(Revista Pergunte e Responderemos, PR 289/1986)
por Régine Pernoud
Em síntese: Régine Pernoud especializou-se no estudo da Idade Media e tem-se empenhado através de suas publicações, por desfazer concepções errôneas existentes a respeito da Idade Média. Mostra como as artes e a filosofia floresceram então. Apresenta o regime dos servos da gleba como algo que correspondia às necessidades daqueles séculos; com efeito, os pequenos camponeses na falta de um poder régio forte que os defendesse contra os bárbaros, recebiam proteção dos nobres em cujas terras se fixavam; a autora descobre, na base de documentos, algo da vida desses servos, que conseguiram prosperar economicamente. Considera grandes mulheres medievais, que tinham projeção na vida pública e na da Igreja; reconstitui um pouco das atividades das mulheres mais simples, que exerciam o comercio e a industria por sua própria conta. Quanto à Inquisição, chama a atenção para o fato de que na idade Média ela parecia ser um dever de consciência para os cristãos, que estimavam a fé e os valores religiosos acima de quaisquer outros. Refere-se finalmente no Direito Romano, que foi sendo mais e mais cultivado na idade Média, provocando a relegação da mulher para os afazeres domésticos e sugerindo a introdução da pena de morte.
Em suma o livro põe a descoberto muitos aspectos da Idade Média geralmente desconhecidos e aptos a inspirar uma reformulação do juízo negativo, sustentado por não poucos modernos pensadores, a respeito daquela época.
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Não raro a Idade Média[1] é tida como período obscurantista, do qual a humanidade emergiu no século XVI com o Renascimento e a cultura moderna. Muitas histórias se contam para ilustrar a ignorância ou a barbárie dos antepassados medievais; com certa freqüência ouve-se falar de “mentalidade medieval” ou de “recuo aos tempos medievais”. — Eis, porém, que nos últimos tempos a historiografia vem-se dedicando com acume ao estudo dos documentos básicos dos mil anos ou quase mil anos da Idade Média; entre outros, destaca-se a Profª. Régine Pernoud, que tem algumas obras publicadas sobre o assunto. Nas páginas subseqüentes apresentaremos o seu livro intitulado “O Mito da Idade Média”[2], que aborda com erudição as principais facetas da temática.
1. O problema
A expressão “Idade Média” foi concebida pelos historiadores modernos para designar os dez séculos que medearam entre a cultura greco-romana clássica (finda no século V d.C.) e o ressurgimento dessa cultura no século XVI; entre um e outro termos terá havido um período de ignorância, chamado, por isto, “médio” ou “intermediário”. Assim se exprime o Dictionaire Général des
Lettres de Bachelet e Dzobry publicado em 1872: “As artes e as letras, que pareciam ter soçobrado no mesmo naufrágio que a sociedade romana, pareciam reflorir e, após dez séculos de trevas, brilhar com novo clarão” (citação encontrada à p. 15 da obra de R. Pernoud em foco).
A autora observa o que há de estranho no pretenso fenômeno “Idade Média”: “Podem-se conceber mil anos vividos pelo homem sem que ele nada tenha exprimido de belo, de profundo, de grande sobre si próprio? A quem se faria acreditar isto?” (p. 41).
As razões pelas quais a Idade Média tem sido desfigurada são evidentes: a história é o terreno mais palmilhado pelas ideologias, que procuram encontrar na evolução dos tempos as premissas para os seus princípios filosóficos. Ora o século XVI deu início a um período de anticlericalismo até chegar ao ateísmo e materialismo do século XIX. Os autores desses quatro séculos, inspirados por seus princípios filosóficos, alimentaram aversão aos tempos medievais, fortemente marcados pela fé e pelos valores religiosos; a história daquela época foi lida em função de noções preconcebidas que falseiam a ótica dos estudiosos. Quem deseja avaliar com objetividade a história do passado, tem que transpor-se para a época estudada, pesquisar os seus documentos-fontes e reconhecer os critérios dos antepassados; se não, fará um juízo arbitrário e errôneo.
Repassemos agora alguns dos pontos mais comentados pelos historiadores modernos.
2. As artes na Idade Média
R Pernoud dedica dois capítulos de sua obra às artes da Idade Média; o cap. II (“Desajeitados e Inábeis”) trata da arquitetura e da pintura; e o cap. III (“Grosseiros e Ignorantes”), da literatura, do teatro e da música.
Seria difícil admitir que durante mil anos tais setores tenham ficado estagnados. Na verdade, tiveram suas produções notáveis. Com efeito; foi na Idade Média que se elaborou a linguagem musical em vigor até os nossos tempos Os nomes das notas da escala musical dispostas em ordem ascendente foram tirados de um hino do século VIII composto em honra de S. João Batista por Guido de Arezzo:
“Ut queant taxis Resonare fibris
Mira gestor’um Famuli tuorum,
Solve poluti Labii reatum,
Sancte Ioannes”
Donde: Ut (do), ré, mi, fa, sol. la, si (si).
O canto gregoriano, atribuído ao Papa S. Gregório Magno (+ 604), na verdade data do século VII; com os seus hinos e cantos litúrgicos diversos, é até hoje patrimônio da humanidade.
O livro, em sua forma atual, ou o codex substituiu o volumen ou o rolo na Alta Idade Média. A imprensa não teria podido prestar os serviços que prestou senão graças à intervenção do livro.
As obras de Aristóteles (+322 a.C.) foram traduzidas do grego para o árabe e para o latim possibilitando o florescimento da filosofia árabe. Ao lado desta, prosperou o pensamento filosófico-teológico cristão, com suas grandes Sumas (a de S. Tomás de Aquino, a de S. Boaventura, a de Alexandre de Hales., a de S. Alberto Magno. . ., todos do século XIII). Tem-se dito com razão que os medievais se esmeravam no cultivo da lógica e da metafísica. atingindo padrões que não foram posteriormente ultrapassados, ao passo que o pensamento moderno é mais dado à psicologia e ao empirismo, com certo desdém por princípios perenes ou transcendentais; na verdade, a Psicologia sem Metafísica é como uma chave sem bússola ou sem pontos cardeais, enquanto a Metafísica sem Psicologia é um vôo no abstrato sem a devida repercussão concreta.
O teatro, muito cultivado na Idade Média, tomou aspectos especiais mediante a Liturgia católica. Sim; a leitura publica da Bíblia, especialmente dos Evangelhos, sugeriu aos cristãos o desejo de exprimir drasticamente o que liam. Há uma referência a isto num texto datado de 933: durante a noite de Páscoa, travava-se um diálogo entre o anjo e as santas mulheres que tinham ido ao sepulcro de Cristo; as festas do ano foram sendo, aos poucos, apresentadas de maneira visual sob forma de “Mistérios” – o que deu incremento ao teatro. Este se desvinculou posteriormente da Liturgia e da Bíblia. No século XVI (em 1542) o Parlamento Francês proibiu aos “confrades da Paixão” que continuassem a representar no Palácio de Borgonha, onde eles encenavam sempre para a multidão os Mistérios medievais. A fim de fundamentar a proibição, alegavam os parlamentares:
“Tantos os empresários como os atores são pessoas ignorantes, artífices mecânicos, que não sabem nem A nem B; nunca foram instruídos e, mais ainda, não têm linguagem eloqüente, nem conveniente, nem os acentos de pronúncia decente. . . Essas pessoas não cultas nem entendidas em tais assuntos, de condição indigna, como um marceneiro, um estofador, um vendedor de peixe representam os Atos dos Apóstolos”.
Vê-se que na época (século XVI) já se travava a disputa entre profissionais e amadores do teatro: aqueles queriam ver-se livres da concorrência destes. Não obstante, continua até nossos dias a encenação paralitúrgica de trechos do Evangelho por artistas amadores, que obtêm enorme sucesso por seu reconhecido valor; tenhamos em vista a Paixão de Cristo representada em Oberammerqau na Baviera.
3. Feudalismo
Feudalismo, para muitos, quer dizer prepotência, arbitrariedade de um senhor absoluto; para outros, significa anarquia ou falta de um poder central.— Vejamos como surgiram e o que eram os feudos.
O Império Romano era regido por um Governo centralizado, tanto quanto possível, no início da era cristã. Roma, porém, caiu sob os golpes dos godos em 476 – o que deu origem à confusão nas terras do Império ou no Ocidente da Europa, invadido por diversas tribos bárbaras. Não havendo mais poder central que garantisse a ordem pública, pequenos poderes foram surgindo: cada senhor de uma porção de terra procurava assegurar a si mesmo e aos seus servidores aquilo que o Estado não oferecia, isto é, paz, defesa contra os invasores, possibilidade de cultivar a terra, colher seus frutos para se alimentar e para permutá-los num pequeno comércio; este se tornara difícil porque os transportes eram precários; não havia exército para fiscalizar as estradas ameaçadas por bandidos. A terra era a única fonte de subsistência para o homem.Compreende-se então que os camponeses, incapazes de garantir a si e à sua família a segurança respectiva, tenham procurado a proteção de vizinhos mais poderosos, que os defendessem com suas armas em troca de uma parte das colheitas desses camponeses. Havia assim entre o homem do campo e o senhor (sénior, em latim, quer dizer ancião) um contrato firmado por juramento (que naquela época tinha valor sagrado). Tanto o senhor como o agricultor se beneficiavam desse contrato. Foi desta maneira que tiveram origem os feudos ou territórios feudais: constavam de um nobre (conde, barão. . .), que tinha a possibilidade de manter um pequeno exército e que abrigava em seus territórios várias famílias de camponeses. Cada um desses pequenos Estados feudais era mais ou menos autônomo ou tinha sua legislação própria. Podia haver reis ou senhores de territórios maiores, nos quais existiam senhores feudais; esses reis, porém, não gozavam de autoridade centralizada como a do Império Romano; nem Carlos Magno, que em 800 se tornou o Imperador do Sacro Império Romano da Nação Franca, nem os Imperadores Otos, que no século X governaram o Sacro Império Romano da Nação Germânica, restauraram o poder central do antigo Império; entre o monarca e os senhores feudais havia pactos, alianças. . . observância de costumes, que constituíam um liame ora mais tenaz, ora mais fraco.
O rei, nos tempos feudais, era senhor entre outros senhores; governava o seu feudo pessoal, administrando a justiça, defendendo os seus súditos e recebendo as taxas a que tinha direito; os outros senhores deviam-lhe auxílio militar e se comprometiam a entrar em guerra com ele, caso o reino fosse ameaçado. Devia procurar manter o equilíbrio entre seus vassalos e entre estes e o próprio soberano, servindo-se, para isto, do sistema de casamentos e heranças.
O regime feudal, que teve o seu surto nas circunstâncias sócio-geográficas do século V, foi-se espalhando e firmando até o começo do novo regi-me: o das monarquias absolutas, das quais a primeira foi a de Filipe IV o Belo, da França (1285-1314). A volta dos governos centralizados se deve, em grande parte, à restauração do Direito Romano, que começou no século XIII.
Vê-se, pois, quanto é inexato dizer que a Revolução Francesa aboliu o regime feudal em 1789. O Manifesto de KarI Marx, publicado em 1847, reflete o estado da consciência imperfeita da época: fixa o século XVIII como o começo da “luta contra o absolutismo feudal”. Atualmente o historiador objetivo e leal não repete tal afirmação errônea.
4. O servo da gleba
Já aludimos à origem desta instituição: pequenos camponeses, desejosos de ser amparados no clima caótico decorrente da queda de Roma, punham-se sob a tutela de senhores; em troca da proteção. davam-lhes uma parte de suas colheitas e comprometiam-se a permanecer no seu pedaço de solo – o que era vantajoso para o senhor como para o campônio.
Tal regime foi taxado de escravidão – o que supõe enorme equívoco, como passamos a ver.
O servo da gleba era tratado como pessoa, à diferença do escravo romano, que era considerado rés, coisa. O senhor feudal não tinha direito sobre a vida deles, como tinha o senhor do escravo romano. O servo da gleba pactuava com o seu senhor espontaneamente, isto é, isento de coação por parte de algum chefe: o senhor não o poderia expulsar do seu território, nem ele poderia fugir; o servo devia cultivar a terra, cavando-a, semeando-a e colhendo os frutos, tanto em seu proveito como em proveito daquele que lhe dava tutela. Fora disto, o servo gozava de todos os direitos do homem livre: podia casar-se e fundar uma família; a sua terra passaria para os filhos após a sua morte, assim como os bens que ele pudesse adquirir. O senhor feudal tinha obrigações correspondentes: não lhe era lícito vender, alienar ou abandonar a terra do servo.
Através de pesquisas em arquivos medievais, pode-se reconstituir algo da vida de vários servos da gleba. Entre outros, seja citado o caso de Constante Lê Roux. Era servo do senhor de Chantonceaux, em Anjou, nos últimos anos do século XI. Dotado de grande capacidade de trabalho e de tenacidade audaz, não perdia ocasião de aumentar o que possuía: as monjas do Mosteiro de Ronceray confiaram-lhe a guarda de um lugar perto da igreja de Saint-Evroult e umas vinhas na região de Doutre. Depois a Condessa de Anjou cedeu-lhe outro lagar, perto das muralhas de Angers. As monjas de Ronceray, tendo recebido como legado uma casa, um forno e vinhas situados perto do lagar de Constante, julgaram conveniente confiar-lhe todos estes bens a título provisório; pouco depois acrescentaram-lhe a terra de Espau, que comportava prados e pastagens. Mas Constante, que se casara, em breve quis acabar com a sua condição de trabalhador a meio-proveito. Obteve então das monjas que estas lhe arrendassem as terras — o que era muito mais vantajoso para ele. Como não tivesse filhos, conseguiu das monjas que as suas terras fossem transferidas para o seu sobrinho Gautier, enquanto sua sobrinha Yseur desposou Rohot, ecônomo da abadia. Finalmente entrou como monge na abadia de St. Aubin, ao passo que a sua esposa se fez monja na de Ronceray.
Pode-se mencionar também a história das duas servas Auberede e Romelde, que entre 1089 e 1095 compraram a sua liberdade em troca de uma casa que possuíam em Beauvais na praça do mercado. Isto bem mostra que os servos (no caso, as servas) tinham a possibilidade de possuir bens próprios.
No século XIV, quando se ia enfraquecendo a nobreza ou a casta dos senhores feudais, pode-se dizer que praticamente os camponeses se tornaram não apenas usuários, mas propriamente donos da terra que cultivavam.
A Igreja medieval estimulou grandemente a libertação dos servos. É de notar, por exemplo, o caso de Sugere: filho do servo da gleba, foi condiscípulo do futuro rei Luís VI na abadia de Saint-Denis; entre eles originou-se nos bancos da escola uma amizade que só cessaria com a morte; Sugere, mais tarde, tornou-se abade de Saint-Denis e, como tal, governou o reino da França durante a cruzada de Luís VII, que, ao regressar, o proclamou “Pai da Pátria”.
Estes dados, aos quais outros se poderiam acrescentar, bem evidenciam a grande diferença existente entre os escravos da antiga Roma e das colônias americanas, de um lado, e os servos da gleba, do outro lado.
5. A mulher medieval
A figura da mulher, na Idade Média, tem sido mal entendida ou cercada de preconceitos, como se tivesse sido relegada para uma posição de desprezo. Eis alguns que desmentem tal concepção:
Nos tempos feudais a rainha coroada como o rei, geralmente em Reims ou, por vezes, em outras catedrais. A coroação da rainha era tão prestigiada quanto a do Rei. A última rainha a ser coroada foi Maria de Medicis em 1610. na cidade de Paris. Algumas rainhas medievais desempenharam amplas funções, dominando a sua época; tais foram Leonor de Aquitânia (+ 1204) e Branca de Castela (+1252); no caso da ausência, da doença ou da morte do rei, exerciam poder incontestado, tendo a sua chancelaria, as suas armas e o seu campo de atividade pessoal.
Verdade é que a jovem era dada em casamento pelos pais sem que tivesse livre escolha do seu futuro consorte. Todavia observe-se que também o rapaz era assim tratado; por conseguinte, homens e mulheres eram sujeitos ao mesmo regime.
A Igreja lutou contra essa imposição de casamentos; exigiu e exige que os nubentes dêem livre consentimento à sua união matrimonial e formulou impedimentos diversos que, opondo-se à grandeza e à santidade do casamento, o tornam nulo. De passagem observe-se que nem mesmo em nossos dias a legislação muçulmana garante à mulher a liberdade de escolha do seu marido.
Precisamente por causa da valorização prestada pela Igreja à mulher, várias figuras femininas desempenharam notável papel na Igreja medieval. Certas abadessas, por exemplo, eram autênticos senhores feudais, cujas funções eram respeitadas como as dos outros senhores; administravam vastos territórios com aldeias, paróquias; algumas usavam báculo, como o bispo. . . Seja mencionada, entre outras, a abadessa Heloísa, do mosteiro do Paráclito, em meados do século XII: recebia o dízimo de uma vinha, tinha direito a foros sobre feno ou trigo, explorava uma granja.
As monjas da época eram pessoas instruídas e cultas dentro dos padrões do seu tempo (século XII). A própria abadessa Heloísa ensinava às suas monjas o grego e o hebraico. A abadessa Hrotsvitha de Gandersheim exerceu grande influência literária sobre os países germânicos; atribuem-se-lhe seis comédias em prosa e rima, que imitam o estilo de Terêncio (+159 a.C.), comediógrafo latino. Aliás, muitos mosteiros de monges e monjas ministravam a instrução às crianças da sua região, formando o que se chamava “escolas monasteriais”.
É surpreendente ainda notar que a enciclopédia mais conhecida do século XII se deve a uma mulher, ou seja, à abadessa Herrade de Landsberg. Tem o título “Hortus Deliciarum” (Jardim de Delícias) e fornece as informações mais seguras sobre as técnicas do seu tempo. Algo de semelhante se encontra nas obras de S. Hildegardis de Bingen.
Todavia o espécimen mais típico do seu papel que uma mulher podia desempenhar na Idade Média pode ser encontrado em Fontevrault (França), no início do século XII. O pregador Roberto d’Arbrissel, tendo conseguido a conversão de numerosos homens e mulheres, resolveu fundar dois mosteiros: um para os homens, e outro para as mulheres. Entre eles erguia-se a igreja, que era o único lugar onde monges e monjas se podiam encontrar. Ora esse mosteiro foi colocado sob a autoridade não de um abade, mas de uma abadessa; esta, por vontade do fundador, devia ser viúva, tendo, pois. a experiência do casamento.
Notemos ainda a figura de Joana d’Arc (1412-1431); a audiência que conseguiu da parte do rei da França e dos seus cortesãos para desempenhar as suas façanhas heróicas, é realmente algo de extraordinário.
Mesmo as mulheres que não eram altas damas, nem abadessas nem monjas, mas camponesas ou profissionais de alguma arte da época, exerciam sua influência na vida pública. Com efeito; nos arquivos medievais lê-se mais de uma vez o caso de uma mulher casada que agia por conta própria, abrindo, por exemplo, uma loja comercial, sem precisar, para isto, da autorização do marido
Os registros de Paris datados do século XIII apresentam mulheres médicas, professoras, boticárias, tintureiras, copistas, miniaturistas, encadernadoras. Tem-se notícia, cá ou lá das queixas de uma cabeleireira, de uma vendedora de sal, da viúva de um lavrador, de uma cortesã.
É conhecido também o caso da camponesa Galhardina de Frechou que diante de uma proposta de arrendamento feita pelo abade de São Salvino aos habitantes de Cauterets (Pirineus), foi a única a votar não, enquanto toda a população votou sim. Aliás, as mulheres votavam como os homens nas assembléias rurais e nas urbanas.
Foi somente no fim do século XVI, por um decreto do Parlamento Francês de 1593, que a mulher foi explicitamente afastada das funções públicas naquele país. E isto, por influência do direito Romano, que mais e mais ia sendo adotado pelas legislações pós-medievais; foi então confinada àquilo que outrora e sempre foi o seu domínio privilegiado: o lar e a educação dos filhos.
Estes fatos têm significado em nossos dias, quando movimentos feministas reivindicam os direitos da mulher na sociedade atual. Vemos que tencionam precisamente superar um obscurecimento da figura feminina que é pós-medieval. A Idade Média, no caso, bem poderia servir de modelo à mulher contemporânea. Esta, porém, no afã de assumir seu lugar junto ao homem, parece às vezes esquecer-se da sua própria identidade e originalidade; é o que observa muito a propósito Régine Pernoud:
“Tudo acontece como se a mulher, deslumbrada de satisfação à idéia de ter penetrado no mundo masculino, ficasse incapaz do esforço de imaginação suplementar que lhe seria preciso, para trazer a esse mundo a sua própria marca, aquela precisamente que falta à nossa sociedade. Basta-lhe imitar o homem, ser considerada capaz de exercer as mesmas profissões, de adotar os comportamentos, e até os hábitos, em relação ao vestuário do seu parceiro, sem mesmo pôr a si mesma a questão do que é em si contestável e do que deveria ser contestado. É de perguntar se ela não será movida por uma admiração inconsciente, que se pode considerar excessiva, dum mundo masculino que ela acredita necessário e que basta copiar com tanta exatidão quanto for possível, mesmo que seja à custa da perda da sua própria identidade e negando antecipadamente a sua originalidade” (p. 103).
6. A Inquisição
A Inquisição medieval era um tribunal eclesiástico e civil que julgava os hereges e os condenava, de acordo com os procedimentos da época. Também a respeito disto muito se tem escrito sem exato conhecimento, de causa e de maneira preconceituosa. Para entender os fatos, é preciso lembrar os seguintes pontos que R. Pernoud põe em relevo no seu livro (pp. 104-126):
1) Para os medievais, a fé e os bens espirituais eram ainda mais importantes do que a saúde física e os bens materiais. A fim de ilustrar esta afirmação, R. Pernoud refere o seguinte episódio ocorrido sob São Luís, rei da França (1226/70):
“Joinville conta como, no momento em que o exército da França, de que ele fazia parte, foi varrido por uma epidemia às margens do Nilo, ele próprio, atacado pela doença, assiste um dia à Missa na sua cama, sob a tenda. Ora eis que o padre celebrante é de repente atingido também pelo flagelo; cambaleia. Joinville salta da cama e corre a ampará-lo: ‘Acabe o seu sacramento’, disse ele; depois continua a sua narrativa: ‘E ele acabou de dizer a Missa, e nunca mais a cantou’. Ora, para a gente toda hoje o gesto de Joinville pareceria pouco sensato: diante de um padre atacado de doença, qualquer pessoa se apressaria a procurar um médico, mas a preocupação maior de Joinville e do próprio padre, tanto quanto se pode deduzir da narrativa, foi que ele ‘acabasse o sacramento'” (p. 108).
2) No contexto da civilização medieval apareceram no século XI hordes de cátaros, ou seja, de pessoas que julgavam ser a matéria má por si mesma; por isto combatiam as instituições vigentes na sociedade; negavam, por exemplo, a validade do juramento — o que atacava o âmago da vida feudal baseada em contratos e juramentos; condenavam o casamento como se fosse participação na obra do Princípio do Mal, criador da matéria; admitiam o suicídio. . . Propagando tais concepções, os cátaros saqueavam cidades e campos, provocando tumultos e suscitando a reação do povo assim agredido.
3) Enquanto as populações atingidas pelos cátaros faziam justiça pelas próprias mãos, linchando e punindo os cátaros, as autoridades da Igreja apregoavam o recurso aos meios intelectuais e espirituais; seria preciso vencer os hereges pela pregação e a persuasão e não pela violência.
4) Todavia as autoridades civis pressionaram os bispos para que interviessem na repressão aos cátaros, já que prejudicavam não somente a ordem pública, mas também os valores da fé. Em conseqüência, no ano de 1184 o Papa Lúcio III em Verona exortou os bispos a procurar ativamente (inquirir) os hereges em suas dioceses a fim de impedir a propagação do mal. Assim teve origem a Inquisição Episcopal.
5) Visto que esta não era suficiente, em 1233 o Papa Gregório IX instituiu a Inquisição papal, confiando aos Dominicanos, recém-fundados por S. Domingos, o encargo de Inquisidores. O Imperador Frederico II teve grande influência na estruturação e no modo de proceder destes novos tribunais (que eram sempre mistos ou constituídos de eclesiásticos e de delegados do Imperador): incentivou a admissão de normas do Direito Romano, entre as quais a pena de morte. O próprio Frederico II, embora ostentasse zelo pela causa da fé, revelou-se um homem cético e um dos mais perigosos adversários do Papado no século XIII. Aqui tocamos mais um ponto importante para se compreender a realidade da Inquisição medieval: se bem que aparentasse ser um órgão da Igreja destinado a tratar de assuntos eclesiásticos, ela sempre foi um tribunal misto, que os imperadores e reis foram utilizando cada vez mais para fins políticos ou para servir a interesses pessoais (tenham-se em vista, entre outros, os processos contra os templários e contra S. Joana d’Arc, que se explicam por ingerência indevida do braço civil em assuntos religiosos).
6) No tocante à aplicação da pena de morte aos hereges, as estatísticas medievais são muito lacunosas; não permitem reconstituir imagens exatas dos fatos. Os historiadores modernos têm exagerado os números de condenações. Eis as observações de R. Pernoud:
“Os castigos geralmente aplicados são emparcelamento, isto é, a prisão
(distingue-se a ‘parede estreita’, que é a prisão propriamente dita, e a ‘parede larga’, que é a residência vigiada) ou, mais freqüentemente ainda, a condenação a peregrinação ou a trazer uma cruz de pano cosida sobre a roupa. Onde os registros subsistiram, como em Tofosa em 1245-46, constata-se que os inquisidores pronunciaram, em média, uma condenação à prisão dentre nove casos; uma condenação à pena de morte em quinze casos; os outros acusados foram ou libertos ou condenados a penas leves” (p. 114).
7) É importante ainda notar que, antes que os tribunais de Inquisição procedessem oficialmente, os nobres, os reis e o povo simples, “fazendo justiça por suas próprias mãos”, aplicavam violentamente a pena de morte.
São estas algumas observações de peso referentes à Inquisição medieval. Salientemos, mais uma vez, que ela tem sido objeto de preconceitos e exageros por parte de historiadores modernos. As falhas dos inquisidores hão de ser reconhecidas na medida em que realmente existiram; o amor à Igreja não exclui que se diga a verdade quando os filhos da Igreja, à revelia desta Mãe e Mestra- pecaram. A censura aos medievais, porém, leva-nos a um sério exame de consciência da sociedade contemporânea: existe hoje também a Inquisição — e muito dura — não por causa de heresias religiosas, mas por causa de “heresias políticas”. “Todos os castigos, todas as hecatombes, parecem, no nosso tempo, justificados para punir ou prevenir os desvios ou erros quanto a linha política adotada pelos poderes em exercício. E, na maior parte dos casos, não basta banir aquele que sucumbe a heresias políticas, importa convencer; daí as lavagens de cérebro e os internamentos intermináveis que destroem no homem a capacidade de resistência interior” (p. 126).
Quando se pensa no pavoroso balanço, na perda louca de vidas humanas. . . com que se têm punido os delitos de opinião no nosso século XX, pode-se perguntar “se nesse setor do delito de opinião a noção de progresso não se encontra atraiçoada. Para o historiador do ano 3000., onde estará o fanatismo? Ou a exploração do homem pelo homem? No século XIII ou no século XX?” (p. 126).
7. Conclusão
O livro de R. Pernoud merece atenção detida. Põe em relevo facetas ignoradas da realidade medieval, que permitem um juízo mais objetivo sobre esta fase da história. Longe de ter sido obscurantista, foi uma época em que o gênio humano se exprimiu de maneira inesquecível nas artes (letras, música, arquitetura, pintura. . .), na filosofia, no direito. . ., dando às suas produções um toque de transcendental inspirado por fé profunda. É claro que houve em tal época falhas humanas — não poucas nem pequenas — como as há em nossos dias… apenas com a diferença de que a maldade humana hoje é mais requintada e “científica” e, por isto, talvez mais carregada de responsabilidade.
Seria para desejar que o estudo objetivo do passado levasse os contemporâneos a não incidirem em faltas mais graves!
Ver PR 240/1979, pp. 520-534: “Idade Média: o que não nos ensinaram” (Régine Pernoud).
[1] Os autores assinalam termos diversos para delimitar a Idade Media vai da queda de Roma (476) ao início do Humanismo e da Renascença (1450)7 ou só começa no século VI,. . . no século VII? – O debate não vem ao caso. Cada termo-1 imite tem suas justificativas.
[2] Tradução do francês por Maria do Carmo Santos. Editado em português por “Publicações Europa-América”, Lisboa 1978, 115-180 mm, 158 pp.