Inquisição: historia das inquisições? Portugal, Espanha e Itália (sec. XV-XVI)

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 460/2000)

Em síntese: O historiador português Francisco Bethencourt escreveu minuciosa obra que analisa os Regimentos, o funcionamento, o ritual e os símbolos da Inquisição em Portugal, na Espanha e na Itália. Quem a lê, mal se dá conta da realidade subjacente à Inquisição da península ibérica: foi fortemente manipulada pelo poder régio, que solicitou à Santa Sé a instalação do tribunal inquisitorial a fim de unificar a população da península, livrando-a da presença de judeus não convertidos ao Cristianismo e muçulmanos. Principalmente a Inquisição Espanhola foi dirigida pelos monarcas a ponto mesmo de entrar em conflito com a autoridade de Roma; ficou sendo chamada “Inquisição Régia” e não “Inquisição Eclesiástica”.

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O historiador português Francisco Bethencourt publicou vasto estudo intitulado “História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália, Séculos XV-XIX”[1]. A obra é de alta erudição: supõe minuciosa pesquisa em fontes variadas, constituindo um rico documentário. Todavia não põe em relevo suficiente o fato de que, embora fosse oficialmente eclesiástica, a Inquisição Ibérica foi intensamente orientada pelos reis de Espanha e Portugal, que intencionavam, mediante tal órgão (de inspiração religiosa), atender a interesses políticos e unificar a população de seus territórios, eliminando judeus não convertidos e muçulmanos. A Inquisição tinha em vista os cripto-judeus ou os israelitas que, tendo recebido o Batismo, conservavam usos do judaísmo numa atitude religiosa ambígua.

O livro de Bethencourt pode impressionar o leitor, pois descreve minuciosamente o procedimento da Inquisição, com ritos e costumes que hoje causam espanto ao estudioso. Trata-se de comportamentos que, em hipótese nenhuma, poderiam ser repetidos nos dias atuais, mas que, na respectiva época (em regime de Cristandade), quando toda a população, desde o rei até o servo, era católica, não causavam espécie; ao contrário, impunham-se à consciência dos cristãos como um dever; zelar pela integridade da fé era algo de impreterível e estritamente obrigatório. Não se deveriam, pois, julgar os procedimentos da Inquisição com as categorias atuais, mas, para evitar julgamento injusto, faz-se mister retroceder até a época dos fatos narrados.

As páginas subseqüentes tentarão pôr em relevo os aspectos menos conhecidos da Inquisição na Espanha, ficando para o artigo seguinte algo da história da Inquisição em Portugal.

1. Origem da Inquisição Espanhola

Os reis Fernando e Isabel, visando à plena unificação de seus domínios, tinham consciência de que existia uma instituição eclesiástica – a Inquisição – oriunda na Idade Média com o fim de reprimir um perigo religioso e civil dos séculos XI/XII (a heresia cátara ou albigense); a este perigo pareciam assemelhar-se as atividades dos marranos (judeus) e mouriscos (árabes) na Espanha do século XV.

A Inquisição Medieval nunca fora muito ativa na península ibérica; achava-se aí mais ou menos adormecida na segunda metade do séc. XV… Aconteceu, porém, que durante a Semana Santa de 1478 foi descoberta em Sevilha uma conspiração de marranos, a qual muito exasperou o público. Então lembrou-se o rei Fernando de pedir ao Papa, reavivasse na Espanha a antiga Inquisição, e a reavivasse sobre novas bases, mais promissoras para o reino, confiando sua orientação ao monarca espanhol.

Sixto IV, assim solicitado, resolveu finalmente atender ao pedido de Fernando (ao qual, depois de hesitar algum tempo, se associara Isabel). Enviou, pois, aos reis da Espanha o Breve de 1º de novembro de 1478, pelo qual “conferia plenos poderes a Fernando e Isabel para nomearem dois ou três Inquisidores, arcebispos, bispos ou outros dignitários eclesiásticos, recomendáveis por sua prudência e suas virtudes, sacerdotes seculares ou regulares, de quarenta anos de idade ao menos, e de costumes irrepreensíveis, mestres ou bacharéis em Teologia, doutores ou licenciados em Direito Canônico, os quais deveriam passar de maneira satisfatória por um exame especial. Tais Inquisidores ficariam encarregados de proceder contra os judeus batizados reincidentes no judaísmo e contra todos os demais culpados de apostasia. O Papa delegava a esses oficiais eclesiásticos a jurisdição necessária para instaurar os processos dos acusados conforme o Direito e o costume; além disto, autorizava os soberanos espanhóis a destituir tais Inquisidores e nomear outros em seu lugar, caso isto fosse oportuno” (L. Pastor, Histoire des Papes IV 370).

Nota-se bem que, conforme este edito, a Inquisição só estenderia sua ação a cristãos batizados, não a judeus que jamais houvessem pertencido à Igreja; a instituição era, pois, concebida como órgão promotor de disciplina entre os filhos da Igreja, não como instrumento de intolerância em relação às crenças não-cristãs.

2. Procedimentos da Inquisição

Apoiados na licença pontifícia, os reis da Espanha aos 17 de setembro de 1480 nomearam Inquisidores, com sede em Sevilha, os dois dominicamos Miguel Monho e Juan Martins, dando-lhes como assessores dois sacerdotes seculares. Os monarcas promulgaram também um compêndio de “Instruções”, enviado a todos os tribunais da Espanha, constituindo como que um código da Inquisição, a qual assim se tornava uma espécie de órgão do Estado civil.

Os Inquisidores entraram logo em ação, procedendo geralmente com grande energia. Parecia que a Inquisição estava a serviço não da Religião propriamente, mas dos soberanos espanhóis, os quais procuravam atingir criminosos mesmo de categoria meramente política.

Em breve, porém, fizeram-se ouvir em Roma queixas diversas contra a severidade dos Inquisidores. Sixto IV então escreveu sucessivas cartas aos monarcas da Espanha, mostrando-lhes profundo descontentamento por quanto acontecia em seu reino e baixando instruções de moderação para os juízes tanto civis como eclesiásticos.

Merece especial destaque neste particular o Breve de 02 de agosto de 1482, que o Papa, depois de promulgar certas regras coibitivas do poder dos Inquisidores, concluía com as seguintes palavras:

“Visto que somente a caridade nos torna semelhantes a Deus…, rogamos e exortamos o Rei e a Rainha, pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de que imitem Aquele de quem é característico ter sempre compaixão e perdão. Queiram, portanto, mostrar-se indulgentes para com os seus súditos da cidade e da diocese de Sevilha que confessam o erro e imploram a misericórdia!”

Contudo, apesar das freqüentes admoestações pontifícias, a Inquisição Espanhola ia-se tornando mais e mais um órgão poderoso de influência e atividade do monarca nacional. Para comprovar isto, basta lembrar o seguinte: a Inquisição no território espanhol ficou sendo instituto permanente durante três séculos a fio. Nisto diferia bem da Inquisição Medieval, a qual foi sempre intermitente, tendo em vista determinados erros oriundos em tal e tal localidade. A manutenção permanente de um tribunal inquisitório impunha avultadas despesas, que somente o Estado podia tomar a seu cargo; foi o que se deu na Espanha: os reis atribuíam a si todas as rendas materiais da Inquisição (impostos, multas, bens confiscados) e pagavam as respectivas despesas; conseqüentemente alguns historiadores, referindo-se à Inquisição Espanhola, denominaram-na “Inquisição Régia”!

3. Emancipada de Roma

A fim de completar o quadro até aqui traçado, passemos a mais um pormenor característico do mesmo.

Os reis Fernando e Isabel visavam a corroborar a Inquisição, emancipando-a do controle mesmo de Roma… Conceberam então a idéia de dar à instituição um chefe único e plenipotenciário – o Inquisidor-Mor -, o qual julgaria na Espanha mesma os apelos dirigidos a Roma. Para este cargo, propuseram à Santa Sé um religioso dominicano, Tomás de Torquemada (“a Turrecremata”, em latim), o qual em outubro de 1483 foi realmente nomeado Inquisidor-Mor para todos os territórios de Fernando e Isabel. Procedendo à nomeação, escrevia o Papa Sixto IV a Torquemada:

“Os nossos caríssimos filhos em Cristo, o rei e a rainha de Castela e Leão, nos suplicaram para que te designássemos como Inquisidor do mal da heresia nos seus reinos de Aragão e Valença, assim como no principado de Catalunha” (Buliar. Ord. Praedicatorum III 622).

O gesto de Sixto IV só se pode explicar por boa fé e confiança. O ato era, na verdade, pouco prudente…

Com efeito; a concessão benignamente feita aos monarcas seria pretexto para novos e novos avanços destes: os sucessores de Torquemada no cargo de Inquisidor-Mor já não foram nomeados pelo Papa, mas pelos soberanos espanhóis (de acordo com critérios nem sempre louváveis). Para Torquemada e sucessores, foi obtido da Santa Sé o direito de nomearem os Inquisidores regionais, subordinados ao Inquisidor-Mor.

Mais ainda: Fernando e Isabel criaram o chamado “Conselho Régio da Inquisição”, comissão de consultores nomeados pelo poder civil e destinados como que a controlar os processos da Inquisição; gozavam de voto deliberativo em questões de Direito civil, e de voto consultivo em temas de Direito Canônico.

Uma das expressões mais típicas da autonomia arrogante do Santo Ofício espanhol é o famoso processo que os Inquisidores moveram contra o arcebispo primaz da Espanha, Bartolomeu Carranza, de Toledo. Sem descer aos pormenores do acontecimento, notaremos aqui apenas que durante dezoito anos contínuos a Inquisição Espanhola perseguiu o venerável prelado, opondo-se a legados papais, ao Concilio Ecumênico de Trento e ao próprio Papa, em meados do séc. XVI.

Frisando ainda um particular, lembraremos que o rei Carlos III (1759-1788) constituiu outra figura significativa do absolutismo régio. Colocou-se peremptoriamente entre a Santa Sé e a Inquisição, proibindo a esta que executasse alguma ordem de Roma sem licença prévia do Conselho de Castela, ainda que se tratasse apenas de proscrição de livros. O Inquisidor-Mor, tendo acolhido um processo sem permissão do rei, foi logo banido para localidade situada a doze horas de Madrid; só conseguiu voltar após apresentar desculpas ao rei, que as aceitou, declarando:

“O Inquisidor Geral pediu-me perdão, e eu lho concedo; aceito agora os agradecimentos do tribunal; protegê-lo-ei sempre, mas não se esqueça desta ameaça de minha cólera voltada contra qualquer tentativa de desobediência” (cf. Desde vises du Dezart, L’Espagne de l’Ancien Régime. La Société 101s).

A história atesta outrossim como a Santa Sé repetidamente decretou medidas que visavam a defender os acusados frente à dureza do poder régio e do povo. A Igreja em tais casos distanciava-se nitidamente da Inquisição Régia, embora esta continuasse a ser tida como tribunal eclesiástico.

Assim aos 02 de dezembro de 1530, Clemente VII conferiu aos Inquisidores a faculdade de absolver sacramentalmente os delitos de heresias e apostasias; destarte o sacerdote poderia tentar subtrair do processo público e da infâmia da Inquisição qualquer acusado que estivesse animado de sinceras disposições para o bem. Aos 15 de junho de 1531, o mesmo Papa Clemente VII mandava aos Inquisidores tomassem a defesa dos mouriscos que, acabrunhados de impostos pelos respectivos senhores e patrões, poderiam conceber ódio contra o Cristianismo. Aos 02 de agosto de 1546, Paulo III declarava os mouriscos de Granada aptos para todos os cargos civis e todas as dignidades eclesiásticas. Aos 18 de janeiro de 1556, Paulo IV autorizava os sacerdotes a absolver em confissão sacramental os mouriscos.

Compreende-se que a Inquisição Espanhola, mais e mais desvirtuada pelos interesses às vezes mesquinhos dos soberanos temporais, não podia deixar de cair em declínio. Foi o que se deu realmente nos séculos XVIII e XIX. Em conseqüência de uma revolução, o Imperador Napoleão I interveio no governo da nação, aboliu a Inquisição Espanhola por decreto de 04 de dezembro de 1808. O rei Fernando VII, porém, restaurou-a em 1814, a fim de punir alguns de seus súditos que haviam colaborado com o regime de Napoleão. Finalmente, quando o povo se emancipou do absolutismo de Fernando VII, restabelecendo o regime liberal no país, um dos primeiros atos das Cortes de Cadiz foi a extinção definitiva da Inquisição em 1820. A medida era, sem dúvida, mais do que oportuna, pois punha termo a uma situação humilhante para a Sta. Igreja.

4. Tomás de Torquemada

Tomás de Torquemada nasceu em Valladolid (ou, segundo outros, em Torquemada) no ano de 1420. Fez-se Religioso dominicano, exercendo por 22 anos o cargo de Prior do convento de Santa-Cruz em Segóvia. Já aos 11 de fevereiro de 1482 foi designado por Sixto IV para moderar o zelo dos Inquisidores espanhóis. No ano seguinte o mesmo Pontífice o nomeou Primeiro Inquisidor de todos os territórios de Fernando e Isabel.

Extremamente austero para consigo mesmo, o frade dominicano usou de semelhante severidade nos seus procedimentos judiciários. Dividiu a Espanha em quatro setores inquisitoriais, que tinham como sedes respectivas as cidades de Sevilha, Córdova, Jaen e Villa (Ciudad) Real. Em 1484 redigiu, para uso dos Inquisidores, uma “Instrução”, opúsculo que propunha normas para os processos inquisitoriais, inspirando-se em trâmites já usuais na Idade Média; esse libelo foi completado por dois outros do mesmo autor, que vieram a lume respectivamente em 1490 e 1498.

O rigor de Torquemada foi levado ao conhecimento da Sé de Roma; o Papa Alexandre VI, como dizem algumas fontes históricas, pensou então em destituí-lo de suas funções; só não o terá feito por deferência à corte da Espanha. O fato é que o Pontífice houve por bem diminuir os poderes de Torquemada, colocando a seu lado quatro assessores munidos de iguais faculdades (Breve de 23 de junho de 1494).

Quanto ao número de vítimas ocasionadas pelas sentenças de Torquemada, as cifras referidas pelos cronistas são tão pouco coerentes entre si que nada se pode afirmar de preciso sobre o assunto.

Tomás de Torquemada ficou sendo, para muitos, a personificação da intolerância religiosa, homem de mãos sanguinolentas… Os historiadores modernos, porém, reconhecem exagero nessa maneira de conceituá-lo; levando em conta o caráter pessoal de Torquemada, julgam que este Religioso foi movido por sincero amor à verdadeira fé, cuja integridade lhe parecia comprometida pelos falsos cristãos; daí o zelo extraordinário com que procedeu. A reta intenção de Torquemada ter-se-á traduzido de maneira pouco feliz.

De resto, o seguinte episódio contribui para desvendar outro traço, menos conhecido, do frade dominicano: em dada ocasião, foi levada ao Conselho Régio da Inquisição a proposta de se impor aos muçulmanos ou a conversão ao Cristianismo ou o exílio. Torquemada opôs-se a essa medida, pois queria conservar o clássico princípio de que a conversão ao Cristianismo não pode ser extorquida pela violência; por conseguinte, a Inquisição deveria restringir sua ação aos cristãos apóstatas; estes, e somente estes, em virtude do seu Batismo, tinham um compromisso com a Igreja Católica. Como se vê, Torquemada, no fervor mesmo do seu zelo, não perdeu o bom senso neste ponto. Exerceu suas funções até a morte, aos 16/09/1498.

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NOTA:

[1] Companhia das Letras, São Paulo 2000, 160 x 235mm, 530 pp.