Inquisição, Galileu: João Paulo II, Galileu e a infalibilidade papal

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 250/1980)

Em síntese: O presente artigo comenta uma notícia de jornal se­gundo a qual João Paulo II, no encontro com os intelectuais no Rio (Su­maré), teria declarado que a infalibilidade papal é uma figura de retórica. Ora o autor destas linhas, testemunha ocular e auricular das ocorrências do encontro, mostra que o jornalista carecia de fundamento para fazer tal afirmação. João Paulo II no Sumaré não mencionou a infalibilidade papal nem falou de “figura de retórica”, mas referiu-se à Constituição Gaudium et Spes do Concílio do Vaticano II, que lamenta “tensões e conflitos que levaram muitos espíritos a julgar que ciência e fé se opõem” (n° 36). A tal texto conciliar aludiu João Paulo II também em sua alocução à Pontifícia Academia de Ciências aos 10/11/79, apregoando a superação dos supostos conflitos. Na verdade, o caso de Galileu não envolveu a infalibilidade papal, pois não implicou uma definição ex cathedra do Romano Pontífice, mas tão somente uma declaração da Sagrada Congregação do Santo Ofício, à qual a Igreja não atribui o carisma da infalibilidade, embora lhe dedique todo o respeito.

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Comentário: Correu a noticia, divulgada por um comen­tarista da imprensa aos 3/07/80, de que, durante o encontro com os intelectuais no Sumaré (Rio), o S. Padre João Paulo II teria qualificado a infalibilidade pontifícia de «figura de retó­rica»; haveria mesmo acrescentado que ele próprio estava hesi­tante em muitos pontos:

O PAPA FALHA

«Lembrando a condenação de Galileu pela Igreja e a sua absolvição, séculos depois, pelo Vaticano, o físico José Goldemberg per­guntou a João Paulo II no encontro do Sumaré como ele encarava o princípio da infalibilidade do Papa, procurando saber como pode­riam os cientistas conviver com essa idéia. O Santo Padre, dando mais uma demonstração de seu forte estilo e caráter, respondeu ‘Eu, como pessoa, tenho dúvidas em relação a muitas coisas. Não me sinto infalível em nada. A infalibilidade papal não é mais que uma figura de retórica’».

Ora tal notícia, que teria significado vultoso para os fiéis católicos, carece, por completo, de fundamento. Eis por que o autor destas linhas, como participante que foi do encontro, se propõe esclarecer os fatos próximos e remotos que se ligam às palavras do Papa no Sumaré (Rio).

1. A resenha do encontro

A 1°/07/80, pelas 21 h, o S. Padre, tendo celebrado Missa no Aterro, quis oferecer a um grupo de aproximadamente cem intelectuais do Brasil a oportunidade de um encontro e um diálogo. Por conseguinte, após ter saudado pessoalmente cada qual dos presentes, proferiu uma alocução em português a res­peito da cultura; punha então em relevo o homem como ponto de convergência das tarefas culturais, homem que, por sua vez, só pode ser devidamente entendido se considerado à luz de Deus e dos valores transcendentais; S. Santidade enfatizou ou­trossim a liberdade como condição para que haja autêntica vida cultural.

Após a sua exposição, o Papa manifestou o desejo de que o interrogassem… Foi então que, entre outros, o físico prof. José Goldemberg se levantou para congratular-se com S. San­tidade pelas palavras proferidas à Pontifícia Academia de Ciên­cias aos 10/11/79 em favor de Galileu Galilei: João Paulo II reconhecera a veracidade da posição científica de Galileu (+1642). O Pontífice respondeu ao prof. Goldemberg, afir­mando que na realidade não poderia haver contradição entre as verdades da fé e as da ciência, pois que toda verdade tem sua fonte em Deus, o Criador; o S. Padre observou também que em sua alocução de 10/11/79 não fizera senão prolongar o eco de afirmações do Concílio do Vaticano II.

Com efeito. O Concílio em 1965, na sua Constituição Pas­toral sobre a Igreja e o Mundo Moderno, deplorou tensões e conflitos que levaram muitos espíritos a pensar que ciência e fé se opõem entre si. Eis textualmente as palavras do do­cumento conciliar:

“Se a pesquisa metódica em todas as ciências proceder de maneira verdadeiramente científica e segundo as leis morais, na realidade nunca será oposta à fé: tanto as realidades profanas quanto as da fé originam-se do mesmo Deus. Mais ainda: aquele que tenta perscrutar com humildade e perseverança os segredos das coisas, ainda que disto não tome cons­ciência, é como que conduzido pela mão de Deus, que sustenta todas as coisas, fazendo que elas sejam o que são. Portanto, permita-se-nos lamentar algumas atitudes que não faltaram às vezes entre os próprios cristãos, por não se reconhecer claramente a legítima autonomia das ciências. Nas dispu­tas e controvérsias suscitadas por este motivo, levaram a mente de muitos a julgar que a fé e a ciência se opunham entre si”‘ (Const. Gaudium et Spes n° 36).

Ora S. Santidade, aos 10/11/79, em solene sessão da Pon­tifícia Academia de Ciências comemorativa do centenário do nascimento de Albert Einstein, aludiu ao caso Galileu nos se­guintes termos

“A grandeza de Galileu é de todos conhecida, como a de Einstein; mas diferentemente deste… o primeiro muito teve que sofrer – não poderíamos escondê-lo – da parte de homens e organismos da Igreja. O Concílio Vaticano reconheceu e deplorou certas intervenções indevidas ‘Seja-nos permitido lamentar – está escrito no número 36 da Constituição conciliar Gaudium et Spes – certas atitudes que existiram até entre os próprios cristãos, por não terem entendido suficientemente a legítima auto­nomia da ciência. Fontes de tensões e de conflitos, elas levaram muitos espíritos a pensar que ciência e fé se opõem entre si’. A referência a GaIileu está expressa claramente na nota relativa a este texto, que cita o volume Vita e opere di Galileo Galilei de Mons. Pio Paschini, editado pela Pontifícia Academia das Ciências.

Indo além desta tomada de posição do Concílio, desejo que teólogos, sábios e historiadores, animados por espírito de sincera colaboração, apro­fundem o exame do caso de Galileu e, num reconhecimento leal dos erros, de qualquer lado que tenham vindo, façam desaparecer as desconfianças que este assunto opõe ainda, em muitos espíritos, a uma concórdia fru­tuosa entre ciência e fé, entre a Igreja e o mundo. Dou todo o meu apoio a esta tarefa, que poderá honrar a verdade da fé e da ciência, e abrir a porta a futuras colaborações” (transcrito de L’Osservatore Romano, ed. portuguesa de 25/11/79, p. 6).

Após a leitura do texto verifica-se que João Paulo II, em seu discurso de 10/11/79 como também em sua resposta ao prof. Goldemberg, se referiu ao texto conciliar, mas não pronunciou uma só vez as palavras «infalibilidade pontifícia» ou «figura de retórica». Não entrou, pois, na questão da infalibi­lidade pontifícia; na verdade, esta não vem a propósito em se tratando do caso de Galileu. Com efeito, a infalibilidade papal, como declarou o Concílio do Vaticano I (1870), se exerce tão somente quando o Papa tenciona definir ex cathedra algum ponto preciso de fé ou de Moral. Ora a questão levantada por Galileu ficava fora do âmbito da infalibilidade pontifícia, ver­sando sobre Física e Astronomia.

Mais: contra a posição de Galileu pronunciou-se não o Sumo Pontífice Paulo V (1603­-1621) ou Gregorio XV (1621-1623) ou Urbano VIII (1623­-1644) em alguma definição ex cathedra, mas, sim, a S. Con­gregação do Santo Oficio em duas intervenções sucessivas da­tadas respectivamente de fevereiro 1616 e junho 1633. Ora a Igreja não atribui infalibilidade às Congregações que assesso­ram o Sumo Pontífice, embora os pronunciamentos destas me­reçam respeito e acatamento. Eis por que se deve dizer que a infalibilidade papal, como é entendida pela Igreja, não foi com­prometida no caso de Galileu. De resto, é de notar que o Sumo Pontífice só definiu verdades de fé e de Moral em raras oca­siões da história do Cristianismo, tendo em mira sempre escla­recer o povo fiel e preservar a doutrina revelada de desvios ou falsas interpretações. Foi precisamente em vista da íntegra conservação do depósito da fé que Cristo confiou a Pedro a missão de ligar e desligar (cf. Mt 16,16-19; Le 22, 31s; Jo 15, 15-17).