Inquisição, Joana D’Arc: Santa Joana D`Arc. condenada e reabilitada

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 403/1995)

Em síntese: Santa Joana d’Arc, jovem francesa, sentiu-se chama­da pelo Céu para defender a França, que se achava em guerra contra a Inglaterra. Após brilhante vitória, que ela obteve chefiando um batalhão, foi presa pelos ingleses, que a levaram ao tribunal da Inquisição, acusan­do-a de bruxaria – o que naquela época (século XV) era muito grave.

Os ingleses obtiveram a condenação de Joana sob o pretexto de mau com­portamento da jovem. Faleceu em 1431. Todavia pouco após a sua morte começou a ser reabilitada mediante dois processos que investigaram os trâmites tendenciosos da condenação: em 1455 a autoridade do rei de França inocentou Joana, ocorrendo o mesmo no ano seguinte por parte da autoridade eclesiástica. A reabilitação se consumou com a canonização de Joana d’Arc em 1920. – Para entender devidamente o caso de Joana d’Arc, faz-se mister reconstituir a mentalidade de sua época, como se verá nas paginas deste artigo.

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A figura de Joana d’Arc tornou-se famosa tanto na história da Igreja como na história universal, por ter sido condenada à morte numa estraté­gia, só explicável pelas circunstâncias do século XV, e por ter sido pron­tamente reconhecida como inocente tanto pelo poder civil como pela au­toridade eclesiástica. A fé e a entrega a Deus consagraram a pessoa da heroína, que foi canonizada ou incluída no cânon (catálogo) dos Santos em 1920.

As páginas subseqüentes proporão o relato do caso.

1. OS PRECEDENTES

O cenário histórico em que aparece Joana d’Arc, é o da guerra dita “dos Cem Anos” (1337-1453) entre a França e a Inglaterra.

Em 1415 Henrique V da Inglaterra invadiu a França com o intuito de derrubar o rei Carlos VI. Os invasores encontraram apoio da parte da Borgonha, cujo duque Filipe o Bom reconheceu Henrique V da Inglaterra como legítimo soberano da França; ao mesmo tempo, Carlos VI, cuja saúde mental estava abalada, deserdou seu filho e nomeou o monarca inglês herdeiro e regente do país. Em 1422, morreram Henrique V e Carlos VI. O filho deste, Carlos VII, fez-se coroar em Poitiers, e estabeleceu sua corte em Bourges, enquanto os ingleses caminhavam em território fran­cês e assediavam a cidade de Orleães. Carlos VII era figura fraca, que nada fazia para deter os invasores, mas, ao contrário, permitia que ho­mens ineptos e gozadores dirigissem o seu povo.

Foi então que entrou em ação uma jovem de 17 anos, que prometia salvar a França.

2. INTERVENÇAO DE JOANA

Joana nasceu em Domrémy, de família camponesa, aos 6 de janeiro de 1412. Não aprendeu a ler e escrever, mas possuía profundo senso religioso. Aos 13 anos de idade, começou a ouvir certas vozes, que ela identificou com as de S. Miguel Arcanjo, S. Catarina de Alexandria e S. Margarida; exortavam-na a ir socorrer a França.

A este propósito já se põe uma questão debatida: as revelações que Joana anunciava e que se repetiram até a sua morte, não terão sido mero fenômeno de alucinação? – Note-se que a alucinação significa um estado patológico, fonte de falsos juízos e de comportamento moral des­controlado. Ora em toda a conduta de Joana d’Arc não há vestígios de prostração física nem de aberração intelectual ou de incoerência de di­zeres e atitudes; ao contrário, clarividência e firmeza notáveis se mani­festaram. Torna-se, por conseguinte, difícil, se não ilógico, sustentar a tese das “alucinações”.

Somente três anos mais tarde, em 1428, a jovem resolveu atender aos apelos celestes. Um tio levou-a então à presença do capitão Robert de Baudricourt, delegado do rei em Vancouleurs. Vendo-a, o oficial des­prezou-a, devolvendo-a a seu pai; este ameaçou afogá-la. Joana voltou a procurar o capitão, impressionando-o por sua energia. Robert man­dou-a ter com o rei Carlos VII, acompanhada por uma escolta de seis homens, que deviam defendê-la na caminhada por estradas perigosas. A donzela pediu e obteve também um cavalo e trajes masculinos (mais adaptados à missão militar que ela empreendia). Chegando em Chinon aos 6 de março de 1429, Joana identificou o rei dissimulado entre os seus cortesãos. Logo lhe pediu soldados para ir levantar o cerco de Orleães. Todavia aquela jovem de 17 anos, vestida de trajes masculinos, não inspirava confiança. Tendo insistido, Joana foi submetida a interro­gatórios e exames sobre a fé e a moral pelo espaço de três semanas; já que o laudo resultou favorável, Carlos VII reconheceu o possível valor do empreendimento de Joana.

A situação para a França era tão grave que somente uma interven­ção do Céu poderia salvar a nação. O rei concedeu-lhe então um peque­no batalhão destinado a ir socorrer a sitiada cidade de Orleães, que es­tava para cair. Joana não combateria, mas estimularia os guerreiros, empunhando um estandarte branco, sobre o qual estava a figura de Cristo entre dois anjos. Finalmente, aos 8 de maio de 1429 os ingleses muito imprevistamente levantaram o cerco de Orleães, dando entrada na cida­de a Joana d’Arc e sua tropa.

Assim vitoriosa, a jovem quis levar Carlos VII a Reims para que rece­besse a sagração régia – o que se deu a 17 de julho de 1429. Ao lado do monarca, a benemérita heroína lhe disse então: “Gentil roi, maintenant est faict le plaisir de Dieu… Gentil rei, agora está feito o prazer de Deus”.

Joana dava por finda a sua missão, quando o rei lhe pediu continu­asse a guerra. A donzela, dócil, muito se empenhou pela reconquista de Paris, mas aos 23 de maio de 1430, perto de Compiègne, foi presa pelos burgúndios, aliados dos ingleses. Estes a compraram pelo preço de 10.000 francos-ouro, e a levaram para Ruão, onde Joana deveria ser julgada. Aos ingleses interessava não apenas manter a donzela encarcerada, mas também destruir o seu prestígio aos olhos do público. – Este plano have­ria de ser executado mediante pretextos religiosos que, para os homens da época, eram os mais persuasivos.

3. A MENTALIDADE DO SÉCULO XV

Não se poderiam entender adequadamente o processo e as maqui­nações empreendidos contra Joana d’Arc se não se levasse em conta a mentalidade de ingleses e franceses da época:

a) Joana dera à sua missão militar um caráter religioso, dizendo que Deus queria por seu intermédio libertar a França. – Por conseguinte, os inimigos, para desprestigiá-la, tentariam demonstrar que Joana de modo nenhum podia ser enviada de Deus, por estar sob a influência do de­mônio, como herege, bruxa, impostora, etc. – Caso isto ficasse com­provado, também o rei Carlos VII perderia a sua autoridade; seria eviden­te que se aliara a uma filha de Satanás, por obra da qual havia sido sagrado. Os franceses poderiam então perder a esperança de obter a vitória final.

b) A mentalidade popular da época era levada a crer que vitória obtida em guerra era sinal de que Deus apoiava o vencedor. Ora os ingleses haviam conseguido um triunfo retumbante em Azincourt (1415), onde cinco mil guerreiros tinham prostrado toda a cavalaria francesa, lutando um soldado contra seis cavaleiros. Tão fulgurante vitória, pensa­va-se, só teria sido alcançada com a colaboração do Céu; donde podiam muitos concluir que Joana contradizia ao curso dos acontecimentos so­bre o qual Deus já proferira o seu juízo.

c) A própria conduta de Joana se prestava a deturpações… As cala­midades que assolavam a França havia cerca de 75 anos, excitavam a imaginação popular, provocando o surto sucessivo de falsos taumaturgos e visionários. Como naquela hora se distinguiria Joana de uma Catarina de Ia Rochelle ou do pastor Guilherme de Gévaudan, comprovadas víti­mas da ilusão? – Além disto, o espírito medieval podia facilmente escan­dalizar-se com a figura de uma jovem vestida de cavaleiro a cavalgar junto com uma tropa de soldados; ora tal era o caso de Joana. Ninguém concebia que uma virgem cristã se pudesse apresentar nesses termos. Compreende-se então que muitos dos contemporâneos da heroína se tenham podido iludir a seu respeito.

d) Será preciso levar em conta também a colaboração da Universi­dade de Paris, setor de grande autoridade, que os ingleses ganharam para a sua causa. O espírito que então animava os professores dessa instituição, não era muito sadio. Tendiam a considerar-se os luzeiros da S. Igreja; os mais moderados entre eles ficavam céticos ao ouvir falar de Joana; muitos, porém, lhe eram energicamente contrários. A pobre cam­ponesa, com seus poucos anos de idade, deixava-se guiar por pretensas visões mais do que pelas idéias dos professores; queria passar por mais perita do que os capitães do exército, sem pedir vênia nem autorização aos doutos lentes!

À luz destas características da mentalidade da época, analisemos agora

4.0 DESFECHO DA HISTÓRIA DE JOANA

Os ingleses, tendo que apelar para motivos religiosos na sua ação contra a jovem guerreira, encontraram apoio valioso na pessoa do bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, todo devotado à causa dos invasores e, por isto, refugiado em Ruão, território possuído pelos ingleses.

Não foi difícil encontrar pretexto para se iniciar um processo contra Joana: as suas apregoadas mensagens celestiais forneciam fundamento a acusações de bruxaria e heresia! Cauchon foi constituído presidente do respectivo tribunal. Para dar ao júri o aspecto e a autoridade de tribu­nal da Inquisição (tribunal oficial da S. Igreja!), chamaram a participar da mesa o Vice-Inquisidor de Ruão, Jean Lemaitre. Cauchon convidou ain­da grande número de assessores e jurados, aos quais o governo inglês fez saber que tinha meios para os coagir, caso rejeitassem participar do processo; 113 juristas aceitaram a intimação, dos quais 80 pertenciam à Universidade de Paris.

O júri era de todo ilegítimo, pois Cauchon não tinha sobre Joana nem a autoridade de bispo diocesano nem a de legado pontifício. A San­ta Sé não fora em absoluto informada da constituição de tal tribunal.

Contudo o processo foi encaminhado. A jovem sofreu maus tratos físicos e morais; submetida a interrogatórios capciosos, que visavam a arrancar-lhe a confissão de heresia e superstição, respondeu sempre com simplicidade e nobreza; chegou a apelar para o Santo Padre: “Peço que me leveis à presença do Senhor nosso, o Papa: diante dele respon­derei tudo o que tiver que responder”. “Tudo que eu disse, seja levado a Roma e entregue ao Sumo Pontífice, para o qual dirijo o meu apelo!”. Em vão, porém, apelou.

Finalmente, após peripécias diversas, Joana foi fraudulentamente condenada qual herege, relapsa, apóstata, idólatra. Entregue ao braço secular, sofreu a morte pelas chamas aos 30 de maio de 1431, enquanto olhava para o Crucifixo e orava. Na última manhã de sua vida, ainda dizia Joana a Cauchon: “Eu morro por causa de V.S.; se me tivésseis colocado nos cárceres da Igreja, … isto não teria acontecido.”

A opinião pública viu-se profundamente abalada pelo ocorrido. Ape­sar de todas as acusações, a massa do povo ainda tinha Joana na conta de vítima da injustiça de seus inimigos. Conseqüentemente, pouco de­pois de entrar solenemente em Ruão (dezembro de 1449), o rei Carlos VII deu início a uma revisão do processo condenatório, revisão que termi­nou favorável à jovem. Seguiu-se em 1455 o inquérito pontifício, já que Joana fora abusivamente sentenciada em nome da Inquisição: após nu­merosos interrogatórios, o arcebispo de Reims, aos 7 de julho de 1456, perante numerosa assembléia de clérigos e leigos em Ruão, publicou a conclusão do “processo do processo”, reabilitando a memória da donzela.

De modo oficial e solene, a Igreja restaurou a memória de Joana d’Arc, reconhecendo-lhe os méritos e a santidade em 1920.

Por que tanto se fez esperar essa completa reabilitação?

Os tempos que se seguiram ao ano de 1456, foram de reação con­tra o espírito e a vida da Idade Média: na época da Renascença o adjeti­vo “gótico” vinha a ser sinônimo de “bárbaro”; quebravam-se os vitrais das catedrais para substituí-los por vidraças brancas; o famoso poeta Pierre de Ronsard (+ 1585), imitador dos clássicos gregos e latinos,

qua­lificava o período medieval de “séculos grosseiros”; mais tarde, Voltaire (+ 1778) e ainda Anatole France (+ 1924) mostravam-se diretamente infensos à jovem guerreira de Domrémy. Foi preciso que a opinião públi­ca em geral proferisse um juízo mais objetivo sobre a Idade Média para se pensar em exaltar a figura tão caracteristicamente medieval de Joana d’Arc.

Em conclusão: a condenação de Joana d’Arc é fato histórico profun­damente doloroso. Jamais, porém, poderá ser considerado fora do con­texto do séc. XV, que bem o marca e ilumina.

Trata-se de um processo inspirado por interesses políticos e nacio­nais e justificado perante a opinião pública do séc. XV mediante pretextos religiosos (pretextos que podiam impressionar naquela época). Lamen­tavelmente houve prelados e clérigos que se prestaram ao papel de juízes de Joana d’Arc. Não procederam, porém, em nome da autoridade supre­ma da Igreja, mas, sim, por autoridade a eles conferida pelo rei da Ingla­terra.

Entende-se, pois, que a S. Igreja, de maneira oficial e solene, tenha procedido à reabilitação e canonização de Joana d’Arc.