Indulgências: o que são?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 437/1998)

Em síntese: As indulgências não significam venda do perdão de pecados, como se diz freqüentemente, mas são obras boas que devem ser praticadas com profundo amor a Deus e total repúdio do pecado já absolvido pelo sacramento da Penitência, a fim de que o amor a Deus assim excitado apague os resquícios do pecado que costumam permanecer­ no cristão mesmo após a absolvição sacramental. O fiel católico que lucra uma indulgência pode aplicá-la às almas do purgatório, à guisa de sufrágio, isto é, pedindo a Deus que o amor ao Senhor existente naquelas almas acabe de erradicar qualquer vestígio de amor desregrado. Deve-se reconhecer que não é fácil ganhar indulgências, pois o apego ao pecado (ainda que leve) muitas vezes está profundamente arraigado no íntimo do cristão.

A esmola, implicando caridade ou amor a Deus e ao próximo, pode ser uma obra indulgenciada. É este aspecto que deu origem à falsa interpretação de que se vendia e comprava o perdão dos pecados no século XVI.

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O tema das indulgências, que freqüentemente suscita mal-entendido, será especialmente considerado nestas páginas.

1. Indulgências: que são?

Para ter noção do que são as indulgências na Igreja, devemos aprofundar sucessivamente quatro proposições doutrinárias, a saber:

1) Todo pecado acarreta necessidade de expiação ou reparação.

2) Em vista da reparação, existe na Igreja o tesouro infinito dos méritos de Cristo, que frutificou nos méritos da Bem-aventurada Virgem Maria e dos demais Santos.

3) Cristo confiou à sua Igreja o poder das chaves para administrar o tesouro da Redenção.

4) Fazendo uso deste poder, a Igreja, em determinadas circunstâncias, houve por bem aplicar os méritos de Cristo aos penitentes dispostos a expiar os pecados.

Examinemos mais profundamente estas proposições

1.1. Necessidade de Expiação

O pecado não é somente a transgressão de uma lei, mas é tam­bém a violação da ordem de coisas estabelecida pelo Criador. Por isto, para que haja plena remissão do pecado, é necessário não somente que o pecador obtenha de Deus o perdão, mas também que repare a ordem violada (é o que se chama “expiação”). Assim quem rouba um relógio, não precisa apenas de pedir perdão a quem foi lesado, mas deve também devolver o relógio ao seu proprietário. Quem caluniou alguém, não deve somente pedir-lhe perdão, mas haverá de restaurar o bom nome e a fama de quem foi injustiçado. Mesmo os pecados meramente internos de pensamentos e desejos exigem, além do perdão de Deus, também a restauração da ordem interna do pecador, pois os pensamentos e desejos culposos excitam ou alimentam paixões e afetos desregrados no íntimo do respectivo sujeito.

A necessidade dessa reparação é muito lógica. Dizia sabiamente S. Agostinho: “Aquele que te criou sem ti, não te salva sem ti”[1] – A própria Escritura dá a ver que o Senhor Deus, mesmo após haver perdoado a culpa do pecador, exigiu a reparação da ordem violada. Ver 2Sm 12,13s; Nm 20,12s; Tb 4,11s.

1.2. O tesouro dos méritos de Cristo confiado à Igreja.

Em vista da expiação dos pecados, existe na Igreja um tesouro infinito de méritos que Cristo adquiriu mediante a sua Paixão e Morte; esse tesouro frutificou nos méritos da Bem-aventurada Virgem Maria e dos Santos. É chamado “o tesouro da Igreja”.

Cristo confiou à sua Igreja as chaves para administrar o tesouro da Redenção, como se depreende de textos, como o de Mt 16, 16-19; 18, 18;Jo 20, 22s.

1.3. A aplicação dos méritos de Cristo ou a instituição das in­dulgências

Consciente do poder das chaves que Cristo lhe concedeu, a Igreja, no decorrer dos tempos, resolveu aplicá-lo em favor dos cristãos peniten­tes que ainda tivessem de prestar expiação por seus pecados.

Com efeito. Sabemos que nos primeiros séculos os pecadores que desejassem a absolvição de suas faltas, deviam primeiramente prestar satisfação por elas, tentando extirpar do seu íntimo as raízes do pecado. Por conseguinte, a Igreja lhes impunha uma penitência que, para ser medicinal, costumava ser rigorosa (assim, por exemplo, uma Quaresma de jejum, em que o penitente se vestia de sacos e cilício); essa penitên­cia tinha por objetivo excitar e fortalecer, no penitente, o amor a Deus que extinguiria o amor ou as tendências desordenadas do sujeito. Em conse­qüência, julgava-se que, quando o pecador era absolvido (na Quinta feira Santa, geralmente), ficava isento não apenas da culpa, mas tam­bém das raízes do pecado; teria seu amor purificado ou teria reparado a ordem violada em seu íntimo.

Acontece, porém, que essa praxe penitencial, com o tempo, se tor­nou insustentável; não só exigia especiais condições de saúde, mas tam­bém acarretava conseqüências penosas para todo o resto da vida de quem a ela se submetesse. Eis por que aos poucos foi sendo modificada.

Com efeito, a partir do século VI foi introduzido novo costume: o pecador, tendo confessado suas faltas, recebia logo a absolvição, mas, depois disto, ainda prestaria uma satisfação correspondente à gravidade de suas culpas, a fim de extinguir dentro de si todo apego ao pecado.

Este novo modo de administrar o sacramento da Reconciliação ain­da era assaz penoso; a dura e prolongada penitência (jejum, cilício…) não podia ser praticada por todos os pecadores.

Consciente disto, a Igreja instituiu as “comutações” ou “redenções” de penitências. Esta tem seu fundamento na própria S. Escritura: a Lei de Moisés enumerava casos em que as obrigações dos fiéis eram legiti­mamente comutadas e mitigadas, desde que se tornassem demasiada­mente onerosas[2].

Em que consistiam propriamente as comutações de penitências na Igreja do século IX?

Como dito, a Igreja é depositária dos méritos de Cristo que frutifi­caram nos méritos da SS. Virgem e dos Santos, constituindo o tesouro da Igreja. Ora os Bispos julgaram oportuno, a partir do século IX, aplicar esses méritos em favor dos pecadores absolvidos que se deviam subme­ter a rigorosas penitências. As duras obras de penitência foram sendo substituídas (comutadas) por outras mais brandas, obras às quais a S. Igreja associava diretamente os méritos satisfatórios de Cristo; assim em lugar de jejuns podiam ser impostas orações; em vez de longa peregrina­ção, o pernoitar num santuário; em vez de flagelações, uma esmola…

A estas obras mais brandas a Igreja, num gesto de indulgência, anexava algo da expiação sumamente meritória do Senhor Jesus. Fo­ram chamadas “obras indulgenciadas” (enriquecidas de indulgências). A remissão da pena satisfatória obtida pela prática de tais obras tomou o nome de “indulgência”.

Compreende-se, porém, que tal indulgência não se ganhava de maneira mecânica; era sempre necessário que o penitente, ao realizar a obra indulgenciada, já tivesse recebido a absolvição de seus pecados, e nutrisse em si o horror ao pecado e o férvido amor a Deus que ele teria se fosse prestar uma quarentena ou mais de jejum e de cilício… Sem tais disposições, não ganharia a indulgência proposta.

No século XI, os bispos começaram a conceder indulgências ge­rais, isto é, oferecidas a todos os fiéis, sem se exigir a intervenção direta de um sacerdote. Em outros termos: os Bispos determinaram que, pres­tando tal ou tal obra (visita a um Santuário, orações especiais, esmo­las…), os fiéis poderiam obter a remissão da satisfação correspondente aos seus pecados já absolvidos. Assim quem colaborasse na construção de um santuário ou peregrinasse a um lugar sagrado, lucraria uma indul­gência de 100 dias, 1 ano, 7 anos (isto é, os frutos da penitência realiza­da durante cem dias, um ano, sete anos), desde que o fizesse com o horror ao pecado que animava os penitentes da Igreja antiga.

Esta praxe ficou em vigor até os tempos recentes da Igreja. Quan­do, antes do Concílio do Vaticano II (1962-1965), se falava de “indulgên­cia de 100, 300 dias, um ou mais anos”, não se designava um estágio no purgatório, pois neste não há dias nem anos. Com essa contagem, indi­cava-se o perdão da expiação que outrora alguém prestaria fazendo 100, 300 dias, um ou mais anos de penitência rigorosa, avaliada segundo a praxe da Igreja antiga. Em nossos dias a terminologia mudou, como se dirá mais adiante.

2. Reflexões Teológicas

As considerações até aqui propostas comprovam que a Igreja, ao instituir as indulgências, teve em vista auxiliar os seus filhos que tenham obtido o perdão de seus pecados, mas ainda devam prestar reparação pelos mesmos. A Igreja reconhece que na Comunhão dos Santos os fiéis vivos podem obter indulgências em favor dos irmãos falecidos que no purgatório ainda tenham de prestar satisfação por pecados cometidos nesta vida.

É muito importante notar que ninguém pode lucrar indulgência sem que tenha previamente confessado as suas faltas graves (as obras indulgenciadas não obtêm o perdão dos pecados como tal) e sem que excite em si o espírito de contrição que o levaria a prestar as rigorosas penitências da Igreja antiga; sem este ânimo interior, nada se pode ad­quirir. Donde se vê que a praxe das indulgências está longe de reduzir a religião a formalismo e mercantilismo.

Deve-se observar também que a Igreja nunca vendeu o perdão dos pecados, nem vendeu indulgências. Mais: quando a Igreja indulgenciava a prática de esmolas, não intencionava dizer que o dinhei­ro produz efeitos mágicos, mas queria apenas fomentar a caridade ou as disposições íntimas do cristão como fator de purificação interior. Não há dúvida, porém, de que pregadores populares e muitos fiéis cristãos dos séculos XV/XVI usaram de linguagem inadequada ou errônea ao falar de indulgências. Foi o que deu origem aos protestos de Lutero e dos reformadores. Na verdade, é muito difícil ganhar uma indulgência plená­ria. Quem, ao recitar breve prece indulgenciada ou ao fazer visita a um santuário, pode ter certeza de estar contrito dos seus pecados a ponto de não lhes ter mais o mínimo apego? O velho homem, mais ou menos arraigado em cada cristão, é caprichoso e sorrateiro; para dominá-lo, é necessária assídua vigilância com o auxílio da graça.

3. A praxe atual

Após o Concílio do Vaticano II, o Papa Paulo VI procedeu a uma revisão da instituição das indulgências, que era e é válida, mas se pres­tava a equívocos, principalmente pela contagem de dias, meses e anos de indulgência…; esta terminologia supunha condições históricas que haviam caído no esquecimento do público. .

Eis alguns traços da respectiva Constituição Indulgentiarum Doctrina datada de 1967:

1) A Igreja continua a conceder indulgências plenárias e indulgên­cias parciais. Aquelas significam a remissão de toda a satisfação corres­pondente a pecados já absolvidos; estas, a remissão de parte desta sa­tisfação.

Fica, porém, abolida a indicação de dias e anos de indulgência parcial. O valor das indulgências parciais é doravante expresso em ter­mos mais compreensíveis.

Com efeito. Sabemos que toda boa obra (prece, esmola, mortifica­ção…) tem anexo a si um determinado mérito; se alguém realiza tal obra em espírito de contrição, adquire a remissão de uma parte de sua satisfa­ção purgatória. Pois bem; Paulo VI determinou que as pessoas que pra­ticam uma ação indulgenciada pela Igreja, obtêm (além da remissão anexa ao ato bom como tal) uma igual remissão devida à intervenção da S. Igreja. Isto significa, em última análise, que a medida das indulgências parciais é a medida do arrependimento e do amor a Deus com que al­guém pratica a ação indulgenciada; se o cristão a realiza com ânimo rotineiro e tíbio, pouco lucra; ao contrário, quanto mais fervor ele empe­nhar na execução da obra indulgenciada, tanto mais também será ele indulgenciado.

Vê-se como esta disposição é apta a fazer do instituto das indul­gências um estímulo para o afervoramento da piedade dos fiéis.

2) Para que alguém possa lucrar indulgência plenária, requer-se que, além de executar a obra indulgenciada, faça uma confissão sacra­mental, receba a Comunhão Eucarística, ore segundo as intenções do Sumo Pontífice (um “Pai Nosso” e uma “Ave Maria”, por exemplo) e não guarde o mínimo apego a qualquer pecado, ainda que seja leve.

Se alguém puder cumprir, mas de fato não cumprir estas condi­ções, só lucrará indulgência parcial.

A confissão sacramental pode ser efetuada alguns dias antes ou (se não houver pecado grave) depois da obra indulgenciada. A S. Comu­nhão, porém, e a oração pelo Sumo Pontífice deverão ocorrer no dia mesmo em que se realizar a obra.

Basta uma Confissão sacramental para se adquirir mais de uma indulgência plenária. Requer-se, porém, uma Comunhão e uma oração pelo S. Padre para cada indulgência plenária.

3) O novo catálogo de indulgências assinala várias obras de pieda­de como indulgenciadas. Antes do mais, porém, propõe três grandes con­cessões:

a) É concedida indulgência parcial a todo cristão que, no cumpri­mento de seus deveres e no suportar as tribulações da vida presente, levante a mente a Deus com humildade, confiança, proferindo ao mesmo tempo alguma invocação piedosa (com os lábios ou só com a mente).

b) É concedida indulgência parcial ao cristão que, movido por espí­rito de fé e misericórdia, coloca a sua pessoa ou os seus bens ao serviço dos irmãos que padecem necessidade.

c) É concedida indulgência parcial ao cristão que, movido por espí­rito de penitência, se abstenha espontaneamente de algo que lhe seja lícito e agradável.

Mediante estas três normas, a Igreja visa a estimular os seus filhos a uma vida fervorosa, animada por espírito de fé, de amor e de configura­ção a Cristo.

 

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NOTAS

[1] Verdade é que nenhuma criatura faz algo de bom sem a graça de Cristo (cf. Jo 15,5), mas é preciso que a criatura corresponda à graça que lhe é oferecida.

[2] Ver Lv 5, 7-11:

“Se o homem não tiver recursos para oferecer uma rês de gado miúdo, trará a Javé, em sacrifício de reparação pelo pecado que cometeu, duas rolas ou dois pombinhos, um deles para sacrifício pelo pecado e outro para holocausto…

Se ele não tiver recursos para oferecer duas rolas ou dois pombinhos, trará como oferenda pelo pecado cometido um décimo de medida de flor de farinha; não porá nela azeite nem incenso, pois é um sacrifício pelo pecado”.

 

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