Jesus Cristo: mistério de Jesus

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 343/1990)

por Vamberto Morais

Em síntese: Vamberto Morais, médico que se doutorou em História Antiga, escreveu um estudo sobre Jesus Cristo como “religioso independen­te”, convicto de que religião é experiência, ou seja, um sentimento subjeti­vo, ao qual a historicidade dos episódios do Evangelho não importa. Aplica seu raciocínio (com falhas evidentes) a negar a credibilidade de traços im­portantes dos Evangelhos, como a Divindade de Jesus Cristo, a sua ressur­reição corporal, a infância do Senhor narrada por Mateus e Lucas. O livro se ressente de preconceitos e superficialidade; detém-se em aspectos da temáti­ca, fechando os olhos a outros, que mereceriam igual consideração. Ao com­parar Jesus e o Cristianismo com mestres religiosos e crenças não cristãos, o autor é sumário, não levando em conta o sentido especificamente cristão da mensagem evangélica.

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Vamberto Morais é médico formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Pernambuco. Estudou e trabalhou em Londres. Em 1984/87 fez o Curso de Doutorado em História Antiga pela Universidade de Londres (Birkbeck College); a sua tese teve por título “The Life in Ancient Greece”. Publicou outras obras, entre as quais “O mistério de Jesus Cristo à luz da Religião Comparada e da História”.[1] O autor desenvolve certa erudição, revelando conhecimento de história e de Cristianismo e procurando rein­terpretar a figura de Jesus Cristo em termos atualizados.

1. O teor do livro

Vamberto Morais faz questão de repetir o seu ponto de partida:

“Vale aqui insistir numa das suposições básicas deste livro: que reli­gião é experiência, e não especulações ou teorias. O que aconteceu ou dei­xou de acontecer na Judéia há 1900 anos, não invalida a experiência básica dos cristãos, que é uma questão de vida. Creio, aliás, que esta é uma tendên­cia das mais sadias da Igreja de hoje: concentrar-se em viver o Cristo no dia-a-dia, e não discutir dogmas. E isto se aplica ainda mais a muitas das novas gerações, que procuram seguir Jesus atraídos por seu fascínio, mas têm muito pouco interesse pela teologia cristã” (p. 298; cf. pp. 9. 323, 0 capa do livro).

Apesar de professar descaso pela teologia ou pelo que “aconteceu ou não aconteceu”, o autor aplica seu talento à discussão da veracidade dos Evangelhos. Segue os autores críticos mais avançados, entre os quais Rudolf Bultmann. Consequentemente nega a ressurreição de Jesus, seu nascimento virginal, concebe o Nazareno como mero líder religioso que pregou uma revolução social, penhor de mais justiça e fraternidade no mundo; Jesus terá sido um carismático que não pensou em fundar uma instituição. Seus discípulos, porém, institucionalizaram e perverteram o ideal de Jesus, dan­do origem à Igreja.

Em nossos dias, a própria Igreja estaria a se desinstitucionalizar, dei­xando de lado questões doutrinárias, para se entregar mais e mais à reforma social. Uma de suas expressões mais autênticas seria a Teologia da Liberta­ção, inspiradora de comunidades de base. Por isto também a Igreja estaria aberta a práticas de religiões orientais e ao próprio marxismo. – O livre exame dos Evangelhos praticado pelos protestantes estaria sendo adotado também pelos católicos; donde resultaria um Cristianismo novo:

“A revolução de hoje, que é uma volta às fontes, apenas começou e o seu curso futuro é imprevisível. Mas uma compreensão melhor de Jesus – que só se pode fazer no laboratório da vida de ação e contemplação – é de certo modo um de seus resultados. Até que enfim os católicos estão apren­dendo (muitos protestantes já tinham começado este processo) a encetar o livre exame dos Evangelhos, não como um exercício acadêmico ou esco­lástico, mas como algo profundamente prático. Que importa que em meio disso se sacrifiquem mitos e imagens reverenciadas durante séculos? Con­templar a nudez forte da verdade é um bom exercício ascético, que reprime os derrames sentimentais do velho tipo de imaginação piedosa” (p. 322).

Em suma, o sentimento, a experiência e vivência hão de ser os cri­térios para interpretar os Evangelhos e tentar entender Jesus Cristo e sua mensagem, conforme Vamberto Morais.

2. Comentando.. .

Cinco reflexões vêm a propósito:

2.1. Religião-experiência

O princípio básico do autor segundo o qual religião é experiência de­sinteressada da verdade, é insustentável. A religião é a mais nobre atitude da criatura inteligente (pois é o reconhecimento de que existe um Criador sábio e santo, ao qual o homem deve prestar adoração e louvor); por isto a religião está estritamente ligada à inteligência do homem, que foi feita para apreen­der a verdade. Com outras palavras: a religião não se coloca apenas no plano da experiência ou dos sentimentos subjetivos, cegos, mas ela interpela e move o ser humano com todas as suas potencialidades. Se o homem tem intelecto, ele o tem, antes do mais, para sondar o porquê e o para quê da sua existência, . . . para descobrir o sentido da vida, que não se explica somente por fatores imanentes e transitórios, mas que só se esclarece e consuma no Transcendental ou em Deus; a inteligência existe ainda para tentar elucidar quem é Deus, que relacionamento tem Ele com o homem, que é que Ele revelou à criatura, qual resposta esta lhe deve dar num diálogo confiante e filial. Esta pesquisa exige o exercício da inteligência e está na altura das mais nobres funções do homem. Existem verdade e erro em matéria de religião, pois os preconceitos e a fantasia podem obnubilar a mente e dificultar o acesso a noções claras em matéria religiosa.

Aliás, Vamberto Morais não deixa de aplicar a sua inteligência ao estu­do dos Evangelhos, embora o faça tendenciosamente. É o que passamos a considerar sob o título abaixo.

2.2. A crítica dos Evangelhos

O autor dedica as pp. 331-365 ao tema assim intitulado: “Apêndice para os curiosos: Fontes para o Estudo de Jesus”.

Neste segmento de seu livro, V. Morais estuda, entre outras coisas, a origem e a autenticidade dos Evangelhos… – A impressão que se tem ao ler as suas considerações, é a de que o autor optou pelo negativismo: recusa o testemunho de João (pp. 355-357); nos Sinóticos julga que nunca há afirma­ções de ordem especulativa ou teológica, mas apenas “ditos de índole predo­minantemente moral, social ou profética. . . segundo a grande tradição dos profetas judeus” (p. 358). Consequentemente fala de mitos quando nos Evangelhos se depara com alguma passagem de ordem doutrinária; vejam-se os capítulos do corpo do livro, onde reina descrédito a respeito da autenti­cidade dos Evangelhos.

O autor comete várias imprecisões, indícios de imperícia na matéria:

a) O cânon (catálogo) do Novo Testamento ter-se-á constituído no século II, quando “a Igreja rejeitou vários escritos que circulavam na época” (p. 358). Na verdade, o cânon do Novo Testamento foi fixado definitiva­mente no século IV: em 393, o Concílio regional de Hipona formulou a pri­meira definição do cânon do Novo Testamento.

b) Os Evangelhos sinóticos “quase não contém sermões de Jesus” (p. 354). – Ora o Evangelho de Mateus é conhecido como o livro dos cinco sermões programáticos,[2] aos quais se acrescenta o sermão a respeito dos fariseus hipócritas (Mt 23): julga-se até que Mateus utilizou copiosamente uma suposta fonte (Quelle) de dizeres de Jesus.

c) Afirma V. Morais:

“Por certo, há trechos da pregação de Cristo na tradição sinótica que podem ser rejeitados. No complicado processo de tradução e transmissão, deve ter havido muita deformação e perda do sentido original” (p. 355).

O autor parece não conhecer a crítica do texto do Novo Testamento, que é praticada por autores diversos (mesmo liberais e racionalistas), os quais jamais afirmaram o que V. Morais afirma: hoje em dia há mais de 5.000 testemunhos (papiros e códices) do Novo Testamento, que permitem esta­belecer com segurança o texto grego original do Novo Testamento; compa­rando entre si estes testemunhos, dos quais alguns remontam ao século II, reconstitui-se a face do texto autógrafo quando sobre ele paira alguma dú­vida. Nem as traduções antigas deturparam o texto original; ao contrário, não raro contribuem para se recompor o original quando impreciso.

d) A p. 53 afirma o autor:

“Foi São Jerônimo, ao que parece – famoso como tradutor e comen­tarista da Bíblia – o primeiro a sustentar que os irmãos de Jesus teriam sido na realidade seus primos, filhos de uma outra Maria, mulher de Clopas ou Cleofas (combinando assim Mc 15,40 com Jo 19,25)”

V. Morais não dá importância à tradição dos primeiros séculos neste particular (S. Jerônimo morreu em 420). Esquece que desde cedo Maria foi chamada pelos cristãos gregos asiparthénos, sempre virgem. Além disto, o Protoevangelho de Tiago enfatiza que os ditos “irmãos de Jesus” eram filhos de José gerados em primeiro matrimônio (anterior ao casamento com Maria SS.); não se pode garantir a veracidade desta notícia, mas, como quer que seja, ela atesta a consciência que os primeiros cristãos tinham, de que os “irmãos de Jesus” não eram filhos de Maria SS.

e) V. Morais recorre freqüentemente às religiões da Índia para ilustrar e interpretar os Evangelhos – Mais uma vez negligencia algo de essencial: a concepção básica da revelação bíblica é monoteísta (há um só Deus distin­to e Criador do mundo e do homem), ao passo que as religiões da Índia (hinduísmo, bramanismo, budismo. . .) são panteístas com fundo politeísta. Ora estas duas concepções básicas diferenciam radicalmente as correntes reli­giosas em foco; se há alguma semelhança entre elas, deve-se ao fato de que em todos os homens existe o mesmo senso religioso congênito ou a mesma religiosidade natural, que em toda parte tem as mesmas ou semelhantes ex­pressões (silêncio, oração, jejum, luta contra as paixões desregradas…)- Im­porta ao estudioso examinar a mentalidade que inspira tais práticas em cada corrente religiosa a fim de não fundir ou confundir simploriamente elemen­tos heterogêneos.

Estas e outras imprecisões tiram a V. Morais autoridade para ensinar sobre a origem dos Evangelhos. Não se pode esquecer a bibliografia mais exa­ta existente a respeito, devida aos estudos do Latourelle, Lambiasi, Dreyfus (ver PR 336/1990, pp. 194-210).

Consideremos ainda alguns pontos particulares da crítica feita por V. Morais.

2.3. A infância de Jesus

Ao tratar da infância de Jesus – como de resto em todo o decorrer do seu livro -, o autor se mostra preconceituoso e, por isto, superficial.

1. Os capítulos 1 e 2 de Mateus e de Lucas lhe parecem mitológicos, ou seja, destituídos de valor histórico, pois são “aproximações sucessivas de uma realidade espiritual” (p. 25). Por conseguinte, Jesus terá nascido em Nazaré, e não em Belém – o que é dito gratuita e superficialmente, sem que o autor leve em conta a arqueologia (ou os monumentos existentes em Be­lém da Palestina) e a tradição cristã antiga.

2. V. Morais afirma que Jesus teve irmãos, filhos de Maria e José. Co­nhece a argumentação católica segundo a qual a palavra irmão (adelphós, no texto grego do Evangelho) há de ser entendida no sentido do hebraico e do aramaico ah (irmão, primo ou parente próximo). Rejeita, porém, tal ex­plicação alegando que em grego existem vocábulos distintos para designar irmão (adelphós) e primo (anepsios). “Se fôssemos aceitar o argumento católico, teríamos de acreditar que os autores do Evangelho eram tão igno­rantes do grego que não sabiam os termos mais simples e elementares do parentesco… Se Jesus tivesse sido filho único, . . . os autores dos Evan­gelhos teriam afirmado este fato, e da maneira mais inequívoca” (p. 53).

Eis um espécimen típico dos arrazoados de V. Morais : são aprioristas ou preconcebidos, além de unilaterais. O autor parece ignorar que os evan­gelistas escreveram na língua greca não clássica, mas na koiné, impregnada de semitismos ou de locuções aramaizantes; por isto o adelphós dos evange­listas tem o sentido não do adelphós dos gregos, mas do ah dos semitas. Ademais os evangelistas insinuam assaz claramente que Jesus era filho único

Quando

– Lucas afirma que Jesus, aos doze anos de idade, foi a Jerusalém com Maria e José a celebrar a Páscoa, tendo então ficado no Templo em diálogo com os doutores; como se pode crer, Jesus era naquela idade filho único (cf. Lc 2, 41-50);

– João refere que Jesus, ao morrer, entregou sua Mãe SS. aos cuidados de João, filho de Zebedeu e Salomé, e não a um dos chamados “irmãos de Jesus”. Se Maria tivesse outros filhos, seria óbvio que Jesus a entregasse aos cuidados de um de seus outros filhos.

3. Ao tratar do aspecto físico de Jesus, V. .Morais assevera: “Nem o ‘Jesus belo’ nem o ‘Jesus feio’ parecem ter a menor base histórica” (p. 63). – Não faz a mínima referência ao Sudário de Turim, peça importante para se reconstituir o retrato físico de Jesus. Verdade é que o Sudário é peça ainda discutida, mas merecedora de menção num estudo realmente objetivo.

2.4. A ressurreição de Jesus

Segundo V. Morais, Jesus não ressuscitou corporalmente, mas os seus discípulos tiveram visões subjetivas que lhes sugeriram a crença na ressurrei­ção de Jesus. O argumento para afirmar esta tese está em 1Cor 15,3-8: São Paulo aí enumera as aparições de Jesus ressuscitado a Pedro, a Tiago, aos doze, a mais de quinhentos irmãos e também. . . a Paulo. Ora, dado que Paulo não viu Jesus fisicamente, mas apenas mentalmente, V. Morais deduz daí que os demais Apóstolos também viram Jesus apenas mentalmente ou numa experiência meramente subjetiva, sem que houvesse presença objetiva de Jesus ressuscitado (cf. pp. 299s)! Como é fraco este modo de raciocinar! Não leva em conta a resistência de Tomé, vencida finalmente quando Jesus lhe deu a tocar suas mãos e seu lado (cf. Jo 20, 24-29). Nem considera como, de modo geral, os Apóstolos estavam totalmente desanimados, longe de imaginar Jesus ressuscitado, a tal ponto que tiveram dificuldade para crer na notícia da ressurreição (cf. Lc 24,911.36-39) . Quanto ao sepulcro encon­trado vazio, V. Morais reconhece que não tem explicação:

“Temos de admitir que essa interpretação não dá conta da descoberta do túmulo vazio, que parece ser uma tradição genuína. Mas o desapareci­mento de um corpo não é prova de ressurreição física. Na incerteza e obscu­ridade de fatos com que lidamos, o acontecimento pode ter várias outras explicações: um engano na identificação do túmulo, mudança de planos por parte de José de Arimatéia (que depois disso desaparece de cena), etc. Está claro que nenhum historiador sério vai tratar o problema da ressurreição como se fosse um enigma de romance policial (como fez, por exemplo, Hugh Schonfield no seu livro absurdo A Conspiração da Páscoa).

De um ponto de vista histórico, não pode haver certeza de nenhuma explicação. Só podemos esperar que algum dia as pesquisas de parapsicolo­gia nos ajudem a compreender melhor esses fenômenos de aparições depois da morte” (pp. 308s).

O recurso à parapsicologia – chave que abre todos as saídas postiças – é gratuito e vago, além de não levar em conta os textos mesmos dos Evangelhos e da Tradição.

2.5. Ecumenismo e Diálogo Religioso

V. Morais refere-se freqüentemente ao Diálogo Religioso e ao Ecume­nismo como termos que ele deseja promover mediante as suas concepções…

Para a Igreja Católica, Ecumenismo é o movimento de aproximação dos cristãos separados por cismas diversos, tendendo a levar todos à plena comunhão com a Igreja confiada a Pedro. Diálogo Religioso é o intercâmbio existente entre católicos e não cristãos. – Em um e outro caso, não se trata de formar uma frente única amistosa, baseada no relativismo religioso ou em experiências místicas meramente subjetivas, mas, sim, trata-se de aplai­nar os caminhos para que haja comunhão plena sem traição da verdade revelada por Deus Pai mediante o Senhor Jesus e confiada à Igreja que Jesus fundou e entregou ao pastoreio de Pedro (cf. Mt 16, 16-19; Lc 22, 31s; Jo 21, 15-17).

A ação social é importante a fim de se construir um mundo mais justo e fraterno, mas ela é função da mensagem doutrinária dos Evangelhos, men­sagem que deve ser guardada incólume em sua índole transcendental. O Cristianismo é, antes do mais, a Boa-Nova a respeito de Deus e de seu plano de salvação, Boa-Nova da qual deve decorrer uma praxis ou atividade ética adequada.

Não nos deteremos na análise de outros pontos do livro de V. Morais, pois são muitos e de pouco valor científico. O autor, aliás, confessa: “Não é simplesmente como especialista em história que olho Jesus. O mundo já sofre demais com a idolatria do ‘técnico’! Escrevi este livro como alguém que vive, sofre e sente as angústias, tormentos e frustrações da vida de hoje” (p. 10). Cremos na boa intenção do pesquisador pernambucano, mas de­vemos dizer que o seu livro não foi escrito segundo o rigor de um estudo científico digno deste nome.

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NOTAS:

[1] IBRASA, São Paulo 1990, 140 x 210 mm, 388pp.

[2] Sermão da Montanha (Mt 5-7); Sermão Missionário (Mt 10); Sermão das Parábolas do Reino (Mt 13); Sermão Comunitário (Mt 18); Sermão Esca­tológico (Mt 24-25)