Islamismo: o Islamismo I

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 033/1960)


«Em que consiste propriamente o credo do Islamismo? Parece haver afinidade não desprezível entre a religião de Maomé e o Evangelho. Como se entende isso?»

Para entendermos o significado do Islamismo, torna-se oportuno propor primeiramente breve esboço biográfico do seu fundador Muham-mad-ibn-Abdallag-ibn-Mottalib (Maomé); após o que, consideraremos diretamente as doutrinas islâmicas.

1. Esboço biográfico de Maomé

Maomé nasceu em Meca, na Arábia Central, provavelmente em 580 (e não 570, data geralmente indicada), vindo a morrer com pouco mais de 50 anos de idade, em 632. Era filho da nobre tribo dos Koraischitas. Sua infância acha-se envolvida em muitas lendas.

Órfão desde tenra idade, Maomé haverá sido educado por um tio seu, Abu-Talib. Este, sendo comerciante, levava o sobrinho em viagens e caravanas pela Arábia, a Assíria e a Mesopotâmia, o que propor­cionou a Maomé o contato com núcleos de judeus e cristãos, os quais não deixaram de exercer influência sobre a sua alma profundamente religiosa

Aos 25 anos, Maomé, como guia de caravanas comerciais, entrou a serviço de rica viúva. Kadija, já quadragenária, com a qual acabou contraindo matrimônio. Em conseqüência, o futuro profeta, que se impunha a todos pela sua seriedade e o seu bom senso, passou a ser prestigiado também pelos seus haveres materiais.

Por volta de 610/611. Maomé efetuou a sua «conversão», que consistiu essencialmente em aderir ao monoteísmo e ao dogma da ressurreição (artigos estes que pertencem ao patrimônio da fé judaica e cristã).

Difícil seria reconstituir as circunstâncias desta conversão. — Parece que, por volta dos 30 anos, Maomé, profundamente impressio­nado pela incompreensão e a desunião dos homens entre si, se tornou cada vez mais meditativo; entregava-se a severas práticas de mortificação, e retirava-se para a montanha a fim de rezar a sós. De uma feita, na «Noite do Destino» ou na «Noite bendita do Corão», terá tido uma visão: em sonho, estranho personagem lhe apareceu trazendo nas mãos um rolo de pano coberto de sinais e mandando-lhe que lesse; após relutar contra essa ordem no sonho, Maomé acordou, consciente de que finalmente um livro descera em seu coração; percebera outrossim uma voz que em nome de Deus lhe atribuía a missão de reformar as crenças, pôr termo à idolatria e às disputas religiosas de seu povo,indicando a todos o caminho do céu. Muito perturbado e trêmulo, contou o ocorrido à sua esposa Kadija, a qual foi consultar um primo seu, Varaka, homem sensato e culto, que exclamou: «Deus escolhe-o para ser profeta de nova fé». Após repetidas visões, ignorando quem era o misterioso personagem que lhe aparecia, Maomé julgava-se perseguido por espíritos, e pensava em suicidar-se, quando certa vez a estranha voz lhe declarou: «Sou o anjo Gabriel e tu serás o apóstolo do Senhor».

Doravante, o Iluminado pôs-se a pregar nova forma de religião: o «Islam» ou, em árabe, a Submissão, Dedicação à Vontade de Deus. Maomé apoiava-se na fé em um só Deus. Allah, criticando os cultos pagãos, predizendo iminente catástrofe e apresentando reivindicações sociais em favor dos pobres. Tais proposições só fizeram irritar a aristocracia de Meca, de sorte que, ao lado de poucos adeptos (sua esposa, seu primo Ali, seus parentes Abu-Bakr e Otman), o profeta granjeou para si adversários cada vez mais infensos, temerosos pela sorte de seus ídolos e de suas rendas comerciais. A situação para Maomé se ia tornando insustentável em Meca, quando um grupo de habitantes da cidade de Medina resolveu mostrar-se benévolo para com o Profeta; tal gente sofrera a influência de judeus, que haviam disseminado em Medina a crença num Messias israelita; assim preparados, os medinenses julgaram ser em Maomé as qualidades autênticas de um Redentor árabe. Pelo que convidaram Maomé e sua pequena sociedade para se domiciliarem em Medina.

Tendo aceito, o Iluminado de Meca se transferiu para a cidade acolhedora na noite de 16 de julho de 622. Tal acontecimento tomou o nome de Hidjra ou Hegíra, Fuga, e assinala o inicio da era maometana.

Senhor de Medina. Maomé, com inteligência e astúcia, consolidou sua posição e foi revelando dotes de hábil chefe político e legislador civil. Visando unir numa só população coesa e forte seus compatriotas árabes, começou a estender o seu domínio por meio de expedições de ataque a caravanas comerciais. Os sucessos obtidos lhe iam assegurando crescente número de adeptos, até que finalmente em 629, aproveitando-se de um litígio entre tribos árabes, Maomé, sem desferir golpe algum, entrou em Meca e tomou posse do famoso santuário desta cidade dito «a Caaba», donde removeu os ídolos. Nos anos seguintes, foi dilatando o seu poder mediante guerras, e o envio de legações a tribos estrangeiras. Finalmente aos 8 de junho de 632, já cansado, veio a morrer quase repentinamente nos braços de Ayscha, sua esposa predileta. A obra de Maomé, embora tivesse que passar por vicissitudes várias, estava suficientemente adiantada para desper­tar a consciência religiosa e nacional dos árabes e lançá-los, coesos, à conquista de numerosas nações estrangeiras mediante a prática da «guerra santa».

As fontes doutrinárias do Islamismo são o código sagrado do Corão (m árabe, recitação, declamação, pois o texto devia ser recitado no culto) e a tradição oral dita Sunna.

Para os maometanos, o Corão representa a palavra incriada de Deus; há, sim, junto a Alá um livro posto sobre uma mesa, no qual se acha contida toda a revelação. Ao profeta foi manifestada apenas uma parte desta, servindo-lhe de mediador o anjo Gabriel; tal parte, porém, mesmo redigida em árabe, é idêntica e coeterna ao original celeste!

Não se pode atribuir a redação do Corão ao próprio Maomé. Este pronunciava seus ensinamentos geralmente em estado de transe; seus discípulos então os recolhiam ou na memória apenas ou por escrito em peles de animais, palmas, omoplatas de carneiro, tabuínhas de barro… As proposições de Maomé, orais e escritas, foram, sob Otman (644-655), o terceiro califa ou representante de Maomé, colecio­nadas em um só código de 114 suratas ou capítulos, compreendendo um total de versículos cuja extensão equivale a dois terços do Novo Testamento. Os críticos modernos admitem que por essa via o pensa­mento de Maomé haja sido em algumas passagens imperfeitamente transmitido e até mesmo interpelado.

Procuremos agora analisar as doutrinas e a mentalidade religiosa que emanam do movimento maometano.

2. As grandes proposições do Islamismo

A. O Monoteísmo

Uma das características mais importantes do Islamismo é a de constituir, ao lado do Judaísmo e do Cristianismo, uma das três grandes religiões monoteístas atualmente existentes no mundo. Fora destas três denominações religiosas, só se encon­tram concepções ilógicas referentes à Divindade: o politeísmo (fetichismo, idolatria), sistema que supõe, possa Deus ou o Absoluto ser esfacelado e multiplicado; e o panteísmo (hinduismo, confucionismo, chintoísmo. . .), ideologia que concebe Deus como substância neutra, impessoal, identificada com a natureza e o homem (ideologia incoerente, porque supõe, possa haver transição do Absoluto para o relativo e do relativo para o Absoluto).

O Islamismo, portanto, professando um Deus único, distin­to do mundo e do homem, situa-se no plano das mais elevadas confissões religiosas da humanidade. É somente entre os credos monoteístas que se pode pretender encontrar a verdadeira religião.

Verifica-se, porém, que o monoteísmo islamítico não é originário da Arábia mesma, mas derivado do monoteísmo judaico-cristão. Maomé mesmo nunca se apresentou como fun­dador de uma religião nova; a dogmática e a moral que ele ensinou, não constituem senão um amálgama de três blocos religiosos anteriormente existentes, como reconhecem em geral os orientalistas; esses três blocos seriam:

a) a antiga religião árabe, de índole animista e politeísta; carac­terizava-se pelo culto das pedras «divinas», consideradas como man­sões de seres superiores, cujas graças os homens procuravam atrair a si. Tenha-se em vista a «Pedra Negra», que não é mais do que um aerólito situado na Caaba, santuário principal de Meca, e objeto da grande veneração dos muçulmanos até hoje.

b) a religião israelita, professada por judeus domiciliados na Arábia, onde se entregavam ao comércio, à indústria e à agricultura. Tal Judaísmo, porém, já não era propriamente o da Lei de Moisés, mas trazia um anexo de observâncias e normas, por vezes estéreis, derivadas dos rabinos posteriores (também chamados «Talmudistas»). Foi certamente desse patrimônio judaico que Maomé derivou as grandes linhas da sua orientação religiosa: existe um só Deus, o qual se foi revelando sucessivamente aos profetas da humanidade — Adão, Abraão, Moisés, Jesus Cristo — e, por fim, consumou sua revelação por meio de Maomé, o maior de todos os profetas. O fato de que Maomé se inseriu na linha do Judaísmo, explica o freqüente uso da Bíblia no ensinamento islamítico, assim como alguns dos costumes muçulmanos (as purificações legais, a observância do talião, da poligamia, etc).

Contudo Maomé não se podia identificar plenamente com o pensa­mento judaico, porque, embora não visse em Jesus Cristo o Filho de Deus feito homem, atribuía a Cristo um lugar eminente entre os enviados de Alá. Sim; o profeta voltou sua atenção também para:


c) a religião dos cristãos. Maomé a conheceu principalmente em suas viagens, estabelecendo contato com os monges da fronteira da Síria. Tais cristãos, porém, não eram ortodoxos, mas herejes nestorianos e monofisistas, que lhe apresentaram um Cristianismo depaupe­rado; o profeta nunca chegou a ler os Evangelhos. Como quer que seja, pôde ele dizer: «Os judeus são infiéis… Não creram (em Jesus) e inventaram contra Maria uma abominável mentira».

Sem se comprometer nem com o Judaísmo nem com o Cristia­nismo, Maomé definiu sua posição religiosa apresentando-se como continuador da religião de Abraão e de seu filho imediato Ismael, personagens muito mais antigos do que Moisés e Cristo na história sagrada (na verdade, o povo árabe é descendente de Ismael, filho de Abraão e Agar). Para justificar sua independência religiosa, Maomé atribuiu a judeus e cristãos «o grande erro de terem falsificado os livros sagrados e o monoteísmo de Abraão e Ismael».

B. A dogmática islamítica

A teologia de Maomé é relativamente simples, resumindo-se em três solenes proposições:

a) Há um só Deus, invisível, também considerado como o Deus vivo, poderoso, criador, glorioso. O Profeta, porém, nunca O chama «justo», porque na realidade Deus faz tudo que quer e a ninguém presta contas. Em suas relações com os homens, Ele é, por excelência, misericordioso e amável; aos seus fiéis servidores Ele dispensa, neste mundo mesmo, pros­peridade e riquezas materiais (para Maomé e o muçulmano em geral, a abundância de haveres materiais vem a ser sinal da bênção divina).

O conceito do poder ilimitado de Deus levou o Profeta a admitir a imutável predestinação: «Alá faz perecer a quem Ele quer, e, a quem Ele quer, conduz pelo caminho reto»; é Deus quem endurece os corações dos incrédulos, impedindo-os de chegar à luz da verdade. Foi esse fatalismo que inspirou muitas das realizações fanáticas da história muçulmana, pro­vocando de maneira cega o entusiasmo de uns e o desânimo de outros dos discípulos do Profeta.

Em conseqüência de tais idéias, o Islamismo oficial (não falamos de seitas dissidentes) não estima a Deus como Pai, a quem o fiel possa ou deva amar, mas, sim, como Senhor, a quem se deve o temor. Assim no «Pai Nosso» dos muçulmanos, inspirado dos Evan­gelhos, foi substituída a interpelação inicial «Pai Nosso» por «Rei Nosso».

b) Existem anjos bons e maus. Os anjos são espíritos criados por Deus antes de Adão. Quando este apareceu, Alá mandou-lhes que se prostrassem diante de Adão; todos obede­ceram, exceto Iblis (forma derivada da palavra grega diábolos) ou Chaytan (nome proveniente do hebraico Satã). Em conse­qüência, Alá amaldiçoou o anjo rebelde, o qual, porém, obteve a licença de tentar os homens sobre a terra até o dia do juízo final. Na consumação dos tempos, será precipitado no inferno com os outros maus espíritos que o seguiram.

Além dos anjos propriamente ditos, o muçulmano admite a exis­tência de gênios (djinn,. seres corpóreos, formados de vapor ou de chama, dotados de inteligência e imperceptíveis aos sentidos humanos. O desejo de atrair ou afastar tais entes justifica a magia e a supers­tição vigentes entre os maometanos ignorantes.

c) Existe uma vida póstuma, na qual se distinguem o paraíso, sorte dos bons, e o inferno, castigo dos maus (no qual antigos documentos muçulmanos enumeram seis andares, destinados respectivamente aos árabes idolatras, aos brâmanes da Índia, aos judeus, aos cristãos, aos magos da Pérsia e aos hipócritas de todas as religiões).

Logo após a morte de um fiel, ensina o credo maometano, o seu cadáver é colocado no sepulcro; a alma fica doravante a vaguear em torno deste. Então dois anjos, Mountar e Nakir, apresentam-se ao defunto, que se levanta no túmulo; interrogam-no sobre as suas obras na terra. O defunto fiel. após responder, se deita de novo em sono pacato; quanto aos maus, são espancados severamente pelo tempo que Alá determine.

No fim dos séculos haverá grande luta, pois um «Anticristo» e Jesus comparecerão sobre a terra, tocando a Cristo a vitória decisiva. Dar-se-ão então a ressurreição dos corpos e o juízo universal. Os bons entrarão finalmente no paraíso, que Maomé concebia como parque fértil e ameno, onde, na companhia de mulheres e virgens, os justos se deleitarão: «No paraíso há córregos, cuja água jamais se deteriora; córregos de leite, cujo gosto não se alterará; córregos de vinho, que farão as delícias de quem deles beber; córregos de mel puro; toda espécie de frutas e o perdão dos pecados» (Corão XLVII 16s); «os eleitos repousarão sobre tapetes…; estarão ao seu dispor jovens virgens de olhar modesto, que nem homem nem gênio algum haverá jamais tocado». (LV 46-78).

Aos maus caberá a geena, lugar de tormentos; os teólogos muçul­manos atuais tendem a afirmar que estes não serão eternos, a não ser para os homens idolatras.

C. A Moral maometana

Os principais deveres do muçulmano, tidos como «pilastras da Religião», são os cinco seguintes:

1) professar a fé, 2) orar cinco vezes por dia (ao alvo­recer, ao meio-dia, pelas 3/4 hs da tarde, ao pôr do sol, no primeiro quarto da noite), cumprindo-se de cada vez as abluções legais prescritas, 3) jejuar durante o mês inteiro de Ramadã, 4) dar esmola aos pobres (o que compreende também a obri­gação de dar hospedagem momentânea seja a quem for e a qualquer hora), 5) peregrinar a Meca uma vez na vida.

A respeito do jejum muçulmano, observe-se que dura do nascer ao pôr do sol, ficando proibido neste intervalo ingerir qualquer subs­tância terrestre, não somente alimentos, mas também fumo de tabaco, perfumes, remédios, etc. À noite, são suspensas todas essas restrições. — O mês de jejum ou o Ramadã pode facilmente tornar-se uma época de reivindicações da carne; acontece não raro que durante a noite o árabe se desforre das privações sofridas durante o dia; assim as noites de Ramadã podem ser fases de orgia; e, se a estação do ano é quente, o muçulmano entrega-se à inércia ou ao repouso durante o dia, passando a trabalhar e a comer nas horas noturnas.

Os preceitos da lei natural são menos valorizados na Moral muçulmana. Praticamente o único pecado imputado entre os maometanos é o de apostasia da fé, ou seja, a adesão à idolatria ou ao paganismo. Na opinião de bons comentadores, a moral islamítica contribuiu para dar foros de legitimidade aos impulsos da cobiça humana e, em particular, da cobiça árabe; o próprio Maomé teria procurado, mediante cláusulas e leis do Corão, justificar os desmandos de seus amores, ou seja, a poligamia que ele praticou em alta escala (o Corão autoriza todo varão a ter quatro esposas legítimas e tantas concubinas escravas quantas seus recursos financeiros lhe permitam). O instinto belicoso ou a sede de se apoderar de terras e bens dos povos estrangeiros foi legitimado e até aguçado, nos discípulos de Maomé, pelo conceito de «guerra santa»: morrer em batalha armada torna o maometano «mártir», ou seja, herói religioso; de resto, o conceito de «predestinação», que inelutàvelmente assinala a cada indivíduo a hora de sua morte, muito concorreu para precipitar destemidamente os discípulos de Maomé na tarefa de assaltar…

Portadores do código de doutrina e moral que acaba de ser delineado, os árabes se expandiram através do Velho Mundo, fazendo do maometanismo um importante ator da história universal. Interes­sa-nos conseqüentemente averiguar qual seria.

3. A mensagem do Islamismo aos nossos dias

1. Considerada em seus princípios doutrinários, a reli­gião de Maomé tende a desenvolver nos seus adeptos a estima de certas observâncias exteriores tidas como legais, ficando em plano muito obscuro o que diz respeito à vida interior. Note-se outrossim — o que é de importância capital — que o Islão ignora o pecado original e a conseqüente decadência da natureza humana; por isto pouco avalia a necessidade de luta interior e de purificação da alma solicitada por paixões desregradas. Estas às vezes vêm a ser mesmo legitimadas por alguns itens do Corão, como vimos a propósito da poligamia, dos instintos de guerra e de rapina… A legislação religiosa muçulmana, para promover a honestidade de seus discípulos, não pode deixar de impor a seus fiéis um mínimo de mortificação interior; está longe, porém, de acentuar o valor desta, como o acentuam, por exemplo, as religiões da Índia, o orfismo da Grécia, e, num espírito totalmente diverso, o Cristianismo. Lê-se mesmo no Corão: «Alá quer tornar mais suave para vós a prática da religião: quer desafogar-vos, e não estreitar-vos. Ele nada vos mandou de difícil em vossa religião» (XXII 77). As concepções de bênção e recompensa divina estavam muito associadas, na mente do árabe antigo, às expectativas de bens terrestres: riqueza, posteridade numerosa, pleno sucesso nos empreendimentos temporais, vitória sobre os inimigos, etc. A bem-aventurança futura é no Islamismo prometida não pro­priamente aos pacíficos, mas, sim, aos belicosos, mormente aos homens que morram na «guerra santa».

Principalmente a partir dos califas Omaiadas (segunda metade do séc. VII) o ideal da teocracia ou de um império terrestre regido pelo poder religioso impregnou a mentalidade do muçulmano, levando-o a associar ainda mais estreitamente os conceitos de bênção divina e de posse dos bens terrestres; sob os Omaiadas, difundiram-se narrativas segundo as quais Maomé teria condenado não somente a ascese excessiva, mas até mesmo a conduta daqueles que negligen­ciam seus interesses temporais para se dedicar a uma piedade absor­vente. Nesse quadro de idéias, entende-se que o celibato voluntário venha a ser condenado.

Assim o Islão se apresenta como um sistema religioso que, com­pilado do paganismo, do Judaísmo e do Cristianismo, exprime tipica­mente a mentalidade de seu fundador e de seus imediatos discípulos, os árabes do deserto, homens de tempera ardente, profundamente religiosos, mas assaz rudes em sua maneira de pensar e de agir.

Segundo alguns historiadores contemporâneos, Maomé representa o tipo da religiosidade semita antiga. O semita, dizem tais estudiosos, tende naturalmente a se sujeitar sem hesitação ao Governador da história (Deus, como o escravo ao seu senhor; nada faz sem Deus, e não se julga chamado a corrigir a Providência Divina; «plantará árvores onde o Altíssimo não as faz crescer? Ou poupará a sua vida na guerra, se a seta que o deve matar o atingirá até na cama? ». O semita acha natural que Deus exija dele serviços extrínsecos, como orações, loções, jejuns, esmolas, peregrinações,..; realiza isto tudo com seriedade e exatidão; mas a tempera ardente de seu ânimo não se deixa dominar pelo senso da responsabilidade ou pela voz da consciência: conseqüentemente mentira, cobiça, crueldade e volúpia vêm a ser, para Maomé e seus fiéis seguidores, coisas que pertencem à vida humana e que nesta nada têm que ver com a religião…

2, Fixados estes pontos, é preciso observar que não seria justo determos nossa atenção apenas sobre tal aspecto do Islamismo. Através da história, a religião de Maomé, implantando-se em terras não árabes, tomou facetas assaz diversas da que acabamos de delinear, facetas que deixaram forte marca na literatura muçulmana assim como no panorama do Islamismo moderno.

Analisemos de mais perto este outro aspecto do maometanismo.

Entre os dizeres mesmos do Profeta, não faltam os que inculcam a religião interior ou o predomínio dos bens do espí­rito sobre os da carne. Maomé chegou a falar de purificação da alma, apresentou a vida presente como «água que passa e erva que fenece» (Sur. X 25; XIII 18); afirmou a prevalência da devoção interior sobre os sacrifícios rituais (Sur. XXII 28). Assim o Corão era capaz de inspirar não somente uma religião formalista, mas também uma piedade muito intensa e profunda. Foi o que se deu nos círculos árabes que entraram em contato com sistemas religiosos dos povos vizinhos, em particular com o Cristianismo; criou-se destarte uma autêntica mística muçul­mana, da qual dois grandes expoentes são Al-Hallaj († 922) e Al-Ghazali († 1111). Especialmente a corrente dita «sufita» (nome derivado de souf, veste de lã branca que os ascetas muçulmanos já no séc. VII usavam à semelhança dos peni­tentes cristãos) dedicou-se ao cultivo da vida interior e da experiência mística. Infelizmente, porém, a mística muçulmana, em muitos de seus representantes, se associou a conceitos filosóficos errôneos, ou seja, ao panteísmo e ao monismo: alguns sufitas professaram tal união da alma com Deus que significava identificação dos dois termos; o místico Bistami († 874), por exemplo, em lugar do tradicional brado Sobhan Allah (= Lou­vor a Deus!), exclamou Sobhani (= Louvor a mim!), porque em si ele não percebia mais o próprio «eu», mas apenas o «Eu» divino.

3. Na era moderna, alguns círculos islamíticos, principalmente do Egito e da Turquia, foram contaminados por tendência oposta à mís­tica, ou seja, pelo liberalismo e o racionalismo. A Turquia maometana, ortodoxa até o início deste século, sofreu uma espécie de laicização sob o poder de Mustaphá Kemal (1920-1938): proclamou a separação do Estado e da religião, suprimindo o cargo de Califa (chefe religioso e Chefe civil ao mesmo tempo); adotou o código civil suíço e o código penal italiano, proclamou a igualdade de direitos do varão e da mulher e «desarabizou» o seu Islão, traduzindo para o turco o Corão e as orações oficiais.

O grande problema do Maometanismo atual é o da adaptação de suas instituições ao ritmo da vida moderna. Pergunta-se se isto será possível sem que a religião de Maomé se desvirtue por completo. Em resposta não se poderiam propor senão prognósticos incertos; somente o tempo fará ver até que ponto o Islamismo é suscetível de acomodações que não sejam traições.

Entrementes a religião maometana apresenta um panorama assaz amplo: ao lado da forma ortodoxa ou conservadora (termo de signi­ficado talvez relativo, pois não há autoridade central que garanta a unidade e a fidelidade do Islamismo a si mesmo), registram-se nume­rosas seitas consideradas heréticas (sunitas, chiitas, karigitas, motazilítas, etc), O conjunto islamítico abrange um total de 400 milhões de almas, dos quais 380 milhões vivem na África (80 milhões) e na Ásia (300 milhões); neste continente o bloco mais denso se acha situado na índia e na Indonésia. — A população árabe constitui um grupo de 25 milhões de almas apenas dentro da família muçulmana.

Embora as estatísticas constituam índice por vezes assaz precário e deficiente, a título de curiosidade seguem-se abaixo algumas cifras que indicam a porcentagem de muçulmanos que praticam os diversos ritos e preceitos de sua religião em determinada aldeia do Egito (note-se o âmbito restrito da estatística):


Circuncisão …………………………………… 85%


Oração publica da 6ª feira ……………… 40%


Jejum …………………………………………… 70%


Peregrinação a Meca …… …………….. 15%


«Shahada» ou rito dos agonizantes……. 90%

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