Islamismo: fundamentalismo islâmico

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 441/1999)

Em síntese: Mons. John Joseph, Bispo de Faisalabad e Presidente da Comissão Episcopal dos Direitos Humanos do Paquistão, devia proferir em Roma uma conferência sobre este tema. Todavia, em vista dos acontecimentos ocorridos em abril de 1998 no seu país (um jovem católico foi condenado à morte sob a acusação de ter blasfemado contra o Corão), resolveu não viajar, e enviou o texto da conferência que devia pronunciar, à instância devida. O texto é significativo, pois revela pormenores muitas vezes ignorados no mundo ocidental: o radicalismo islâmico não hesita em condenar à morte os que não compartilhem as concepções religiosas e civis do Islã – o que se verifica não somente no Paquistão, mas também na Algéria, no Sudão e em outras regiões do mundo atual.

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Fundamentalismo é o radicalismo fanático que um grupo religioso pode assumir, chegando a matar quem não compartilhe suas concepções. Tal atitude está assaz difundida em nossos dias entre muçulmanos, judeus e outros religiosos.Por causa do Fundamentalismo islâmico, o Paquistão tem vivido uma fase de terror e violência, que se tornou patente de modo especial quando o Bispo Mons. John Joseph, de Faisalabad, pôs termo à sua vida em 6/5/1998 como sinal de protesto contra as injustiças cometidas pelos governantes do país. O caso já foi relatado em PR 437/1998, pp 465-469. Completando quanto aí foi dito, segue-se em tradução portuguesa o texto da última conferência que Mons. John Joseph devia proferir em Roma, referindo a situação do seu país no tocante aos direitos humanos.

O Discurso de Mons. John Joseph

Mons. John Joseph, Bispo de Faisalabad e Presidente da Comissão Episcopal para os Direitos Humanos, no Paquistão, devia proferir em Roma uma conferência sobre este tema, todavia em vista dos trágicos acontecimentos ocorridos em abril de 1998 (um jovem católico foi condenado à morte sob a acusação de haver blasfemado contra o Corão), resolveu não deixar o país, mas enviou à instância competente o texto da conferência que devia pronunciar. Tal texto é muito significativo, pois revela pormenores, muitas vezes, ignorados no mundo ocidental. Ei-lo:

Introdução

«As circunstâncias impedem-me de participar do Seminário organizado pelo SEDOS. Um cristão, Anwar Masih, acusado de blasfêmia, foi absolvido por um tribunal, mas um grupo terrorista muçulmano Sipah-e-Sahaba anunciou que havia de assassiná-lo. É este grupo que move o processo judiciário contra ele. Por conseguinte, eu tenho que o esconder até encontrarmos um lugar seguro para ele, sua esposa e seus filhos. Tem aproximadamente 35 anos.

Ontem, 27 de abril de 1998, Ayub Masih (o nome Masih significa que a pessoa é cristã, não é um nome de família) foi condenado a uma multa de 100.000 rúpias, porque, numa discussão com um ‘amigo’ muçulmano, o acusaram de ter dito: ‘Se leres o livro de Salman Rushdie (Os Versos Satânicos), encontrarás a figura real do Islã e do seu profeta’. Eis aí o fundamentalismo religioso extremado. Onde quer que vivamos hoje, somos afetados pelas atividades dos fundamentalistas. As pessoas ficam perplexas em vista dos crimes desses indivíduos formados e manipulados para matar. Tais agentes não têm medo da morte.
Assim se dissemina o terror na população. Utilizam livremente a violência. Não têm medo de atitudes extremadas.

Principais Traços do Fundamentalismo Religioso

1. Rejeição absoluta da racionalidade: os fundamentalistas tentam popularizar as suas crenças, apelando para as emoções da população.

2. Já que não confiam na razão humana, acreditam no poder de Deus para levar a humanidade a seguir o caminho reto.

3. Não estão dispostos a assumir algum compromisso que afete as suas crenças.

4. Julgam estar na verdade e consideram-se autênticos discípulos religiosos. Em conseqüência, tratam todos os outros homens como inimigos.

5. Estão dispostos a sacrificar a própria vida em prol das suas crenças. Também estão prontos para matar seus opositores religiosos, que não estão no caminho certo.

6. Visto que monopolizam a verdade e declaram pecadores todos os outros homens, perderam todo o respeito pelas instituições democráticas, os direitos do homem, os valores humanos e tentam, de modo fanático, impor aos outros as suas idéias religiosas, mesmo pelo recurso a métodos violentos.

Segundo a Sra. Asma Jahangir, célebre advogada dos direitos do homem e Presidente da Comissão Paquistanense dos Direitos Humanos, “Os fundamentalistas islâmicos não são outra coisa senão pessoas ávidas de poder, inclementes e violentas.

Sabem que existe aqui, em muitos fiéis, certo medo da modernização, medo do secularismo… exploram este sentimento para engrossar as suas fileiras” (Charles M. Sennott, in: Pakistanis Underclass Targets).

Como em muitos outros países muçulmanos, também no Paquistão é o terrorismo que mais medo incute. Em janeiro deste ano, um relatório preparado por um Departamento da Polícia secreta enviou uma preocupante advertência ao governo. O relatório chamava a atenção para a atividade de alguns grupos religiosos extremados, que defendem idéias sectárias virulentas. Essas organizações têm a possibilidade de se tornar a mais importante máfia do crime que o Paquistão jamais tenha conhecido. Constituída por elementos criminosos e mandatários dissimulados, essa máfia desperta o medo de que o seu crescimento incontrolado mergulhe o Paquistão em situação de violência nunca atingida até agora.

A esse relatório da Polícia eu acrescentaria a notícia de que o crescimento descontrolado do terrorismo religioso já está acontecendo no Paquistão. O Governo tem medo dele ou, ao menos, por outros motivos deixa-o livre. Por exemplo, uma das razões que levam o Governo a ter medo de intervir, é a ambição cega e inveterada dos governantes de ficar no poder. Por conseguinte, o Governo é vulnerável à chantagem exercida por esses grupos. O Governo recusa tomar conhecimento das escolas em que os meninos, desde os cinco anos de idade, são iniciados ao ódio religioso e ao manejo de armas. Esses meninos andam com turbantes amarrados em torno da cabeça; são sinal de que jamais progredirão intelectualmente. Em algumas dessas escolas, as crianças são presas com correntes de ferro. Os primeiros frutos desses centros de formação terrorista são visíveis e evidentes em nossos dias. Um ensinante cristão, Nemat Ahmar, foi assassinado brutalmente a facadas, após ter sido acusado de blasfêmia por um estudante de 24 anos. Outro estudante, Gul Mash, condenado à morte por blasfêmia, era acusado por um estudante de 25 anos. Outro estudante ainda, de 23 anos, com turbante na cabeça e barbudo, entrou numa de nossas igrejas aos 03 de abril de 1996, durante as cerimônias da sexta-feira santa, para gritar: “A Bíblia não é um livro santo! O Cristo não é um profeta!”.

Em geral, a população tem medo de reagir, porque, se alguém fala ou age contra os fundamentalistas, o castigo infligido pelos terroristas religiosos é imediato e terrível. Algumas vezes a família toda é brutalmente massacrada. Cria-se o terror. Mesmo nós, sacerdotes e Religiosos, permanecemos em silêncio e preferimos fechar os olhos, na esperança de que o horror passará.

Os fundamentalistas querem ressuscitar um passado glorioso e voltar ao ensinamento do Islã. Chamam os outros muçulmanos para se reunirem à sua causa. Muitas vezes esse apelo encontra atendimento. Isto provoca um militarismo religioso significativo. Todavia também é verdade que, por causa de seus apelos e reivindicações em prol do ensino do verdadeiro lslã, há divisões entre eles. Diferentes grupos reivindicam toda a verdade: donde resultam batalhas no bojo da casa do Islã. Gasta-se muita energia nesses duelos domésticos. Isto afeta também o setor político.

O Islã reconhece o setor político como área legítima de empreendimentos humanos. Para o muçulmano, o Estado e a religião vão de mãos dadas e não podem ser separados um do outro. O Islã impõe suas regras ao jogo político.

Para o Islã, o século XX começou com a esperança do secularismo. Termina com o medo do fundamentalismo. Em 1924 Kamal Ataturk aboliu a lei islâmica nos tribunais e secularizou o maior império muçulmano da época, a Turquis otomana. Em 1979 o Ayatollah Komeiny levou a revolução iraniana a triunfo, inspirando diversas correntes fundamentalistas no mundo muçulmano. O mundo islâmico olha com nostalgia para a Idade Média, época em que sua religião e sua cultura eram irmãs gêmeas, aos pés das quais o Ocidente cristão estudava. O mundo islâmico percebeu frustrado que os ideais ocidentais do nacionalismo, do socialismo e capitalismo introduzidos na sociedade muçulmana não oferecem solução aos numerosos e diversos problemas que o Islã enfrenta num mundo tecnológico. Com chavões como ‘O Islã é a solução’, ‘Alá é a resposta’, os fundamentalistas colocam a esperança na utopia de restauração de uma comunidade muçulmana antiga e idealizada.

Outro elemento que ajudou os partidos fundamentalistas a aumentar a sua influência, é o número de derrotas sofridas pelos muçulmanos no Egito, na Jordânia, no Líbano, na Síria por efeito das invectivas de Israel; também pesam a vitória da Índia sobre o Paquistão, a independência do Bangladesh e a recente derrota do Iraque na guerra do Golfo.

Essas derrotas e humilhações provocaram um profundo sentimento de desespero passivo entre os muçulmanos. O Ocidente aparece como inimigo do mundo muçulmano – o que estimula os partidos fundamentalistas a rejeitar tudo o que venha do Ocidente e a apresentar o Islã como a única alternativa para salvaguardar do desastre os muçulmanos.

Os partidos fundamentalistas muçulmanos estimam que somente seguindo os ensinamentos islâmicos os muçulmanos do mundo inteiro poderão unir-se para uma revanche contra o Ocidente e os outros inimigos.

A massa ignorante da gente pobre simpatiza com esses partidos religiosos, que despertam seus sentimentos sobre as questões religiosas. No Paquistão o Anjuman-Siap-e-Sahaba e o Majlis-i-Khatm-i-Nabuwal são partidos desse tipo. De vez em quando levantam questões religiosas como sendo questões de vida e morte. Nos conflitos sectários em particular encontram um terreno suficientemente rico para criar perturbações religiosas. Já provocaram vários conflitos e tensões no Paquistão. Muitos litígios armados ocorreram e centenas de pessoas morreram.

Há grupos militantes no Paquistão que lançam bombas dentro das mesquitas, das escolas, das estações ferroviárias, nas paradas de ônibus, nos centros comerciais e em outros lugares públicos. Isto gera um sentimento de terror na população. Acontece também algumas vezes que uma seita muçulmana acuse outra, como se dá, por exemplo, entre chutas e sunitas. Por vezes, quando um incidente ocorre numa cidade grande, a tensão aumenta em outra cidade e um contra-ataque é organizado numa terceira cidade. O Irã desempenha um papel importante no desenvolvimento do Islã fundamentalista. Muitos governos africanos, por exemplo, têm medo do Irã e sabem que o Irã ajuda os fundamentalistas dos seus respectivos países. Por ocasião da inauguração de um Seminário em Teerã sobre o desenvolvimento e a cooperação na África, o Presidente da Câmara dos Deputados Ali Akbar Netegh Nouri discursou, dizendo abertamente que seu país daria ênfase à renovação do Islã: “A renovação do Islã é um dos objetivos mais importantes da política internacional iraniana. Devemos ajudar a África a recuperar a sua identidade”. Nouri foi citado pelo jornal iraniano Keyhan.

Aos 27 de março de 1993 a Algéria rompeu as relações diplomáticas com o Irã, acusando-o de interferência e de apoio aos terroristas. Ao mesmo tempo a Algéria chamou de volta seu embaixador no Sudão, acusando os dois países de “interferência nos assuntos internos da Algéria” e dizendo que os dois países tinham declarado seu apoio ao terrorismo.

As Vítimas do Fundamentalismo

As primeiras vítimas dos partidos fundamentalistas são as minorias religiosas. Voltam sua cólera contra essas minorias e as acusam de ser perigosas para a sociedade e o país. Por exemplo, no Paquistão os cristãos e os Ahmadis (seita muçulmana que não aceita Maomé como último profeta). No Irã, após a revolução islâmica de 1979 os bahais foram brutalmente perseguidos e excluídos de todo emprego administrativo. No Egito as vítimas são os coptas.

Em segundo lugar, entre as vitimas estão as mulheres. Os grupos fundamentalistas acreditam que as mulheres são inferiores aos homens e que são as causas do mal, fracas e estúpidas e que nada entendem dos assuntos do mundo.

Em terceiro lugar, vêm as pessoas que professam idéias seculares, liberais e esclarecidas, especialmente os intelectuais e os militantes dos direitos do homem.

Os grupos fundamentalistas se opõem ao Ocidente e observam cuidadosamente o seu progresso e as suas atividades. Cada vez que é possível, cometem ato de terrorismo para chamar a atenção dos meios de comunicação internacionais. Para eles, todo cidadão de um país ocidental é inimigo do Islã; por conseguinte sustentam todo tipo de atividade violenta ou não violenta para lutar contra seus inimigos não muçulmanos ou muçulmanos ocidentalizados.

Para popularizar sua política, eles utilizam o método do tabligh ou da pregação. O seu segundo método é a violência. Acreditam que aqueles que se opõem a eles são os inimigos de Deus. Eles os aterrorizam para impor-lhes silêncio, e depois eles os eliminam – o que serve de advertência para os outros.

Os que adotam idéias seculares,são considerados apóstatas murtad e, consequentemente, punidos com a morte. Para legitimar esta pena, uma fatwa, julgamento religioso, é tornada pública – o que obriga todo muçulmano a matar a pessoa em foco. No Irã, ao tempo do regime do xá, um advogado liberal, Khusrau, foi assassinado quando os chefes religiosos decretaram sua morte. De modo semelhante, o ímã Komeiny publicou uma fatwa para mandar matar Salman Rushdie.

No Paquistão as fatwa são freqüentemente lançadas contra os cristãos. Isto aconteceu no caso de Salamat Masih, um adolescente, de Manzoor Masih, e Rehmat Masih, dos camponeses de Gujwanrala; Gul Masih, um pequeno comerciante de Sargodha, Nemat Ahmer, um ensinante de Faisalabad. Nehmat Ahmer foi assassinado, assim como Manzoor Masih, Slamat Masih e Rehmat Masih foram condenados à morte por tribunais, depois libertados pelas Cortes de Apelação de Lahore. Muitas vezes as leis islâmicas, particularmente as leis contra a blasfêmia, são utilizadas contra os cristãos por razões de vingança pessoal. Isto cria um sentimento de medo entre os cristãos.

Com a influência fundamentalista, a publicação de livros religiosos aumenta e a literatura profana cai em baixa. O fundamentalismo também afeta grandemente a música, a pintura, a escultura, a dança. De modo geral, a sociedade perde o seu brilho; a violência e o terror reinam com supremacia. É o que acontece atualmente no Paquistão.

Para o Arcebispo sul-africano Desmond Tutu, “a verdadeira questão é tomar o fundamentalismo islâmico como um desafio; a maneira mais eficaz de responder-lhe é aprofundar a fé do povo” (L’Islam en Afrique, World Mission, janeiro 1993).

Nossa Resposta a esse Desafio

Em nosso mundo de hoje a Igreja será tão pertinente e vibrante quanto à resposta que ela dará a essa questão essencial do fundamentalismo religioso e da violência. Estou desolado por ter que dizer que nós, Bispos e outros dirigentes eclesiásticos, esquecemos às vezes os feridos e os moribundos para realizar nosso dever ‘religioso’, como o levita e o sacerdote no episódio do bom Samaritano. Fechamos os olhos e julgamos que o tigre sedento do sangue da violência religiosa se afastará por si mesmo. Não, cada um de nós tem que se comprometer e desempenhar o seu papel.

Comprometer-se

Cada um de nós tem essa obrigação. Cada cristão seja um simples leigo, seja um Cardeal, ouve o Senhor Jesus dizer-lhe que não passe ao largo da pessoa ferida (física, moral, psicologicamente, social ou financeiramente). Comprometer-se, mesmo quando isto seja perigoso. Quantas vezes o Senhor Jesus não nos disse que não tenhamos medo? Os covardes, segundo as Escrituras Sagradas, não entrarão no Reino de Deus (Ap 21,8).
Depois que tantas ordens de prisão foram emitidas contra mim pela Polícia de Islamabad, por ter dirigido uma manifestação há três anos, um dos meus irmãos eclesiásticos me disse que tudo isso acontecia por culpa minha. Dizia que devemos estar satisfeitos pela liberdade de que gozamos no Paquistão… ‘Considera alguns dos países muçulmanos como a Algéria, o Sudão, o Egito… Os fundamentalistas extremados são muito poderosos e organizados no plano internacional… Não os podemos desafiar. É perigoso demais… A minoria cristã no Paquistão é pequena e fraca demais’. Respondi-lhe: ‘Talvez eu seja muito fraco, mas, se nós nos unirmos em nome de Nosso Senhor Jesus, seremos muito fortes’. Eu lhe disse também: ‘Somos de carne e osso, é certo, mas os músculos com os quais combatemos não são de carne. Nossa guerra não se combate com as armas da carne, mas nossas armas são suficientemente poderosas, pela causa de Deus, para demolir fortalezas’ (2 Cr 10, 3s). A resposta do amigo, na presença de cinco pessoas, foi: ‘Ó, isso é apenas teoria’.

Organizar-se

Nossa resposta à violência há de ser ecumênica e inter-religiosa. Embora nós, católicos, sejamos a maioria entre os cristãos do Paquistão, não pensaríamos em organizar uma manifestação ou um protesto sem a presença oficial e plena das outras confissões cristãs do Paquistão. Os representantes de todas as confissões preparam, decidem e agem conjuntamente. É belo ver os majores e brigadeiros do Exército da Salvação caminhar em uniforme e montar a guarda, quando nos deitamos por terra para uma greve de fome. É maravilhoso ouvir um pastor protestante dizer após as ordens de prisão contra mim: ‘Monsenhor, se o Sr. for preso, uma parte de nós também será presa, porque todos juntos formamos o Corpo de Cristo’.

Há muitos muçulmanos convencidos de que cada ser humano deve contribuir pessoalmente para a luta contra a violência e o terrorismo, a fim de os erradicar. Há também grupos muçulmanos de defesa dos direitos do homem. Devemos contactá-los e trabalhar em plena colaboração com eles. É este um dos segredos do sucesso que conseguimos até o presente.

Não podemos esquecer nenhum setor da sociedade. Os dirigentes locais chamam os chefes de seção, as mulheres e a juventude. Antes de começar uma ação mais ampla contra a injustiça, consultamos seriamente não somente os chefes religiosos, mas também os leigos.
A organização não deve ser apenas local, regional ou nacional, mas deve ter liames fortes com agências internacionais comprometidas na luta contra todas as formas de violência. Nós, cristãos do Paquistão, temos ligação estreita com a Amnesty International, a British Broadcasting Corporation (BBC) de Londres, a Media Watch de Nova Iorque, as Comissões dos Direitos Humanos do Canadá, da Austrália, da Suíça, da Holanda, da Alemanha, com Missio e Misereor, com a Solidariedade Cristã da Áustria e agora com o SEDOS de Roma. Os Governos do Terceiro Mundo podem não escutar os clamores dos seus povos, mas são extremamente atentos à opinião pública dos países do Primeiro Mundo.

Aos 5 de abril de 1998, quatro cristãos acusados de blasfêmia foram alvo de atentados. Um deles foi assassinado de imediato: os outros foram gravemente feridos, entre os quais um menino de doze anos. Os Bispos protestantes e católicos queriam ser recebidos pelo Presidente ou o Primeiro-Ministro do Paquistão, mas estes não tinham tempo para nós. Então organizamos uma manifestação maciça do clero, dos leigos, das mulheres e da juventude. Atiraram contra nós repetidamente, mas continuamos a percorrer as ruas de Faisalabad. A BBC de Londres falou disso; foi somente nesse momento que o Presidente do Paquistão encontrou tempo para nós. As Embaixadas estrangeiras são de grande ajuda, algumas vezes abertamente, mas em geral discretamente.

Nossa Resposta há de ser absolutamente não violenta

Se, a partir das nossas manifestações, uma só pedra é lançada contra uma janela, nós não somos cristãos e perdemos todo direito de manifestar-nos contra a violência. Pública e abertamente são proferidas injúrias contra nós no decorrer das manifestações fundamentalistas. Nossa gente vem no-lo contar. Nós os acalmamos, dizendo-lhes que essas injúrias que sofremos por trabalhar pelos direitos do homem e a paz, são como medalhas de ouro para nós. Jesus dizia: ‘Bem-aventurados sois vós, quando vos insultam em meu nome’. Em caso algum, nós nos permitimos recorrer à vingança.


Na véspera de uma manifestação reunimos todos os organizadores e, no decorrer de uma assembléia de oração, prometemos ao Senhor Jesus que permaneceremos tranqüilos, e manteremos os manifestantes em paz. Esta promessa feita na igreja é importante para a juventude, que tende a procurar represálias. Essa tendência deve ser controlada pela motivação, por uma longa formação e um compromisso cristão. Fotografamos a cerimônia no decorrer da qual, com as mãos erguidas, os organizadores prometem ficar tranqüilos e controlar disciplinadamente a manifestação, a fim de nos lembrarmos constantemente dessa promessa tão importante.
Coordenação e Cooperação com as diferentes ONGAs Organizações não Governamentais podem desempenhar papel muito positivo em nosso apostolado pela paz; de modo especial, aquelas que trabalham pelos direitos das crianças, das mulheres, dos operários… Também os grupos que trabalham contra a tortura, os morticínios brutais e o encarceramento sem julgamento.

Conclusão

Para concluir, cito as palavras fortes e estimulantes do Santo Padre o Papa João Paulo II. Sou um grande admirador da coragem com a qual ele proclama a verdadeira doutrina da Igreja e a autêntica mensagem de Jesus Cristo nosso Salvador. Ele não tem medo do que as nações do Terceiro Mundo pensarão a respeito da Doutrina Social da Igreja Católica. Nenhum Presidente deste mundo tem a coragem de prestar visita ao Papa em uniforme. Os ditadores deste mundo têm medo desse homem de paz e igualdade.

Se nós, pastores da Igreja e dirigentes leigos, tivéssemos a metade da coragem do Santo Padre, a graça do Salvador atingiria hoje muito mais gente no mundo. Em sua mensagem pela paz de 1985 dirigida à juventude, mas válida para cada um de nós, o Santo Padre escreve: ‘O apelo que dirijo a vós, jovens homens e mulheres de hoje, é o seguinte: Não tenhais medo! Quando olho para vós, sinto gratidão e esperança… Nesta situação, alguns dentre vós poderiam ser tentados a fugir das suas responsabilidades’ (Mensagem para a Jornada Mundial da Paz, 12 de janeiro 1985).

Enfim apelo para todos os meus irmãos e irmãs em Cristo: deixemos nossos recantos de segurança e conforto e vamos ao povo. Recentemente nós, comunidade cristã do Paquistão, tivemos que impugnar uma lei injusta contrária às minorias. Eu mesmo, Bispo católico, em companhia de numerosos cristãos de muitas cidades do Paquistão, deitei-me numa alameda para fazer greve de fome frente aos carrascos do Governo de Faisalabad. Ocorreu então um dos mais estupendos acontecimentos da nossa história nacional: quase todos os Bispos do Paquistão vieram e sentaram-se conosco durante algumas horas, os Bispos católicos de túnica branca, os Bispos protestantes de túnica roxa. A imprensa ficou muito impressionada, o Governo também e, naturalmente, essa solidariedade venceu. O Governo declarou que ele não introduziria mais o projeto de lei que consistia em acrescentar a referência à religião na carteira de identidade: isto teria tornado oficial a discriminação religiosa e teria tornado cidadãos de segunda categoria os membros das minorias. A declaração do Governo foi feita no dia de Natal de 1992. Jesus, nosso Salvador, havia rompido as barreiras da hostilidade e da discriminação, oferecendo o seu próprio corpo (cf. Ef 2,13-17). Ele é a nossa Paz mediante a sua crucifixão, a sua morte e a sua ressurreição, Ele cumpriu a missão para a qual fora enviado, a saber: que todos sejam um (cf. Jo 17,21).

Eu me darei por muito feliz se, nessa missão de destruir as barreiras, Nosso Senhor aceitar o sacrifício do meu sangue em favor do seu povo. Como escrevia São Paulo: ‘Estou feliz por sofrer em vosso favor, como eu sofro agora, e regozijo-me por fazer em meu próprio corpo o que posso a fim de realizar o que deve ser realizado por Cristo em prol do seu corpo, que é a Igreja’ (cf. Cl 1, 24).

É esta a única resposta eficaz para o fenômeno sempre crescente da violência que nos cerca. Estamos prontos para sustentar esse desafio e seguir o Cristo, carregando a Cruz sobre os nossos ombros (Mt 16,24)? Estamos prontos para beber a taça do sofrimento até o fim, como fez Jesus (cf. Mt 20,22)? Que o Senhor crucificado e ressuscitado nos dê a coragem de o fazer! Amém”.

(Texto extraído de LA DOCUMENTATION CATHOLIQUE, 7/7/98, n.º 2183, pp. 536-540)

Comentando…

As palavras deste discurso põem em evidência a dolorosa situação em que vivem as minorias religiosas do Paquistão e de países influenciados pelo fundamentalismo. Foi contra tal ordem de coisas que Mons. John Joseph quis protestar, movendo as autoridades do seu país a rever a legislação vigente. Deus saberá avaliar o gesto desse lutador, gesto que, objetivamente falando, não pode ser recomendado; Mons. John Joseph acreditava em seu íntimo que estava assim servindo a Deus.

Os Bispos do Paquistão presentes em Roma por ocasião do desenlace do Prelado emitiram uma Nota importante, que ilustra a personalidade do defunto. Dela sejam extraídos alguns trechos:

“Nós, Arcebispo de Lahore, Bispo de lslamabad-Rawalpindi e Bispo de Hyderabad, hoje em Roma por ocasião do Sínodo da Ásia, assim como todos os cristãos paquistanenses de Roma, fomos profundamente emocionados pelas circunstâncias trágicas da morte de Mons. John Joseph. Foi a extinção repentina e cruel de ‘uma luz brilhante’ (Jo 5,35).

Para todos nós, ele era um homem enviado por Deus (Jo 1,6). Era um dos mais brilhantes estudantes do Seminário Nacional de Cristo-Rei em Karachi. Após a ordenação sacerdotal em 1960, obteve o doutorado em Teologia em Roma e, mais tarde, completou seus estudos de Liturgia. Era o Decano da Faculdade Acadêmica da sua Alma Mater; a seguir; foi nomeado Bispo de Faisalabad, tornando-se assim o primeiro paquistanense a dirigir a diocese e o primeiro Penjabi feito Bispo católico.

Era membro importante e reconhecido da hierarquia e, recentemente, fora eleito Vice-presidente da Conferência Episcopal do Paquistão. Já era Presidente da Comissão Episcopal de Justiça e Paz. Até o mês de abril deste ano, dirigia também a Comissão para o Diálogo Inter-religioso. Era o tradutor do Missal Romano, do qual foi publicada a segunda edição no mês passado. Tinha começado a tradução do Catecismo da Igreja Católica e, graças às suas qualidades intelectuais, estava assumindo a direção de uma equipe destinada a traduzir a Bíblia para a linguagem urdu, que é o idioma nacional…


No momento em que a Missa de funerais será celebrada em sua aldeia, aos 8 de maio, os Bispos do Paquistão e os fiéis presentes em Roma oferecerão a Eucaristia pelo repouso de sua alma. Cremos que o Senhor; que ele procurava tão heroicamente, lhe manifestará a sua compaixão e lhe dará a recompensa que ele merece.
Roma, aos 07 de maio de 1998.
Mons. Armando Trindade,
Presidente da Conferência Episcopal
Mons. Anthony Lobo,
Secretário Geral
Mons. Joseph Coutts,
Presidente da Comissão para o Diálogo Inter-religioso”

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