Inquisição: inquisição e cristãos – novos

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 300 /1987)

por Antonio José Saraiva

Em síntese: O livro de Antonio José Saraiva tenta interpretar a história dos Cristãos-Novos (judeus recém convertidos ao Cristianismo nos séculos XV/XVII) a partir de premissas sócio-econômicas; sob este aspecto, é discu­tível, como se depreende, aliás, do documentário publicado pelo próprio autor às pp. 213-291. – É valioso, porém, por apresentar aspectos menos conheci­dos da Inquisição portuguesa: esta foi, desde as suas origens, instrumento da política dos reis de Portugal, desejosos de eliminar o judaísmo e seus resquí­cios no reino. Já a origem da Inquisição em Portugal no século XVI deu oca­sião a sérias divergências entre a Santa Sé e o monarca por causa das exi­gências absolutistas deste. Urna vez estabelecido o Santo Ofício naquele país em 1536, foi-se tornando mais e mais independente não só de Roma, mas também da Coroa portuguesa; era uma super-potência dentro da nação, que suscitou conflitos com a autoridade pontifícia e granjeou para si a antipatia de membros do clero, de pensadores e letrados. O Marquês de Pombal em 1769 resolveu fazer simplesmente da Inquisição um órgão policial do Estado Portu­guês, destinado a combater “delitos de opinião”, ou seja, os elementos do Catolicismo que resistissem às idéias iluministas ou racionalistas do século XVIII.

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Antonio José Saraiva é historiador português que se tem dedicado ao tema “Inquisição em Portugal”. No livro “Inquisição e Cristãos-No­vos”,[1] muito divulgado, considera os procedimentos da Inquisição frente aos judeus recém-convertidos ao Cristianismo (= cristãos-novos). O au­tor parte do principio de que a história é movida pela luta de classes ins­pirada pela apropriação dos bens produtivos. Em conseqüência, identifica os cristãos-novos ou os judeus convertidos a Cristo nos séculos XV-XVIII com a classe mercantil, dada à indústria e ao comércio. Tal classe terá si­do sufocada pela nobreza tradicional ligada aos “mitos” religiosos; a In­quisição haverá servido aos interesses dessa sociedade tradicional, difi­cultando aos judeus a sua expansão comercial, base da prosperidade de Portugal. Somente o Marquês de Pombal, dando novo regimento à In­quisição na segunda metade do século XVIII, terá feito desta um órgão do Estado novo e liberal, que desprezou a distinção entre Cristãos-velhos e Cristãos-novos e propiciou a expansão comercial de Portugal.

A tese de A.J. Saraiva é provocadora, como ele mesmo reconhece às pp. 17s. – Na verdade, suscitou ardente polêmica com o Prof. I. S. Ré­vah, que argüiu Saraiva de haver escrito sobre a história sem consultar os respectivos arquivos; existe, sim, na Torre do Tombo em Lisboa um acervo de cerca de 30.000 processos da Inquisição Portuguesa arquiva­dos, que A.J. Saraiva conscientemente deixou de lado, alegando mesmo que não merecem a confiança do historiador ou que não são fidedignos: “O meu critério é outro. Não faço investigação arquivística porque não é esta a minha especialidade. Só conheço os processos publicados, mas nem por isto desisto de tentar compreender o que se passou. Relacio­nando os processos conhecidos … com outros documentos e com ele­mentos do conjunto cultural, político, social e econômico a que pertence a Inquisição, procuro uma hipótese em que eles caibam e se expliquem mutuamente” (p. 234). Ora esta metodologia de trabalho, vulnerável co­mo é, deu origem à disputa cujos debates (argumentos, contra-argu­mentos) se encontram às pp. 213-291 do livro em foco.

Embora a obra de A.J. Saraiva seja discutível, encerra páginas in­teressantes sobre a origem da Inquisição e as relações desta tanto com o poder régio quanto com a Santa Sé. É para estes trechos que voltaremos nossa atenção nas páginas subseqüentes.

1. Origem da Inquisição Medieval

A Inquisição não é uma instituição totalmente homogênea. Ela comporta três modalidades:

1) a Medieval (séculos XI-XV); 2) a Romana (século XVI); 3) a Ibérica (séculos XV-XIX).

Não poderíamos abordar a Inquisição Portuguesa, da qual trata A.J. Saraiva, sem antes nos referir à Inquisição Medieval.

Esta teve origem no século XII, quando a heresia dos cátaros (= puros) ou albigenses (da cidade de Albi, França) percorria as regiões do Sul da França e do Norte da Itália, saqueando lavouras e gado. Os cátaros eram dualistas, isto é, consideravam a matéria má como tal, de modo que repudiavam certas instituições básicas da vida civil, entre as quais o matrimônio, o juramento, o serviço militar… Assim constituíam uma ameaça não só para a reta fé, mas também para a sociedade civil; os próprios camponeses e os nobres os repeliam em seus incursos, ao passo que as autoridades eclesiásticas tentavam dissuadi-los mediante a prega­ção do Evangelho; a Igreja evitava combater a violência com a violência. A atitude pacífica dos Bispos irritou os nobres e os fiéis leigos, pois pare­cia ineficiente para combater a onda do catarismo. Em conseqüência, atendendo à pressão dos governantes civis, a Igreja houve por bem ins­tituir um tribunal misto, do qual participariam delegados do Bispo dioce­sano e representantes da autoridade civil, com a incumbência de inquirir (= procurar)[2] os hereges, julgá-los e, se conveniente, puni-los. Desta maneira teve origem no século XII a Inquisição Episcopal (já então órgão de ação não só da hierarquia eclesiástica, mas também do poder civil).

A Inquisição Episcopal revelou-se insuficiente para atingir os obje­tivos, pois os hereges, ao passar de uma diocese para outra, se viam isentos da perquisição da diocese de origem ou mesmo… de qualquer perquisição. Por isto no século XIII foi instituída a Inquisição papal: cada tribunal era confiado a um delegado do Papa, que tinha jurisdição sobre todo o território de uma nação; principalmente os dominicanos (frades de S. Domingos, +1221) e os premonstratenses (cônegos regulares funda­dos por S. Norberto, +1134) foram encarregados da função de Inquisidor (este, porém, sempre acompanhado por representantes do poder civil). A intenção dos Pontífices medievais que favoreceram a Inquisição, assim como a dos oficiais que a esta serviram, era, dentro dos parâmetros da época, a melhor possível; julgavam ser um dever de consciência dissipar os erros na fé e as práticas abusivas dos cristãos; não proceder assim tor­nar-se-ia problema de consciência para tais pessoas. A fim de entender o fato “Inquisição”, o historiador contemporâneo deve despojar-se das categorias de pensamento do século XX, e transferir-se para dentro dos quadros da cultura medieval, a fim de procurar entender a Inquisição como os medievais a entendiam. Ora o retrocesso aos parâmetros da Idade Média aponta três fatores que explicam a Inquisição como tal:

1) Para os medievais, os valores espirituais tinham primazia abso­luta sobre os materiais; por conseguinte, o patrimônio da fé era, de to­dos, o mais importante, e qualquer agressão a este não podia deixar de provocar a réplica correspondente. Os medievais justificavam até mesmo a pena de morte a ser infligida aos hereges mediante o seguinte raciocí­nio: se aqueles que falsificam a moeda, esteio da vida do corpo, são réus de morte, quanto mais não o devem ser aqueles que falsificam a fé, sus­tentáculo da vida da alma?! – Compartilhando esta mentalidade, os San­tos medievais (S. Tomás de Aquino, S. Francisco de Assis, S. Boaventura, S. Alberto Magno…) nunca lançaram um protesto contra a Inquisição; ao contrário, esta lhes parecia muito coerente e necessária. Em nossos dias, os fiéis católicos continuam a afirmar o primado absoluto dos valores es­pirituais sobre os materiais; sabem, porém, que não é oportuno (nem possível) defender aqueles mediante um aparato semelhante ao da Inqui­sição. Esta já não encontraria o ambiente de Cristandade de outrora. Conseqüentemente, os princípios da fé ficam sendo os mesmos, mas as expressões apologéticas hão de ser outras.

2) Os medievais eram mais dados à metafísica do que à psicologia, à diferença do homem moderno, muito mais interessado pela psicologia do que pela metafísica. Isto quer dizer que os medievais procuravam se­guir uma escala de valores objetiva e lógica, não se importando muito com as repercussões subjetivas e afetivas ou emocionais das suas posi­ções metafísicas; assim a salvação eterna era apregoada com os recursos da época, sem que alguém a ousasse sacrificar a normas dos sentimentos ou do coração (desde que estas conflituassem com as da razão). Ao con­trário, em nossos tempos os sentimentos pessoais levam não raro a pro­curar conciliar proposições contraditórias, induzindo os homens a com­portamentos incoerentes ou ilógicos, sem que isto cause espécie ou per­plexidade.

3) A Inquisição nunca foi uma instituição meramente eclesiástica, mas sempre foi orientada também pelo poder civil, com seus interesses políticos. A partir do século XIV ou de Filipe IV o Belo da França (1285-1314), a Inquisição foi sendo mais e mais pressionada pelos

Go­vernos civis, que cada vez menos toleravam uma instância jurídica da Igreja ao lado da instância jurídica régia; a tendência dos monarcas foi sendo, cada vez mais, a de servir-se da Inquisição e dos motivos religio­sos para atingir fins políticos; dois exemplos típicos desta tendência são o processo e a extinção da Ordem dos Templários em 1312 por pressão de Filipe IV o Belo e a condenação de Joana d’Arc, que incomodava os in­gleses invasores da França em 1431. A prepotência dos interesses régios foi mais forte ainda na Península Ibérica, onde os monarcas se valeram da Inquisição para eliminar as populações judias e árabes que lhes eram indesejáveis.

Tendo recordado estes elementos típicos, que ajudam a compre­ender a Inquisição e os seus procedimentos, não podemos deixar de re­conhecer a fraqueza humana de muitos agentes da mesma; extrapolaram das suas funções ou das ordens recebidas, cedendo a interesses pessoais ou a concepções menos cristãs. É de se notar, porém, que não raro os historiadores exageram ao descrever erros ou abusos dos Inquisidores ­o que contribui para denegrir indevidamente a instituição. A verdade há de ser dita como tal, sem tendências para desfigurá-la, seja mediante omissões seja mediante acréscimos.

Passemos agora a analisar trechos do livro de A.J. Saraiva.

2. O Papa e o Rei diante da Inquisição

2.1.Origens da Inquisição Portuguesa: percalços (pp. 39-55)

O rei D. João III de Portugal (1521-57) desejava que o Papa esta­belecesse a Inquisição em seu reino, tendo em vista especialmente a eli­minação dos judeus não plenamente convertidos ao Cristianismo. – Du­rante 27 anos, S. Majestade e a Santa Sé se defrontaram, visto que o rei pedia poderes, em matéria religiosa, que o Papa não lhe queria conceder: assim, conforme o monarca, o Inquisidor-mor seria escolhido pelo rei, assim como os outros inquisidores (subordinados), podendo estes últi­mos ser não apenas clérigos, mas também juristas leigos, que passariam a ter a mesma jurisdição que os eclesiásticos. Mais: conforme o desejo do rei, os inquisidores estariam acima dos Bispos e dos Superiores das Or­dens Religiosas, de modo que poderiam processar e condenar eclesiásti­cos sem consultar os respectivos prelados; os Bispos ficariam impedidos de intervir em qualquer causa que os inquisidores chamassem a si. Ain­da: os inquisidores poderiam impor excomunhões reservadas à Santa Sé e levantar as que eram impostas pelos Bispos. Como se vê, o rei queria desta maneira obter o controle total sobre os Bispos e a Igreja em Portu­gal.

Finalmente aos 17/12/1531 o Papa Clemente VII concedeu a Inquisi­ção em Portugal, mas em termos que contrariavam às solicitações de D. João III: em vez de outorgar ao rei poderes para nomear os inquisidores, o Papa nomeou diretamente um Comissário da Sé Apostólica e Inquisi­dor no reino de Portugal e nos seus domínios. Esse Comissário poderia nomear outros inquisidores, mas a sua autoridade não estava acima da dos Bispos, que poderiam também, por seu lado, investigar as heresias.

Os termos desta Bula ou concessão nunca foram aplicados em Portugal. O Inquisidor nomeado, Frei Diogo da Silva, era o confessor do rei; não aceitou o cargo, talvez por pressão do monarca. Apesar disto, em meio a grande agitação popular, começaram a funcionar tribunais inqui­sitoriais em algumas dioceses anarquicamente. Em conseqüência, o Papa suspendeu a Inquisição e, alegando que o rei o enganara (escondendo-lhe a conversão forçada de judeus no reinado de D. Manoel, 1495-1521), ordenou a anistia aos judeus e a restituição dos bens confiscados (Bula de 07/04/1535).

As razões sobre as quais se baseavam tais decisões de Clemente VII, são assaz significativas: a conversão dos judeus infiéis deve ser pro­piciada mediante a persuasão e a doçura, das quais Cristo deu o exemplo, respeitando sempre o livre arbítrio humano; a conversão violenta ou ex­torquida dos judeus sob o reinado de D. Manoel era tida como façanha que não se deveria reproduzir; os neo-convertidos deveriam ser ampara­dos e instruídos caridosamente. A Santa Sé assim procurava defender e proteger os cristãos-novos, vítimas do poder régio.

O Papa Clemente VII, que resistira a D. João III, morreu em 1534, tendo por sucessor Paulo III. O rei voltou a insistir junto ao Pontífice para conseguir o tipo de tribunal de Inquisição que atendia aos interesses da Coroa. Não o obteve propriamente, mas por Bula de 23/05/1536 Paulo III restabeleceu a Inquisição em Portugal, nomeando três inquisidores e autorizando o rei a nomear outro; além disto, o Pontífice mandava que, durante três anos, os nomes das testemunhas de acusação não fossem acobertados por segredo e durante dez anos os bens dos condenados não fossem confiscados; os Bispos teriam as mesmas faculdades que os Inquisidores na pesquisa das heresias. Por intermédio de seu Núncio em Lisboa, o Papa reservava a si o direito de fiscalizar o cumprimento da Bula, de examinar os processos quando bem o entendesse e de decidir em última instância.

É a partir desta Bula (23/05/1536) que se pode considerar estabele­cida a Inquisição em Portugal.

O rei, que não se dava por satisfeito com as disposições da Santa Sé, começou a burlá-las. Quis, antes do mais, subtrair a Inquisição à vi­gilância do Pontífice e, para tanto, suscitou incidentes numerosos a ponto de obrigar a partir o Núncio Capodiferro, que tinha poderes para suspen­der o tribunal, caso não fossem respeitadas as cláusulas de proteção aos cristãos-novos. Além disto, nomeou Inquisidor o Infante D. Henrique, seu irmão, então arcebispo de Braga, que, com seus 27 anos, não tinha a idade legal para exercer tais funções. Enfim aproveitava ou provocava ocasiões ou pretextos para fazer que o público cresse na má fé dos ju­deus convertidos (cristãos-novos): assim apareceu um cartaz nas portas da catedral e de outras igrejas de Lisboa, anunciando a chegada próxima do Messias…; um alfaiate de Setúbal apresentou-se ao público como Messias – o que não foi levado a sério pela população, mas bastou para que os agentes do rei fizessem grandes represálias e tentassem conven­cer Roma dos perigos do judaísmo em Portugal.

Apesar da má vontade do rei, o Papa fazia questão de manter sob seu controle o Santo Oficio em Portugal. Reforçando normas anteriores, o Pontífice emitiu nova Bula em 12/10/1539, que proibia aduzir testemu­nhas secretas e concedia outras garantias aos acusados, entre as quais o direito de apelação para o Papa; determinava outrossim que os emolu­mentos dos Inquisidores não fossem pagos mediante os bens dos prisio­neiros.

Também esta Bula não foi observada em Portugal. O Papa então resolveu suspender a Inquisição pelo Breve de 22/09/1544; tomou a pre­caução de fazer publicar de surpresa em Lisboa esse documento, levado secretamente para lá por um novo Núncio. O rei, profundamente golpea­do, jogou a sua última cartada: requereu ao Papa que revogasse a sus­pensão e restaurasse a Inquisição sem qualquer limitação, e acrescentava a ameaça:

“Se Vossa Santidade não prover nisso, como é obrigado e dele se es­pera, não poderei deixar de remediá-lo confiando em que não somente do que suceder Vossa Santidade me haverá por sem culpa, mas também os prínci­pes e os fiéis cristãos que o souberem, conhecerão que disso não sou causa nem ocasião”.

Tais palavras continham a ameaça de desobediência formal ao Pa­pa e de cisão na Igreja. D. João III seguia o conselho que lhe fora dado pelos seus dois enviados à Santa Sé em 1535: negasse obediência ao Pa­pa, imitando o exemplo do rei Henrique VIII da Inglaterra. Entre a obe­diência ao Papa, como fiel católico, e a rebeldia declarada que lhe permi­tisse instituir um tribunal, que era no fundo um instrumento da política régia, o rei de Portugal estava disposto a seguir a segunda via.

O Pontífice via-se naquele momento (1544/45) premido por outras graves preocupações, como a convocação e a preparação do Concílio de Trento, sobre o qual o Imperador Carlos V e outros monarcas tinham seus interesses. Em conseqüência, acabou por aceitar os pontos princi­pais da solicitação de D. João III: por Bula de 16/07/1547, nomeou Inqui­sidor-Geral o Cardeal Infante D. Henrique e retirou aos Núncios em Lis­boa a autoridade para intervirem nos assuntos de alçada da Inquisição; esta seguiria seus trâmites próprios, diversos dos habituais nos processos comuns. Ao mesmo tempo, porém, o Papa mitigava suas disposições: promulgou um Breve que suspendia o confisco de bens por dez anos; outro Breve suspendia por um ano a entrega de condenados ao braço se­cular (ou a aplicação da pena de morte). Em outro Breve ainda o Papa fa­zia recomendações tendentes a moderar os previsíveis excessos da Inqui­sição e a permitir a partida dos cristãos-novos para o estrangeiro. Pouco antes de morrer ou aos 08/01/1549, Paulo III editou novo Breve, que abo­lia o segredo das testemunhas – Breve este que provavelmente nunca foi aplicado em Portugal.

Vejamos agora um episódio significativo dos procedimentos da In­quisição Portuguesa.

2.2. Um grave incidente (pp. 77-84)

As notícias de abusos da Inquisição levadas a Roma induziram o Papa Clemente X a suspender tal instituição por Breve de 03/10/1674. O seu sucessor, Inocêncio XI, quis então averiguar exatamente os fatos e processos relacionados com a Inquisição Portuguesa. Em 1676 pediu, por intermédio do embaixador de Portugal, que lhe fossem enviados quatro ou cinco processos de “relaxados” (condenados à morte), a fim de ter uma amostragem das ocorrências. Os Inquisidores resistiram às solicita­ções papais, alegando todos os pretextos possíveis. Vista a insistência do Papa, propuseram enviar, em vez dos processos, “certidões”, ou seja, cópias “autênticas” dos mesmos. Todavia Inocêncio XI recusou a pro­posta, pois não lhe mereciam crédito tais “certidões”… Tinha suas razões para isso; com efeito, em 1549 os notários da Inquisição haviam sido ex­comungados pelo Núncio de Lisboa, por lhe terem apresentado proces­sos falsificados, provavelmente sob a forma de “certidões”. Em conse­qüência, Inocêncio XI intimou novamente os Inquisidores a lhe enviar os processos pedidos, sob pena de serem suspensos. Apoiando-se no rei, os oficiais recusaram-se a obedecer; pelo que o Papa os suspendeu aos 24/12/1678. As negociações prosseguiram ainda durante três anos até que houve acordo: os Inquisidores fizeram chegar ao Papa dois proces­sos já muito antigos, um com mais de cinqüenta anos, outro com cerca de setenta. A quanto parece, entre os milhares de processos existentes nos arquivos, os Inquisidores tinham dificuldade em encontrar dois que pudessem ser examinados por estranhos ou por autoridade superior; os demais podiam carecer da objetividade e da imparcialidade que seriam de esperar.

Acrescentemos aos anteriores ainda outro tópico muito expressivo.

2.3. A Inquisição e Pombal (pp. 197-210)

A Inquisição, poderosa como era e desviada das suas finalidades de servir à fé e ao Reino de Cristo, tornava-se cada vez mais antipatizada por quem sobre ela refletisse. A propósito da mesma dizia o Pe. Antonio Vieira S.J. que Portugal estava mais atrasado que os índios selvagens do Brasil. Aliás, na Biblioteca Real existiam cópias dos escritos anti-inqui­sitoriais do Pe. Antonio Vieira, que os bibliotecários reais guardavam cio­samente. Em torno do Pe. Vieira havia homens ilustres (diplomatas, cul­tores das letras e das artes, sacerdotes…) que compartilhavam as idéias do jesuíta. Na verdade, esta aversão à Inquisição se explica pelo fato de que se emancipara não só da vigilância das autoridades eclesiásticas, mas também do controle da parte do rei; vinha a ser uma espécie de super­potência dentro do país, que não obedecia nem à Igreja nem ao Estado.

Sobre este pano de fundo tornou-se Primeiro-ministro de Portugal o Marquês de Pombal, disposto a pôr termo à situação existente. Refor­mou a legislação do Santo Ofício, declarando que este Tribunal dependia do Rei, e não do Papa; tal princípio estava em consonância com a doutri­na do absolutismo régio de que Pombal foi um dos arautos. O Marquês nomeou Inquisidor-Geral seu próprio irmão, Paulo de Carvalho, e, por alvará de 30/05/1769, proclamou a Inquisição “Tribunal Régio”; pelo al­vará de 20/06/1769, transferiu esse Tribunal da proteção pontifícia para a proteção régia, atribuindo-lhe o título de “Majestade”, próprio dos Con­selhos do Rei. Assim Pombal queria fazer da Inquisição uma espécie de Polícia do Estado contra os chamados “delitos de opinião”, especial­mente contra os jesuítas; continuaria a “defender a religião católica”, concebida, porém, como um culto público expurgado de toda “inspiração mística” e compatível com o racionalismo do século XVIII; tal instituição seria útil para consolidar a unidade dos súditos portugueses sob o regime do poder régio absoluto. – No tocante aos cristãos-novos, Pombal man­dou cancelar tal designação, que dera tanta margem aos procedimentos da Inquisição de outrora. – É de notar ainda que essa “nova Inquisição”, transformada em Polícia do Estado, recebeu posteriormente denúncias contra o próprio Marquês de Pombal, apresentado aos juízes como fran­co-maçom!

3. Conclusão

Extraímos alguns traços do livro de Antonio José Saraiva que ex­primem aspectos da Inquisição, de importância capital, mas geralmente ignorados ou esquecidos: a Inquisição dos séculos XVI e seguintes em Portugal (como também na Espanha) foi suscitada pelos reis, que obti­veram concessões dos Papas dotadas de aparência apostólica e missio­nária, mas transformadas em instrumentos da política dos monarcas. Com o tempo, a Inquisição foi-se emancipando não só da Santa Sé, mas também do controle da realeza (que a princípio ainda a vigiava) para tor­nar-se um corpo plenipotenciário dentro do respectivo país, orientado por princípios aparentemente religiosos, mas destituídos do genuíno es­pírito cristão. Sabe-se que não raro a Santa Sé e os Inquisidores estive­ram em conflito, pois a autoridade da Igreja não podia tolerar os abusos cometidos pela Inquisição; estes, porém, eram tutelados, entre outros fatores, pela distância geográfica entre Portugal e Roma, distância que dificultava a obtenção pronta de notícias fidedignas e a intervenção do Papa nos momentos oportunos.

Vê-se, pois, que seria injusto atribuir à Igreja oficial os desmandos da Inquisição; os documentos eclesiásticos referentes a esta propugnam sempre a justiça e o amor ao próximo dentro das categorias de pensa­mento da respectiva época – época de Cristandade, na qual dificilmente se podia entender que algum cidadão ou camponês não fosse católico. Deve-se, por isto, lembrar que muitos dos atos que a um observador do século XX parecem despropositados, não eram tidos como tais na res­pectiva época; a população simples em geral, como também os Santos dos tempos passados, julgavam ser seu dever o combate às heresias e aos desvios da fé de maneira pública e espetacular.

Em relação aos judeus de modo particular, verifica-se que não rei­nou apenas o anti-semitismo, mas houve também, especialmente da parte dos Papas, atitudes de defesa dos israelitas. O livro de Antonio Jo­sé Saraiva, se não pode ser tido como fiel intérprete dos fatos históricos, fornece aos menos noticias e documentos importantes, que dão a ver como a Igreja oficial soube manter reservas diante das paixões da política dos reis e dos nobres da Península Ibérica. Na história da Inquisição, como em outras paralelas, a Igreja foi vítima da indevida ingerência do Es­tado.

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NOTAS:

[1] Antonio José Saraiva, Inquisição e Cristãos-novos. Imprensa Universitá­ria n° 42. Lisboa, Editorial Estampa 1985 (58 edição), 144 x 210 mm, 308 pp.

[2] Segundo o Direito Romano antigo, a Igreja não inquiria (não procurava) os hereges, mas esperava que fossem apresentados à autoridade eclesiástica.