(Revista Pergunte e Responderemos, PR 219/1978)
por J. E. M. Terra S. J.
Em síntese: O presente artigo condensa o conteúdo do livro do Pe. Terra sobre as diversas escolas de exegese contemporâneas que se têm dedicado ao estudo dos Evangelhos. O panorama começa pelo Método da História das Formas, que faz repousar a redação dos Evangelhos sobre a pregação dos Apóstolos e discípulos sem pretender chegar à própria pregação de Jesus; distinguir-se-ia assim o Jesus da fé do Jesus da história. Rudolf Bultmann radicalizou esta tese, propondo a demitização dos Evangelhos. Seguiu-se a reação a Bultmann por parte de autores que verificam não ser possível conceber a fé no Jesus da pregação, sem se admitir o fundamento dessa fé na própria história e nas palavras mesmas de Jesus de Nazaré.
Entre outras escolas de exegese recentes, merecem atenção a escandinava e a da teologia funcional ou econômica. – A escandinava propugnou de novo a valorização do texto evangélico como eco fiel das tradições orais que entre os antigos costumavam transmitir genuinamente o teor das mensagens de seus mestres. A escola da teologia funcional orienta-se segundo outras premissas: o texto bíblico não nos quer falar de Deus ou de Jesus Cristo em si, mas tão somente do que significam (ou da sua função) para os homens; se esta afirmação é verídica, ela pode ser exagerada a ponto de levar ao ceticismo ou agnosticismo em relação a Deus e ao mistério de Cristo, como isto se deu realmente no caso da “Teologia da morte de Deus”. Esta, porém, já teve sua voga e hoje também se acha ultrapassada.
Em conseqüência, verifica-se hoje, principalmente nas escolas de exegese católica, o retorno à aceitação (ou à reafirmação) do texto evangélico como testemunho fidedigno da história e dos dizeres de Jesus. Embora o estilo dos evangelistas não seja o da estrita historiografia, mas tenha interesses catequéticos, é certo que os Evangelhos permitem tocar a realidade da pessoa e da mensagem de Jesus Cristo.
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Comentário: O Pe. João Evangelista Martins Terra S.J. acaba de brindar o público com mais uma de suas obras: «Jesus», ou melhor, «O Jesus histórico e o Cristo querigmático», Ed. Loyola, São Paulo 1977.
O autor percorre as diversas correntes da teologia e da exegese que nos últimos decênios se têm dedicado à figura de Jesus Cristo nos Evangelhos. Trata-se de um informativo, que supõe muita e minuciosa leitura e transmite ao leitor a súmula do pensamento de autores que dificilmente seriam abordados pelo grande público. O Pe. Terra torna-se assim um guia criterioso para expor as complexas linhas da pesquisa contemporânea referente aos Evangelhos.
Dada a importância do livro, procuraremos, a seguir, apresentar os seus principais tópicos – o que equivale a mostrar os rumos da Cristologia bíblica de nossos tempos. Distinguiremos as seguintes diretrizes exegéticas: 1) O clássico Método da História das Formas; 2) A radicalização de Bultmann; 3) A reação a Bultmann; 4) A nova hermenêutica; 5) A teologia bíblica como narração; 6) A exegese escandinava; 7) A teologia funcional ou econômica; 8) A exegese católica e a volta ao Jesus histórico.
1. O Método da História das Formas
O Método da história das Formas (Formgeschichtliiche Methode) teve origem na Alemanha logo após a primeira guerra mundial, quando K. L. Schmidt (1919), M. Dibelius (1919) e R. Bultmann (1921) publicaram suas primeiras obras sobre o assunto.
Este método tenciona explicar o texto escrito dos Evangelhos levando em conta o intervalo que ocorreu entre a Ascensão do Senhor (30 ou 33) e a redação das diversas formas do Evangelho escrito (Mateus aramaico data de 50 aproximadamente, ao passo que Lucas em grego data de cerca de 70 e João em grego remonta aos anos 98-100). A pregação oral, dizem, durante esses decênios, foi adaptando a imagem e a doutrina de Jesus aos diversos ambientes aos quais ela se dirigia. Em outras palavras: os arautos da Boa-Nova procuraram dar a esta um Sitz im Leben ou um lugar na vida, um significado especial para os ouvintes – o que redundou numa adaptação remodeladora da mensagem. A figura e a palavra de Jesus foram tomando traços novos, inspirados, em grande parte, pelas concepções dos povos da Palestina, da Síria, da Ásia Menor, da Grécia…, a quem eram transmitidas pela pregação. Em conseqüência, dizem ainda, a imagem histórica, real de Jesus de Nazaré, que viveu na Palestina até 30 ou 33, foi transformada ou transfigurada numa imagem concebida pela fé dos discípulos: seria a imagem do Cristo (Messias, Salvador) querigmático (isto é, forjado através do kérygma ou dos embates da pregação). Daí o programa que compendia o pensamento dos autores do Método: discernir as fases ou etapas que vão «do Jesus histórico ao Cristo querigmático». O que o texto escrito dos Evangelhos nos transmite, não seria a realidade histórica ocorrida na Palestina até 30 ou 33, mas seriam as concepções subjetivas dos discípulos de Jesus, que embelezaram ou adaptaram às suas necessidades a figura do Mestre. Os evangelistas foram os compiladores dos fragmentos literários (ou das formas) criados anonimamente pelas primitivas comunidades cristãs. A exegese teria por tarefa tentar reconstituir, através dessas formas literárias das antigas comunidades cristãs e dos evangelistas, o que fosse possível encontrar do Jesus real e histórico:… talvez alguns poucos traços ou dizeres ou… talvez nada…!
O mais radical dos autores da Escola da Formgeschichte é RudolfBultmann (+ 1976), cujas conclusões principais passamos a examinar.
2. A radicalização de Bultmann
Bultmann se desinteressou totalmente pelo Jesus da história; julga mesmo que não se pode reconstituir a imagem do Jesus histórico, pois o que o Evangelho nos refere é apenas a maneira como a fé dos primeiros cristãos considerava Jesus. Mesmo que se conseguisse, com certa probabilidade, reconstituir o perfil de Jesus terrestre, isto não teria valor, pois o fundamento e o objeto da fé cristã é o Cristo apregoado pela Igreja, e não o Jesus histórico. O Jesus da história é apenas um profeta, sem dúvida o maior de todos, mas profeta que pertence ao Antigo Testamento; Ele é um judeu, e não um cristão, porque cristão é aquele que acredita na mensagem dos Apóstolos e não aquele que funda a sua fé sobre uma figura histórica. Para a fé, basta o simples fato de que Jesus tenha existido e tenha sido crucificado sob Pôncio Pilatos.
Bultmann é fortemente influenciado pelo pensamento existencialista de Martin Heidegger. Por isto preocupa-se tão somente com o Dass (o fato) da existência de Jesus, e não com o Was ou o conteúdo dessa mensagem. Por conseguinte, o cristão, segundo Bultmann, não professa artigos de fé ou verdades de um Credo, mas procura viver a tese da justificação pela fé, passando da vida inautêntica para a vida autêntica.
Para um fiel católico, o pensamento bultmanniano é tão radical ou despojado que se torna difícil entendê-lo: a SS. Trindade, a Encarnação, os milagres, a ressurreição corporal de Jesus, os sacramentos…, conforme Bultmann, são expressões de uma mentalidade mítica que têm de ser reconhecidas como tais, não podendo, pois, ser tomadas como representa0ções das verdades da fé. Todos esses mitos (ou categorias de pensamento arcaico) são apenas a roupagem para dizer ao homem: «Converte-te, aceitando a mensagem de salvação que Deus te oferece pelo profeta Jesus! E, convertendo-te, passa de uma vida não autêntica para uma vida autêntica!» Quanto ao teor dessa vida autêntica, o cristão o deve descobrir tão somente através da leitura pessoal e íntima da Palavra de Deus! É a esse procedimento exegético que se dá o nome de Entniythologisierung ou demitização (melhor do que desmitização).
A posição de Bultmann, extremada como é, provocou réplicas entre os próprios discípulos. É o que veremos a seguir.
3. A reação a Bultmann
Entre os discípulos de Bultmann que começaram a contestar as posições radicais atrás expostas, citam-se E. Käsemann, Wilihelm Marxen e H. Conzelmann. Detenhamo-nos sobre o pensamento do primeiro.
1. Em 1954 Käsemann proferiu uma palestra intitulada «Das Problem des historischen Jesus» (O problema do Jesus; histórico), na qual mostrava a necessidade de interesse pelo Jesus que viveu na Palestina. Recusava a afirmação de Bultmann segundo a qual nada poderíamos saber sobre a vida e a personalidade de Jesus, visto que os antigos cristãos não se teriam interessado pelas mesmas; ao contrário, dizia Käsemann, as comunidades primitivas não quiseram nem puderam separar o Jesus, histórico do Cristo da fé; a própria fé exige que procuremos reconstituir os traços do Jesus real, pois em caso contrário ela faria de Jesus um mito.
Mais ainda: nas palavras que os evangelistas atribuem a Cristo, pode-se descobrir o modo de pensar e falar do próprio Jesus. Para realizar essa descoberta, importa utilizar não só o método da história das formas, mas também o da história da redação: este procura explicar por que a pregação cristã antiga se cristalizou precisamente nos textos redigidos dos Evangelhos de Mt, Mc, Lc e Jo; para tanto, recorre a crítica literária, à estatística de vocábulos, ao exame da gramática e dos estilos, ao estudo das idéias teológicas dominantes. Os evangelistas não foram meros compiladores de dados recebidos através da tradição oral e escrita anterior, mas foram verdadeiros autores: cada qual tem seu estilo característico, que supõe elaboração pessoal dos dados da tradição; tem também seus processos redacionais e seus interesses teológicos particulares – o que não significa necessariamente tenham deturpado os fatos que narram.
Mediante tais recursos podemos chegar ao conhecimento da figura histórica de Jesus; a pregação cristã não terá senão explicitado o que já se encontrava implícito nas palavras do Senhor. Assim Käsemann se distanciou de Bultmann.
2. G. Bornkamm, autor protestante, em seu livro «Jesus von Nazaret» (München 1956) [1], também se opós a Bultmann. Enquanto Käsemann dava grande importância às palavras de Jesus, Bornkamm quis valorizar principalmente as ações e a personalidade de Jesus, considerando o impacto que Ele produziu sobre os seus seguidores; observa que, mesmo que prescindamos de todos os dizeres messiânicos atribuídos a Jesus, restam o seu agir e os traços da sua personalidade – elementos estes nos quais transparece a messianidade de Cristo. A posição de Bornkamm exerceu grande influência não só em ambientes protestantes, mas também em escolas católicas; exagerando-a, certos exegetas começaram a negligenciar os ditos de Jesus para valorizar-lhe apenas a ação exercida com absoluta autoridade e liberdade.
Merece menção à parte, entre os discípulos de Bultmann, a escola dita «da Nova Hermenêutica».
4. A Nova Hermenêutica
1. A escola da Nova Hermenêutica teve sua origem em Marburg com os discípulos de Bultmann: E. Fuchs, G. Ebeling e J. M. Robinson.
As premissas desta escola são as do existencialismo de Martin Heidegger tal como este se projetou na obra «Unterwegs zur Sprache» (1959) [2], ao passo que as premissas da hermenêutica existencial de Bultmann são as da obra «Sein und Zeit» (Ser e Tempo) da primeira fase de pensamento de Heidegger. Das premissas de «Unterwegs zur Sprache» seguem-se as seguintes reflexões:
A linguagem autêntica não é informativa, mas interpelativa. Ela visa a produzir nos ouvintes o mesmo evento que lhe deu origem. Em outros termos: a linguagem não me transmite conhecimentos objetivos a respeito de algum acontecimento, mas, antes do mais, ela me confronta com o evento e me incita a uma decisão,… decisão que me livra do meu passado e me leva a me construir, a «ex-sistere», a me abrir às possibilidades do futuro. Não devo procurar no texto que leio, alguma informação objetiva, nem o devo ler com indiferença ou desinteresse. Devo reproduzir em mim o próprio evento que deu origem ao texto.
Por conseguinte, seria errôneo querer buscar nos Evangelhos uma informação objetiva sobre Cristo. As afirmações que pretendem objetivar (ou transmitir verdades objetivas), são mitos; é preciso reinterpretá-las do ponto de vista existencial. Mais: nenhuma interpretação será completa se não se tornar linguagem e não for de novo proclamada na pregação (querigma).
A este propósito seja lícito observar: uma das dimensões da linguagem é, sem dúvida, a de interpelar o ouvinte e provocar resposta vivencial. Todavia, para que a linguagem interpele, deve ter um conteúdo objetivo e informativo; caso não o tivesse, a ciência e a filosofia não teriam sentido ou seriam perda de tempo. Por conseguinte, não se pode negar que a finalidade dos Evangelhos era informar, mesmo se a informação devia culminar numa decisão de fé vivencial.
2. Em suma, as variedades impostas ao pensamento de Bultmann por seus discípulos bem mostram que o mestre, como tal, já foi ultrapassado.
Indicaremos abaixo três pontos, nos quais o fator da desmitização está superado:
a) Bultmann rejeita logo de início o pensamento objetivante ou a distinção entre sujeito e objeto. É incapaz de conceber um discurso objetivo sobre Deus, baseado na analogia do ser. Por conseguinte, recusa-se a admitir o Wie (como) e o Was (o conteúdo) do Jesus da história, para ficar apenas no fato Jesus. – Ora note-se que o mais teologizante dos evangelistas, João, afirma que o Filho deu a conhecer o Pai invisível (Jo 1,18), fazendo-se o Jesus da história, o Jesus que os apóstolos viram, contemplaram, ouviram e com suas mãos apalparam (Mo 1,2). O Filho tornou-se, pois, «objeto» observado, ou o Wie e o Was do Jesus da história, que os Apóstolos observaram e transmitiram ciosamente (cf. Mo 1,1-3). Se eliminamos a objetividade da vida de Jesus, Deus não foi revelado aos homens.
b) Bultmann afirma que a fé não precisa da razão nem exige o sacrifício ou a renúncia da inteligência humana… – Não obstante, ele requer um ato de fé cego, destituído de apoio em fatos históricos ou em dados da razão. Ora isto vem a ser renúncia à razão, sacrifício da inteligência. Aceitar Cristo sem alguma razão para fazê-lo significa menosprezar a inteligência do homem.
c) Bultmann responderia que a fé não é profissão de verdades (Fürwahrhalten), mas é adesão existencial. Confesso o Cristo quando me engajo numa opção concreta de vida autêntica, com renúncia à vida inautêntica. – Observe-se, porém, que, antes de assumir este compromisso vivencial, devo compreender que Jesus é o Cristo; foi em vista de todo esse processo que os evangelistas escreveram os seus relatos evangélicos; cf. Jo 20,31:
“Jesus fez, diante de seus discípulos, muitos outros sinais ainda, que não se acham escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida eterna em seu nome”.
Por conseguinte, ainda que a fé não seja só profissão de verdades, não se lhe pode denegar esta atitude; ela é também a apreensão e compreensão de verdades reveladas por Deus Pai em Jesus Cristo. Toda a teologia paulina tende, sim, a um engajamento, mas supõe a aceitação, pela inteligência, das verdades apregoadas pelo Apóstolo.
Seja mencionada agora
5. A teologia bíblica como narração
Uma corrente de exegetas independente da escola de Bultmann tem-se dedicado ao estudo de determinado tipo de linguagem existente na Bíblia que é a linguagem narrativa ou a narração (a qual se distingue da argumentação e da exortação). Tal corrente compõe-se de exegetas católicos de orientação ortodoxa, como também de protestantes.
A narração, na Bíblia, não costuma ser simples transmissão de notícias sobre algum acontecimento, mas é um louvor ou também uma profissão de fé no Senhor e na sua ação salvífica. O Evangelho segundo Marcos, por exemplo, que é tido como o mais antigo, apresenta-se como longa narração da Paixão do Senhor (esta começa, por assim dizer, em Mc 3,6); os dizeres de Jesus, tanto em Mc como em Mt, Lc e Jo, são inseridos no contexto das narrações. Isto quer dizer que a mensagem cristã consistiu desde o início precisamente na profissão dos feitos salvíficos de Deus Pai por meio de Jesus, isto é, teve desde o começo um caráter narrativo, laudatório.
A preferência pelo estilo narrativo significa que os primeiros cristãos bem compreenderam que não se pode falar de Deus tão somente com argumentos ou raciocínios, mas é preciso narrar as imprevisíveis e surpreendentes intervenções do Senhor na vida dos homens. É através dos acontecimentos da história da salvação, concatenados entre si pelos narradores bíblicos, que o homem vai depreendendo o desígnio de Deus. Por conseguinte, toda narração bíblica vem a ser também teologia, ou seja, discurso sobre Deus que tem algo de admiração, adoração, louvor, etc.
Os méritos desta nova corrente exegética consistiram em valorizar os fatos dando preeminência ao acontecimento «Cristo» mais do que à própria pregação de Jesus.
Proporemos agora uma escola que teve grande valor construtivo, chamando a atenção para a fidelidade dos evangelistas aos fatos históricos.
6. A exegese escandinava
Esta corrente teve como protagonistas os dois exegetas H. Riesenfeld e B. Gerhardson de Upsala (Suécia). Preconizam o estudo do judaísmo (em vez do helenismo) como sendo chave de interpretação do Novo Testamento.
Ambos afirmam que a tradição cristã só pode ser devidamente entendida se comparada com a tradição judaica, que deu origem aos dizeres chamados Pirqê Aboth (Tradição dos pais). Jesus terá ensinado segundo os métodos dos rabinos de seu tempo, recorrendo à mnemotécnica e às parábolas. Sabe-se, com efeito, que entre os judeus havia repetidores oficiais, encarregados de transmitir as tradições com fidelidade perfeita: eram os tannaim. Partes da tradição oral eram compreendidas em resumos ou kelalot; por sua vez, esses resumos eram decorados pelos seus cabeçalhos ou títulos, simanim; a fim de reter a estes na memória, inventavam-se técnicas mnemônicas. Ora os Apóstolos e discípulos de Jesus, como porta-vozes qualificados do ensinamento do Mestre, terão transmitido a doutrina com precisão e fidelidade que se aproximavam das que caracterizavam as tradições do povo de Israel. – Tenha-se em vista, por exemplo, o prólogo de Lucas (1,1-4), em que o evangelista distingue 1) Jesus Cristo, 2) as testemunhas auriculares imediatas da pregação de Cristo, 3) aqueles que receberam das testemunhas imediatas. A mesma seqüência se encontra em Hb 2,3: «A salvarão começou a ser anunciada pelo Senhor. Depois foi-nos fielmente transmitida por aqueles que a ouviram». São Paulo, apesar de afirmar que recebeu sua missão do Senhor (Gl 1,1), reconhece sua dependência da tradição (1Cor 15,3) e, como os rabinos, mantém as tradições dos Pais (cf. Gl 1,13s; Fl 3,5s), confronta seu Evangelho em Jerusalém com aqueles que são as colunas da Igreja (cf. Gl 2,9). Por conseguinte, o próprio Paulo se sentiu ligado à tradição.
Tendo em vista as premissas aqui expostas, alguns exegetas (entre os quais o famoso protestante Joachim Jeremias) têm procurado descobrir (com êxito), no texto escrito dos Evangelhos, as palavras de Cristo como saíram dos lábios do Senhor (ipsissima verba Christi); um espécimen desses ipsissima verba seria o texto de Mt 16, 17-19.
A escola escandinava constitui assim o mais veemente desafio que o Método da História das Formas liberal de Dibelius, Schmidt, Bultmann… teve de enfrentar. Leva a ver que a base do texto do Evangelho não é simplesmente a pregação (o querigma) dos Apóstolos, mas é a vida mesma (os feitos e dizeres) do próprio Jesus; o Jesus pré-pascal estaria (e está) na origem da tradição oral e escrita nos Evangelhos.
Apresentaremos agora outra corrente exegética independente do pensamento bultmanniano.
7. A teologia funcional ou econômica
1. Verifica-se que o centro de interesses da filosofia contemporânea se deslocou do ser para a linguagem; em conseqüência, muitos pensadores já não procuram a realidade em si ou os valores essenciais, mas apenas aquilo que é expresso dentro das limitações dos modos de exprimir.
Ora, dizem vários exegetas, a linguagem bíblica não é essencialista, ou seja, não revela as verdades divinas como tais, mas é funcional, isto é, concebida em função dos homens nas suas diversas situações. Em outros termos: as Escrituras não nos comunicam o que Deus e Jesus Cristo são em si mesmos, mas aquilo que são para nós. Tal linguagem é também chamada econômica, porque visa apenas a narrar a economia ou a dispensação da salvação aos homens[3].
Como exemplo de linguagem funcional bíblica, cita-se o texto de Êx 3,14. Tendo Moisés perguntado a Deus qual o seu nome, Deus lhe respondeu da sarça ardente: «Eyeh asher eyeh». Ora a tradição grega dos LXX e a latina da Vulgata e dos mestres ocidentais interpretaram essa resposta em sentido metafísico ou ontológico: Deus se teria revelado como o Ser subsistente.
Todavia esta interpretação não leva em conta precisamente a linguagem econômica ou funcional das Escrituras, alheias a especulações ontológicas. Quem estuda acuradamente o texto bíblico, verifica que o sentido da resposta a Moisés é bem diverso; o Senhor Deus quis apenas significar: «Eu sou o que serei», ou seja: «Eu vos mostrarei por meus atos qual o meu nome.. . Eu sou aquele que vos fará sair do Egito e atravessar o Mar Vermelho. Eu sou Aquele que vos conduzirá ao Sinai e concluirá a Aliança convosco. Eu sou Aquele que fará de vós o seu povo. Eu sou Aquele que vos fará entrar na terra prometida» … Tal foi como se julga, a resposta funcional ou econômica que o Senhor quis dar a Moisés. Seguindo a mesma linha, Deus se apresenta no Apocalipse como «Aquele que é, Aquele que era, Aquele que há de vir» (cf. Ap 1,4.8; 4,8).
Nos escritos do Novo Testamento, fazendo eco aos do Antigo, Cristo se apresenta como «Aquele que é…»: «Eu sou o pão da vida», «Eu sou a luz do mundo», «Eu sou o bom pastor», «Eu sou o caminho», «Eu sou a videira» … Tais enunciados exprimem não o em si de Cristo, mas, sim, o que Cristo é para nós, em sua realidade funcional ou econômica.
Os autores que desenvolvem o aspecto funcional ou econômico da linguagem bíblica, não fazem senão acentuar uma realidade; entre eles há católicos (como Dupont, Boismard e Karl Rahner…) e protestantes (como O. Cullmann). – Todavia pode acontecer que o caráter funcional da linguagem do Novo Testamento seja radicalizado ou cultivado exclusivamente. Isto levaria a negar a própria teologia bíblica. Nada saberíamos a respeito do que Deus é em si mesmo; apenas teríamos a noção de Jesus como Libertador político, como «o homem para os outros», como «o Irmão mais velho», etc.
2. Foi precisamente essa radicalização que ocorreu na chamada «Teologia da morte de Deus», cujos arautos são Dietrich Bonhoeffer, John Robinson, W. Hamilton, T. J. J. Altizer, P. van Buren… , dos quais alguns ainda são vivos.
A teologia da morte de Deus renuncia a falar de Deus, alegando que de Deus nada sabemos ou que Deus é um vocábulo sem ressonância para o homem de hoje. Contenta-se em falar de Jesus,… e de Jesus como homem, elaborando assim a Jesulogia [4] ou uma Cristologia sem Deus ou uma história da salvação atéia, essa Jesulogia se interessa apenas pela repercussão horizontal ou social da pregação de Jesus, sem admitir o que se chama «o mistério de Cristo».
Na verdade, a teologia da morte de Deus e a pura Jesulogia já fizeram época há cerca de quinze anos; hoje em dia são atitudes ultrapassadas, pois se verifica que o interesse pelo mistério íntimo de Deus é de novo crescente e que é impossível compreender a doutrina e a obra de Jesus sem penetrar no seu mistério íntimo. Ademais, verifica-se que uma Jesulogia puramente funcional não passa de um sociologismo romantico, demagógico e inoperante; um Jesus cuja única significação consiste em ter dado bom exemplo de dedicação aos outros e apregoado lições de moral, pouco ou nada interessa. Um Jesus cuja ressurreição tenha apenas o valor simbólico de um impacto produzido no seio da comunidade cristã primitiva, mas cujo corpo se desfez no túmulo, não pode fundamentar as esperanças do homem sôfrego de vida e imortalidade. Uma teologia que não esclareça o mistério do pecado nem o mistério da Redenção, não se pode denominar teologia cristã nem história da salvação. A fé se transforma então em mero sistema de relacionamento do cristão com os homens e com o mundo.
Resta agora examinar de mais perto o tema:
8. Exegese católica e volta ao Jesus histórico
Os exegetas católicos não recusam por completo as idéias da escola da Formgeschichte (História das Formas), da qual Dibelius e Bultmann são os primeiros representantes.
Sabiamente fizeram a seleção do que a escola acarretou de positivo para o estudo dos Evangelhos, recusando os abusos inspirados antes por premissas filosóficas preconcebidas do que pelo próprio texto bíblico. Em conseqüência, também os católicos professam que
1) os Evangelhos escritos tiveram sua pré-história, ou seja, seu período de transmissão por via meramente oral, não havendo procedido exclusivamente da pena e da autoria dos evangelistas;
2) é muito importante o estudo dessa pré-história, ou seja, dos ambientes em que a palavra de Jesus foi apregoada ou dos fatores que influíram sobre a pregação cristã em seus primeiros decênios;
3) os dados consignados pelos evangelistas não nos permitem redigir uma biografia completa de Jesus no sentido moderno da palavra, pois são fragmentos dos feitos e dos dizeres de Jesus transmitidos sem intenção de se tornar relato completo;
4) o texto dos Evangelhos foi redigido a fim de exprimir a fé da Igreja e suscitar a mesma fé em seus leitores. Daí, por exemplo, a apresentação da infância de Jesus em estilo midráxico[5] (cf. Le 1-2; Mt 1-2)… Este gênero literário não implica deturpação da verdade nem invencionice, mas tão somente enfoque próprio. Esse enfoque peculiar não nos impede de discernir as próprias palavras de Jesus em mais de uma passagem do texto evangélico.
A propósito a Igreja publicou dois documentos de grande valor, que fixaram os itens acima: a Instrução da Pontifícia Comissão Bíblica sobre a Verdade Histórica dos Evangelhos (21/04/64) e a Constituição Dogmática «Dei Verbum» do Concílio do Vaticano II (1965). Em tais documentos a Igreja afirma a identidade entre o Jesus da história e o Cristo da fé. Essa identidade, ou seja, a veracidade histórica dos Evangelhos é de relevo capital para a teologia católica; com efeito, a teologia ensina que Deus se revelou aos homens através de fatos históricos, isto, é, «por eventos e palavras intimamente conexos entre si» (Constituição «Dei Verbum» n° 2); Deus se manifestou em fatos concretos e na Pessoa de Jesus Cristo, que viveu na terra em época e lugares bem determinados. Os feitos e os dizeres de Jesus podem ter sido transmitidos em estilo catequético mais do que historiográfico; isto, porém, não impede o exegeta de descobrir no texto evangélico a realidade histórica. Para tanto, os estudiosos estipulam critérios válidos e minuciosos, que neste artigo vão apenas enunciados
1) Critérios primários ou fundamentais:
a) critério de múltipla atestação;
b) critério de descontinuidade;
c) critério de conformidade;
d) critério de explicação necessária.
2) Critérios secundários ou derivados:
a) o estilo de Jesus;
b) a inteligibilidade interna de um relato;
c) interpretação diversa, mas acordo de base.
Observa, por fim, o Pe. Terra:
“À medida que as investigações vão avançando, o material evangélico reconhecido como autêntico cresce sem cessar e tende a alcançar o Evangelho inteiro.
Muitos pontos essenciais já polarizaram a adesão de quase todos os exegetas. Esses resultados dizem respeito, sobretudo: a) ao meio ambiente de Jesus, b) às grandes linhas de seu ministério, c) aos grandes acontecimentos de sua vida, d) às controvérsias com os escribas e fariseus, e) à atitude contrastante de simplicidade e autoridade, f) às fórmulas de uma Cristologia obscura, g) aos lógia que rebaixam a Jesus, h) à recusa de um messianismo político e temporal, i) às pretensões surpreendentes manifestadas no discurso da montanha com respeito à lei, no uso da termo Abba, em sua assimilação ao Filho do homem de Daniel, e nas declarações que o conduzem à morte, j) à vocação, missão, exaltação, incompreensão, traição e abandono dos Apóstolos, etc.
…Por meio de uma aplicação rigorosa dos critérios de autenticidade histórica, não se pode dizer como Bultmann: `De Jesus de Nazaré não se sabe quase nada’. O preconceito sistemático de suspeitas que durante quase um século pesou sobre os Evangelhos, pesa agora, graças ao estudo dos critérios de autenticidade, sobre aqueles que negam tal autenticidade. Esta inversão das posições não é um retorno à ingenuidade acrítica, mas deriva-se precisamente da aplicação mais rigorosa da crítica histórica que reabilita a autenticidade histórica dos Evangelhos” (p. 145).
9. Conclusão
Nas páginas precedentes apresentamos as grandes linhas do livro «Jesus» do Pe. João Evangelista Martins Terra. O autor o termina prometendo outra obra sobre a ressurreição de Jesus e os resultados da crítica moderna, que significam um retrocesso em relação à picaretagem teológica e exegética de anos passados.
A tarefa de compendiar e apresentar síntese que o Pe. Terra se propõe, não é fácil. Em conseqüência, compreende-se que o livro «Jesus» tenha suas repetições, que poderiam ser supressas em próxima edição, a fim de tornar mais suave ao leitor a utilização de tão denso livro. Como quer que seja, congratulamo-nos com o autor por sua rica produtividade teológica, à qual não faltam qualidade e nível científicos. O «Jesus» aqui apresentado será útil manual introdutório nos caminhos da exegese dos Evangelhos no século XX.
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NOTAS:
[1] Em tradução brasileira: “Jesus de Nazaré”. Ed. Vozes, Petrópolis 1976.
[2] “A caminho para a linguagem”.
[3] A palavra economia vem do grego oikonomía e significa originariamente a administração ou a distribuição de bens numa casa.
[4] A Jesulogia seria o estudo de Jesus como mero homem e líder social. A Cristologia, ao contrário, seria o estudo de Jesus como Cristo, isto é, como Messias, Salvador ou como Deus feito homem.
[5]O midraxe é uma narração de fundo histórico que põe em relevo o significado teológico dos fatos narrados.