no meio de nós” pretende ser uma apresentação do texto do Evangelho segundo Mateus em estilo popular. Todavia está profundamente impregnado de concepções racionalistas, que distorcem o conteúdo do Evangelho; este exprimiria o que as comunidades antigas pensavam a respeito de Jesus, não, porém, o que Jesus disse e fez. O “Jesus da fé” seria diferente do “Jesus da história”. Entre Jesus e o leitor moderno haveria uma barreira intransponível, que seria o modo de pensar dos antigos cristãos e dos evangelistas. Além do mais, os autores do livro em foco são seguidores da Teologia da Libertação, de modo que tudo vêem em função dos “excluídos a ser libertados no plano sócio-econômico”. O livro é gravemente falho ainda a outro título: os autores parecem ignorar totalmente os documentos da Tradição e da papirologia, que incutem ter sido Mateus o autor do primeiro Evangelho em época assaz recuada (talvez meados do século I) e não em 80. A tradução do texto aramaico para o grego terá ocorrido por volta de 80.

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A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil publicou um comentário popular do Evangelho segundo São Mateus da autoria da Irmã Enilda de Paula Pedro e do Pe. Shegeyuki Nakanose, com o título “Ele está no meio de nós!” (ed. Paulus, 1999).

O livro, louvavelmente voltado para interesses pastorais, não preenche a sua finalidade; antes, suscita sérios questionamentos, como se depreenderá de quanto segue.

1. A origem do Evangelho de Mateus

Segundo os respectivos autores do comentário, o Evangelho segundo Mateus seria obra de mutirão realizado por comunidades cristãs (em maioria, provenientes do judaísmo) na Síria ou, mais precisamente, em Antioquia, na década de oitenta, ou seja decênios após a Ascensão do Senhor:

«Como a maioria dos textos bíblicos, o Evangelho de Mateus é fruto de um grande mutirão. Descreve a vivência das comunidades do norte da Galiléia e da Síria. Não é possível saber quem foi o redator final dessas experiências, que mais tarde recebeu o nome de Evangelho de Mateus. Algumas indicações encontradas no texto nos levam a concluir que se trata de comunidades constituídas basicamente de judeus cristãos (13, 52).

O estilo e a problemática levantada pelo Evangelho de Mateus nos dão a entender que seus redatores deviam ser pessoas responsáveis pela coordenação, preocupadas com problemas comunitários concretos (16, 17-28). Dentro desse grupo havia gente muito entendida nas Escrituras, como os rabinos cristãos (5, 17-18), que ajudavam a sacudir a comunidade da sua ‘sonolência’ (25, 5) e a assumir a prática do Senhor baseada no amor e na misericórdia.

O local mais provável é Antioquia, na Síria (cf. At 13). Nessa região, havia muitos judeus e pagãos, presença marcante no Evangelho de Mateus. Em Antioquia, aconteceu o famoso atrito entre Paulo e Pedro (Gl 2, 11-14), que levou a comunidade a olhar Paulo com reserva e a apoiar Pedro. Isso fica claro no destaque que o Evangelho de Mateus dá à pessoa de Pedro (14, 28-31; 15, 15; 16, 22-23; 17, 24-27; 18, 21; 19, 27). Pedro representa a mentalidade dos judeus cristãos, preocupados com a observância da Lei, e ainda ligados ao Templo e ao culto. Paulo representa o pensamento helenista que relativizava a Lei, o Templo e os rituais de culto. As comunidades de Mateus estavam de acordo com Paulo quanto ao culto e ao Templo. Mas elas eram mais cautelosas em relação à Lei.

O Evangelho de Mateus brotou do chão da vida destas comunidades» (pp. 30s).”

2. O Conteúdo da Obra

O Evangelho de Mateus seria o eco das controvérsias ocorrentes entre tais comunidades e o “judaísmo formativo”:

“No contexto da reorganização do judaísmo após a destruição do Templo, as comunidades cristãs disputavam com os grupos do judaísmo formativo a liderança dos grupos de judeus… O Evangelho de Mateus foi escrito nesse clima de brigas entre irmãos… Este certamente não foi o contexto de Jesus” (p. 28).

Já aqui aparece um traço que percorre todo o comentário: o texto do Evangelho informa o leitor a respeito do que houve nos primeiros tempos do Cristianismo, mas não precisamente sobre o que Jesus disse e fez. Constantemente os autores se referem a pretensas tensões existentes entre as primeiras comunidades; seriam elas a peneira pela qual passou a mensagem de Jesus, dificultando ao leitor o acesso ao próprio Jesus (anterior a tais tensões). É típico o trecho seguinte:

“O Evangelho de Mateus, que nasceu em comunidades constituídas em sua maioria por judeus cristãos, retrata a tensão existente no seu meio a respeito da abertura aos gentios, ou seja, estrangeiros. Inicialmente, eram comunidades fechadas que compreendiam a missão e a proposta de Jesus como restrita ‘às ovelhas perdidas da casa de Israel’ (10, 6; 15, 24) e aceitavam a exclusão dos ‘pagãos e cobradores de impostos’ (18, 17). Por isso diminuíram, pouco a pouco, a receptividade aos gentios em algumas das tradições que receberam de Marcos (por exemplo, comparar Mc 7, 14-23 com Mt 15, 10-20 ou Mc 7, 24-30 com Mt 15, 21-28). Mas estas comunidades, ao longo de sua história, nos conflitos com o judaísmo formativo e com o Império Romano, tiveram de entrar em diálogo e relacionar-se com outras comunidades cristãs e abrir-se a propostas mais abrangentes e solidárias. Desta forma, o Evangelho de Mateus termina com Jesus falando ‘… vão e façam com que todos os povos se tornem meus discípulos’ (Mt 28, 19)” (p. 29).

Todo o Evangelho de Mateus é interpretado em função de tais premissas.

Assim:

“As três tentações de Jesus refletem o clima apocalíptico, as expectativas messiânicas do povo da Palestina de tornar Israel uma grande nação, um sonho muito presente nas comunidades de Mateus mesmo depois de tantos anos da morte e ressurreição de Jesus” (p. 55).

“A barca onde está Jesus e seus discípulos corre perigo. Há uma grande agitação no mar e as ondas cobrem o barco. ‘Jesus porém, estava dormindo’ (8, 24). Há resistência do mundo pagão à missão de Jesus. A comunidade parece que vai ser destruída e o pessoal tem a sensação de que Jesus está ausente. Os discípulos só se dão conta da presença de Jesus em seu meio quando a situação se torna realmente insustentável. Mas esta presença é o suficiente para manter a perseverança da comunidade. Jesus é o Senhor do mundo e da história. É preciso fazer crescer a pequena fé naquele que tem o poder de salvar (8, 25-26)” (p. 81).

Após ler este texto, pode-se perguntar: afinal Jesus acalmou a tempestade no lago de Genesaré? Em suma, quem lê o texto do livro em foco, tem a impressão nítida de que o Evangelho de Mateus reflete o que acontecia nas comunidades cristãs da Síria; o Jesus proposto pelo evangelista seria o Jesus tal como foi concebido pelos primeiros cristãos de tal região, não, porém, o Jesus real tal como Ele foi. Em síntese o Jesus da fé seria diferente do Jesus da história; entre o Jesus da realidade histórica e nós haveria a mediação, nem sempre fiel, das comunidades cristãs antigas. Ora tal é a tese da crítica liberal racionalista, que não leva em conta a ação do Espírito Santo na redação dos Evangelhos, nem pondera o papel dos Apóstolos, que não queriam ser mais do que testemunhas do que haviam visto e ouvido (cf. At 1, 21s) e censuravam severamente quem ousasse pregar um Evangelho diferente do que eles, Apóstolos, haviam pregado.

3. Refletindo…

A obra em foco sugere ponderações.

3.1. A origem do Evangelho de Mateus

A tese segundo a qual o Evangelho de Mateus data do ano de 80 e se deve a um mutirão de gente anônima situada em Antioquia, encontra sérios obstáculos por parte da Tradição e da papirologia.

3.1.1. A Tradição

A tradição atribui a Mateus a redação do primeiro Evangelho. Tenha-se em vista o mais antigo testemunho, que é o de Pápias, bispo na Frígia, datado de 130 aproximadamente: “Mateus, por sua parte, pôs em ordem os logia (dizeres) na língua hebraica, e cada um depois os traduziu (ou interpretou) como pôde” (ver Eusébio, História da Igreja III,39,16).

Neste texto Pápias designa o primeiro Evangelho como dizeres, “logia”, visto que realmente nesse livro chamam a atenção os discursos de Jesus. dispostos de maneira ordenada ou sistemática. Este Evangelho, escrito em língua hebraica ou, melhor, aramaica (já que o hebraico caíra em desuso no séc. VI a.C.), foi logo por diversos pregadores traduzido para o grego, já que o hebraico só era usual na terra de Israel. Vê-se, pois, que Mateus escreveu no próprio país de Jesus, tendo em vista leitores cristãos convertidos do judaísmo.

O texto aramaico de Mateus se perdeu, pois só era utilizado na terra de Israel, donde os judeus foram expulsos em 70 d.C.. Várias traduções foram feitas para o grego, das quais uma, datada de 80 aproximadamente, foi oficializada. Não se conhece o autor dessa tradução.

S. Irineu (+200 aproximadamente) também testemunha: “Mateus compôs o Evangelho para os hebreus na sua língua, enquanto Pedro e Paulo em Roma pregavam o Evangelho e fundavam a Igreja” (Adv. Haereses III,1,1).

Outros testemunhos poderiam ser citados. Procuremos, porém, no primeiro Evangelho indícios da personalidade do seu autor.

Que diz o texto?

a) Observemos o catálogo dos apóstolos como se acha em Mc 3, 16-19; Lc 6,14-16 e Mt 10, 2-4. Verificaremos que os nomes se dispõem em pares; ora, no quarto par, Mateus vem antes de Tomé, conforme Mc e Lc; mas vem depois de Tomé, segundo Mt. Note-se ainda que somente em Mt o apóstolo é mencionado com o aposto “cobrador de impostos” ou “publicano”, o que era pouco honroso para um judeu. Quem terá tratado Mateus dessa maneira se não o próprio Mateus?

b) Em Mt 22, 19, ao narrar a disputa de Jesus com os fariseus a propósito do tributo a ser pago a César, Mt usa termos técnicos em grego, que Mc e Lc não utilizam.

c) Mt é o único a narrar o episódio do imposto do templo, em Mt 17, 24-27, o que demonstra o interesse do autor pelos tributos.

Em conclusão, compreende-se que, se havia no grupo dos Apóstolos um homem, e um só, habituado à arte de escrever, calcular e dispor dados, este tenha sido o primeiro indicado (talvez mesmo pelos outros Apóstolos) para redigir um resumo da catequese pregada pelos Apóstolos. Os outros estavam acostumados à pesca: tinham as mãos mais adaptadas às redes, aos remos e ao barco do que ao estilete e ao pergaminho.

3.1.2. A Papirologia

Estão em foco três pequenos fragmentos, do tamanho de selos do correio cada qual; apresentam dez linhas fragmentadas do capítulo 26 do Evangelho segundo São Mateus, de acordo com recentes pesquisas.

Com efeito; tais fragmentos foram descobertos pela primeira vez em Luxor (Egito) no ano de 1901 pelo capelão inglês que lá vivia, o Rev. Charles Huleatt. Foram doados à Biblioteca do Magdalen College de Oxford (Inglaterra). O Rev. Huleatt morreu por ocasião do grande terremoto da Sicília em 1908, sem ter deixado informações sobre o pano de fundo de suas descobertas, que ele também parece não ter divulgado.

Os fragmentos do Magdalen College foram inicialmente tidos como oriundos do ano 200 aproximadamente, como aliás 37 outros papiros do Novo Testamento, existentes no começo deste século, eram datados dos séculos II e III. Esta hipótese foi posta em xeque quando em 1994 o Prof. Carsten Peter Thiede, Diretor do Instituto de Pesquisas Básicas Epistemológicas de Paderbom (Alemanha), visitou Oxford e examinou minuciosamente os manuscritos da Biblioteca do Magdalen College.

As conclusões do Prof. Thiede datavam esses fragmentos do século I ou, mais precisamente, do ano 70 ou até mesmo de anos anteriores a 70. O seu argumento principal era deduzido do tipo de letra utilizada pelo escritor:

trata-se de caracteres verticais, comuns aos manuscritos gregos da primeira metade do século I; após os tempos de Cristo (27-30) tal tipo de letra começou a cair em desuso. Thiede valeu-se da paleografia comparativa, segundo a qual um manuscrito sem data pode ser datado pelo confronto com outros manuscritos de data segura (ou relativamente segura); no caso o Prof. Thiede tomou como referenciais alguns manuscritos gregos descobertos em Qumran junto ao Mar Morto, em Pompei e Herculano (Itália) e que foram reconhecidos recentemente como textos do seculo I.

Segundo os princípios de sua teoria, o Prof. Thiede poderia datar o Evangelho segundo Mateus de poucos anos após o governo de Pôncio Pilatos, que terminou em 36. Preferiu, porém, uma data um pouco mais tardia.

A história da descoberta e as ponderações do Prof. Carsten Peter Thiede encontram-se delineadas na obra “Testemunha Ocular de Jesus. Novas Provas em Manuscrito sobre a Origem dos Evangelhos”, da autoria de Carsten Peter Thiede e Matthew D’Ancona, edição brasileira da Imago Editora, Rio de Janeiro, 1996.

Estes dados evidenciam a inconsistência da sentença do livro “Ele está no meio de nós!”, que atribui origem tardia e anônima ao primeiro Evangelho.

3.2. Pontos particulares

A tendência geral dos autores da obra, que minimizam a historicidade dos relatos evangélicos, se manifesta em pontos particulares:

P. 39: “Assim como todo o Evangelho, as histórias da infância de Jesus não são biografia“. – Esta afirmação é ambígua. Dizemos que o evangelista registra fatos históricos pondo em relevo o seu sentido teológico; é o que se chama “midraxe”, midraxe que não é lenda nem conto, mas a verdade histórica feita catequese.

P. 187: Os relatos da Paixão e Morte de Jesus “não são uma descrição histórica”. – Eis outra afirmação ambígua, à qual se devem fazer as observações acima registradas.

P. 199: Em Mt 27, 50 lê-se que Jesus, antes de morrer, “deu um grande grito“. – Isto era impossível, conforme os autores do livro. A negação é gratuita.

P. 124s: As palavras de Jesus a Pedro em Mt 16,16-19 valem para toda a comunidade cristã. “As comunidades dos simples e pequenos também são chamadas a usar a chave do reino,… para abrir o reino a todos os que se dispõem a aceitá-lo“. O primado de Pedro é assim apagado. Aliás, é a comunidade toda que professa: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo!” (Mt 16,16).

Pp. 112 e 121: Não há multiplicação dos pães, mas partilha dos mesmos. Tal exegese, não rara em nossos dias, contraria os dizeres dos textos e se deve à tendência racionalista de negar os milagres.

Estas poucas observações sejam suficientes para mostrar que o livro “Ele está no meio de nós!” está longe de ser um autêntico comentário do Evangelho de Mateus; é, antes, obra redigida segundo os preconceitos da crítica protestante liberal.