Jesus Cristo: os milagres de Jesus: história ou lenda

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 171/1974)

Em síntese: Os milagres de Jesus, tidos como sinais nos Evangelhos, estão estritamente ligados à doutrina que Jesus ensinou. Essa vinculação é tão íntima que não se entenderia a pregação de Cristo caso se cancelasse a realidade dos milagres nos Evangelhos.

Ademais a historicidade dos sinais de Jesus se pode comprovar pela aplicação de critérios de autenticidade estipulados por críticos contem­porâneos:

1) o critério da descontinuidade: Jesus realizou prodígios em seu próprio nome, ao passo que os Profetas e os Apóstolos os faziam em nome de Deus;

2) o critério da conformidade: os milagres de Jesus ilustram harmo­niosamente a pregação do Mestre;

3) o critério do estilo: Cristo realizava seus sinais com simplicidade e sobriedade de gestos e palavras; tinha sempre em mira a comunicação de uma mensagem, ao contrário do que se dá nos Evangelhos apócrifos, onde Cristo é apresentado a realizar prodígios espalhafatosos e destituídos de finalidade;

4) critério da explicação necessária: verifica-se um conjunto de fatos em torno de Jesus Cristo que pedem explicação. Tenham-se em vista, por exemplo, a admiração que Ele suscitou nos seus contemporâneos, o reco­nhecimento, por parte dos Apóstolos, de que Ele era o Messias, o instante apelo dos Apóstolos aos milagres de Jesus… Ora estes fatos só podem ser razoavelmente explicados se na verdade Jesus realizou os milagres que os escritos do Novo Testamento Lhe atribuem.

Assim se vê que crer nos milagres de Jesus, longe de ser absurdo é, antes, sugerido como razoável por um estudo sereno do Novo Testamento e do fenômeno “Cristianismo”.

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Comentário: Para quem se aproxima da fé católica, como também para quem já a tem, os milagres de Jesus narrados pelos Evangelhos podem constituir motivo de hesitação. Perguntam-se se os relatos dos Evangelhos correspondem a fatos históricos ou se, ao contrário, não são mais do que o eco de estórias que as antigas correntes religiosas imaginavam para engrandecer seus heróis.

A propósito já foram publicados artigos em PR 110/1969, pp. 54-67; 111/1969, pp. 110-114. Voltamos agora ao assunto, acrescentando-lhe dados novos e mais amplos.

Na verdade, um exame objetivo e sereno dos textos do Evangelho permite concluir em favor da historicidade dos mila­gres de Cristo. É o que tentaremos abaixo mostrar, procedendo por etapas. Com efeito, faremos, antes do mais, uma verifica­ção global, ou seja, um exame geral dos textos dos Evangelhos. A seguir, recorreremos a critérios precisos para averiguar a historicidade dos episódios portentosos dos Evangelhos.

Antes de se abordar propriamente o assunto em pauta, impõe-se uma observação lingüística:

Os vocábulos gregos que, no Novo Testamento, designam os milagres de Jesus, são os seguintes:

thaumásia, fatos que causam admiração e espanto; cf. Mt 21,15;

dytmeis, atos de poder; cf. Mt 7,22; 11,20. 23; 13,54. 58;

seméia, sinais; cf. Mt 12,38s; 16,1-4; Mc 8,11s.

No Evangelho de São João, esta última palavra é quase exclusivamente usada, pois São João atribui preponderante­mente aos milagres de Jesus a função de símbolos da doutrina e manifestações da glória de Cristo. Cf. Jo 2, 11.18.23; 3,2; 4,54… Somente em Jo 4,48 ocorre térata (prodígios) ao lado de seméia.

1. Visão global: linhas convergentes

Proporemos duas observações gerais decorrentes de uma leitura atenta dos Evangelhos:

1 .1. Os sinais nos Evangelhos

1. Examinemos o lugar que as narrações de milagres ocupam nos Evangelhos.

a) No Evangelho segundo Marcos, tais narrações equivalem a aproximadamente 31% do total do texto, ou seja, a 209 versículos dentre 666. Nos dez primeiros capítulos de Mc (ante­riores à Paixão de Jesus), tais relatos chegam mesmo a equivaler a 47% do texto.

b) Quanto ao Evangelho segundo João, Ch. Dodd o divi­de em duas partes: o Livro dos Sinais, que compreende os doze primeiros capítulos e é assim chamado porque todos os temas dessa seção são elaborados à guisa de comentários dos mila­gres de Jesus, e o Livro da Paixão (cc. 13-21).

2. Note-se agora que a doutrina de Jesus nos Evange­lhos está tão entrelaçada com os seus milagres que seria impos­sível conceber essa doutrina independentemente dos sinais que a acompanham; milagres e pregação de Jesus constituem um tecido único e harmonioso, porque conjuntamente concorrem para manifestar a mesma realidade, ou seja, a vinda do Reino de Deus. Aliás, diz São Mateus: “Jesus percorria toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, pregando a Boa-Nova do Reino e curando todas as doenças e enfermidades do povo” (4,23).

No Evangelho de Marcos, chamam a atenção, por exemplo, os seguintes episódios:

– o poder que Jesus tem de perdoar os pecados, é primei­ramente exercido e, depois, comprovado por um milagre; cf. Mc 2,512;

– a superioridade de Jesus em relação à observância do sábado é demonstrada mediante um milagre; cf. Mc 3,1-5;

– a identidade de Jesus (Messias, que inaugura o Reino de Deus) é ilustrada por ocasião da prática de exorcismos; cf. Mc 3,22-30;

– a autoridade da doutrina de Jesus é reconhecida através dos portentos que Ele faz; cf. Mc 1,26-28.

O Evangelho segundo Mateus, depois de referir o Sermão da Montanha (Mt 5-7), que é a Magna Carta do Reino de Deus, instaurado por Jesus, agrupa intencionalmente dez narrações de milagres (esparsas no Evangelho segundo Marcos) e os faz seguir ao sermão; o Evangelista tenciona assim mostrar Jesus como Mestre e Taumaturgo ou como Mestre que tem poder para ensinar como ensinou, ainda que sua doutrina implique em superação da Lei de Moisés. Os dez milagres assim referidos lembram as dez pragas do Egito, que serviram de sinais para o Faraó; cf. Êx 7, 14-11,10.

No Evangelho segundo João, note-se, por exemplo, que a cura do cego de nascença é ocasião para que se compreenda que Cristo é a luz do mundo; cf. Jô 9,5; 1,9; 8,12. A multiplica­ção dos pães dá a ver que Cristo pode realmente vir a ser o pão descido do céu para comunicar vida superabundante; cf. Jo 6,1-15.30-59. A ressurreição de Lázaro manifesta que Jesus é a ressurreição e a vida; cf. Jo 11,25.

Estes dados dos Evangelhos sugerem o dilema: ou se acei­tam conjuntamente os ensinamentos e milagres de Jesus no Evangelho ou se rejeitam simultaneamente uns e outros. É impossível que os milagres de Cristo tenham sido inventados por homens fantasistas ou alucinados e depois “colados” sobre a sua pregação.. A mensagem que os Apóstolos transmitiram desde a primeira hora, apresentava o Cristo como o Mestre que realizou milagres. Sem os milagres não se explicariam a admiração e o entusiasmo do povo pelo Profeta da Galiléia.

Insistamos, porém, em dizer o que a muitos críticos poderá parecer altamente verossímil: aos heróis antigos se atribuía a realização de portentos, que, na verdade, eles nunca fizeram. Por que então não admitir o mesmo no tocante a Jesus?

A esta pergunta responderemos sob o título abaixo:

1.2. Milagres de Jesus e ambiente palestinense

Os relatos de portentos de Jesus, nos Evangelhos, atribuem a tais milagres caráter público. O público da Palestina do séc. I, portanto, podia ou confirmar ou contestar essas narra­ções. Vejamos conseqüentemente as atitudes desse público frente aos portentos de Cristo.

a) Nem Herodes nem os adversários mais ferrenhos, nem os compatriotas de Jesus parecem ter negado que Ele haja feito prodígios. Não contestaram a sua atividade taumatúrgica, mas, sim, a autoridade que Jesus reivindicava para si em conseqüên­cia dos seus portentos. Assim, depois da ressurreição de Lázaro, os fariseus dizem: “Que faremos? Este homem realiza muitos milagres. Se o deixarmos continuar, todos crerão nele” (Jo 11,47s). Não negam os fatos, mas receiam as conseqüências. Por isto desvirtuam o sentido desses milagres, dizendo que Jesus age em nome de Satanás; ao que Ele responde: “Se eu expulso os demônios por obra de Beelzebu, por quem é que os expulsam os vossos filhos?” (Mt 12,26s; cf. Mc 3,25-30; Lc 11,17-23).

b) Logo no dia de Pentecostes, Pedro declara:

“Israelitas, escutai estas palavras: Jesus de Nazaré foi diante de vós um homem plenamente acreditado por Deus, em virtude dos milagres, prodígios e sinais que Deus, por meio dele, fez entre vós, conforme vós mesmos sabeis” (At 2,22).

Pedro apela para o testemunho dos próprios judeus que, como os Apóstolos, presenciaram os milagres de Jesus.

Por ocasião do batismo de Cornélio, Pedro voltou a observar:

“Sabeis como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com poder e assim Ele andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os possessos do demônio, porque Deus estava com Ele” (At 10,38).

c) A carta aos Hebreus também merece atenção quando diz: “Anunciada primeiramente pelo Senhor, a salvação nos foi depois transmitida, com toda a segurança, por aqueles que a ouviram”. E seu tes­temunho foi confirmado por Deus, por meio de milagres, prodígios e diver­sas manifestações de poder, assim como por meio dos dons do Espírito Santo, distribuídos segundo sua vontade” (Hebr 2,3s).

d) Mais: o próprio Talmud (coletânea de dizeres dos ra­binos dos primeiros séculos) faz alusão à atividade taumatúrgica de Jesus, referindo o seguinte:

“Na véspera de Páscoa, suspenderam a um poste Jesus de Nazaré”. Durante quarenta dias, um arauto à frente dele clamava: Merece ser lapi­dado porque exerceu a magia, seduziu Israel e o levou à rebelião. Quem tiver algo a dizer para o justificar, venha proferi-lo!’ Nada, porém, se en­controu que o justificasse; então suspenderam-no ao poste na véspera de Páscoa” (Sanhedrin 43a, Talmud da Babilônia).

Assim a Tradição dos rabinos conservou a noticia da morte de Jesus, atribuindo-a à sua atividade taumatúrgica (confun­dida com magia).

Estas poucas observações, de índole geral, permitem con­cluir que na vida pública de Jesus houve realmente mais do que pregação e ensinamentos; aconteceram, sim, sinais milagrosos, que contribuíam para dar sentido a essa pregação e que ficaram indelevelmente gravados na recordação tanto dos dis­cípulos como dos adversários de Cristo.

Procuremos agora descer a considerações mais minuciosas concernentes aos milagres de Jesus.

2. Critérios de autenticidade

Os críticos dos Evangelhos, principalmente a partir de 1950,[1] têm estabelecido critérios racionais e científicos mediante os quais o estudioso pode chegar a reconhecer que determinado relato dos Evangelhos corresponde realmente a um fato histó­rico da vida de Jesus. Tais são, entre outros: o critério da descontinuidade, o da conformidade, o do estilo dos milagres, o da explicação necessária.

Façamos agora a aplicação de tais critérios aos trechos do Evangelho que narram milagres de Jesus, procurando assim averiguar se pode dar crédito a tais textos.

2.1. Critério do descontinuidade

Assim se enuncia o princípio: Presumem-se autênticas as palavras e atitudes de Jesus consignadas pelo Evangelho que não possam ser reduzidas nem às concepções do judaísmo nem às da Igreja antiga.

Compreende-se que este critério não possa ser aplicado com exclusivismo. Caso contrário, dever-se-iam julgar não autênti­cas palavras e atitudes de Jesus que se situassem na linha do judaísmo ou da Igreja antiga; em conseqüência, conceberíamos um Jesus atemporal, ou seja, desligado do seu ambiente e da sua época.

Passando agora à consideração dos milagres de Jesus, veri­ficamos que as atitudes de Cristo taumaturgo se distanciam notavelmente das atitudes dos Profetas e dos Apóstolos.

Com efeito. Antes de Jesus, nenhum profeta realizava mi­lagres em seu nome próprio. Depois de Jesus, os Apóstolos se referem sempre a Cristo e agem em nome dele. Somente Jesus ousa agir em seu próprio nome; Ele representa um momento único na história tanto por dirigir-se a Deus com o apelativo singular Abba (Pai muito amado), como por realizar milagres em seu próprio nome. Observem-se, por exemplo, as palavras de Jesus

ao leproso: “Quero! Sê purificado!” (Mc 1,41);

ao paralítico: “Digo-te: levanta-te!” (Mc 2,11);

à filha de Jairo: “Jovem, eu te ordeno: levanta-te!” (Mc 5,41).

Certamente nenhum profeta ousou falar assim.

Quanto aos Apóstolos, levem-se em conta os dizeres de Pedro ao paralítico da porta do Templo: “Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda!” (At 3,6). O mesmo Após­tolo assim fala ao enfermo de Lida (Samaria): “Enéias, Jesus Cristo te curou; levanta-te e arruma o teu leito” (At 9,34).

Nestes termos torna-se evidente, embora sumariamente, a atitude singular de Jesus ao realizar seus milagres. Os Evan­gelistas, que narram esses portentos, não parecem estar seguindo algum esquema literário pré-fabricado ou algum clichê de “Vidas de Heróis”, mas, sim, parecem estar reproduzindo a realidade inédita ocorrida em Jesus e com Jesus.

2.2. Critério de conformidade

Os exegetas – católicos e protestantes – concordam em admitir que o tema fundamental do ensinamento de Jesus é o da vinda do Reino de Deus. Assim, por exemplo, começa Jesus a sua pregação: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está perto. Arrependei-vos e acreditai na Boa-Nova” (Mc 1,15).

A expressão “Reino de Deus” ocorre 139 vezes no Novo Testamento, das quais 104 nos Evangelhos. Visto que o tema do Reino é característico da mensagem de Jesus, são considera­dos como autênticos e históricos os ditos e feitos de Jesus que estejam intimamente ligados a esse tema. Tal é o caso das parábolas, e também o dos milagres do Evangelho.

Com efeito, na pregação de Jesus os milagres são apresen­tados como sinais da vinda do Reino anunciado pelos profetas. São, pois, um elemento do Reino,… Reino que não é estático, mas que transforma a condição humana e estabelece a senhoria de Cristo sobre todas as criaturas.

Assim, por exemplo, aos discípulos de João Batista que O interrogavam, Jesus declarou que todos os sinais do Reino anun­ciados pelos Profetas eram cumpridos por Jesus:

“Ide contar a João o que vistes e ouvistes: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a Boa-Nova é anunciada aos pobres” (Lc 7,22; cf. Mt 11,3s, em eco a Is 35,5s; 29,18; 26,19; Jer 31,34; Ez 36,25).

Em um sumário típico, Mateus associa a proclamação do Evangelho e as curas milagrosas: “Jesus pregava a Boa-Nova do Reino e curava todas as doenças e enfermidades do povo” (Mt 4,23; cf. 9,35).

O milagre é, pois, o sinal da salvação que vem por Jesus, pois é pelos milagres que se manifesta o poder de Deus sobre Satanás, o Príncipe deste mundo, o qual, segundo a Bíblia, acarretou o pecado e as desgraças sobre o homem; cf. Lc 10,8-10; 10,18-20; Mc 16,17s. Por conseguinte, um milagre de Jesus, sem convite a se reconhecer o Reino iminente e a Pessoa que o vem instaurar, é um não-senso; é tão somente um prodígio (téras em grego).[2] Eis por que Cristo, quando realiza um mi­lagre, sempre incita à conversão e à fé na sua missão.

A propósito, encontra-se nos Evangelhos um texto impor­tante que ilustra o liame muito estreito existente entre os mila­gres e os temas do Reino e da conversão. Trata-se da censura dirigida por Jesus às três cidades da Galiléia que se haviam recusado a reconhecer nas curas e nos exorcismos efetuados por Cristo os apelos à conversão:

“Jesus começou então a censurar as cidades onde tinha realizado a maior parte dos seus milagres, porque não haviam feito penitência: ‘Ai de ti, Corozaim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se os milagres realizados entre vós, tivessem sido realizados em Tiro e Sidônia, de há muito teriam feito penitência no saco e na cinza… E tu, Cafarnaum,… Se os milagres que em ti se realizaram, tivessem sido realizadas em Sodoma, elas ainda hoje subsistiria. Aliás, digo-vos, haverá mais tolerância no dia do juízo para os de Sodoma do que para vós” (Mt 11, 20-24; cf. Lc 10,13-15).

Os dizeres de Jesus aqui consignados são tidos como parte dos mais antigos estrados da pregação dos Apóstolos. Dão a ver que as três cidades da Galiléia não haviam sabido distinguir os sinais do Reino. Donde se pode concluir mais uma vez que os milagres eram o próprio Reino de Deus na sua visibilidade; por eles se comprovava a eficácia da palavra e da realidade trazidas por Jesus.

Vejamos agora

2.3. O estilo dos milagres de Jesus

Ao contrário do que se verifica nos Evangelhos apócrifos, o estilo dos milagres de Jesus, nos livros canônicos, é caracte­rizado por simplicidade, sobriedade e autoridade. Leve-se em conta os seguintes dados:

1) Jesus não distingue entre os diversos casos de doença que se lhe apresentam. Não importa o tipo de moléstia: lepra, surdez, paralisia… De modo geral, os Evangelistas descrevem as doenças sem minúcias técnicas, valendo-se dos termos usuais na época: febre, paralisia, lepra… Não toca a Cristo proferir diagnóstico. Apenas o que interessa, é a realidade da doença, fato da cura e, principalmente, o significado religioso de que o acontecimento se reveste.

2) Os milagres de Cristo não têm em mira apavorar ou punir o povo supersticioso, como isto acontece nos apócrifos. O único caso que se poderia apontar em contrário, é o da maldi­ção de uma figueira estéril fora da época de frutos; cf. Mc 11,13. Este fato, aparentemente típico de um homem furioso e descontrolado, não é senão uma ação simbólica, como as muitas que se encontram nos livros dos profetas (cf. Is 20,1-4; Jer 19, 1-15; Ez 4,1-17…); a maldição da figueira vem a ser uma parábola vivida ou o sinal da ruína que em 70 d.C. aco­meteria o povo de Israel incrédulo. Note-se, de outro lado, que Cristo recusou a sugestão de João e Tiago, que queriam fazer descer fogo do céu para punir uma aldeia inóspita; cf. Lc 9,52-56. Na verdade, Cristo não realiza demonstrações clamo­rosas ou insensatas.

3) Todo o comportamento de Jesus é marcado por sim­plicidade e autodomínio. Não emprega fórmulas mágicas nem artifícios, nem intervenções cirúrgicas, nem hipnose ou sugestão.[3] De resto, como curar a lepra com hipnose ou sugestão? As intervenções de Cristo se reduzem a uma palavra autoritá­ria, acompanhada, por vezes, de gesto simbólico muito simples (imposição de mãos, toque de ouvidos ou de olhos…; Mc 8,23; 7,33). A tradição cristã viu nesses gestos de Cristo os inícios dos ritos sacramentais.

4) Geralmente a cura é instantânea; notam-se, porém, alguns poucos casos de restauração da saúde por etapas; cf. Mc 8,22-25 (o cego de Betsaida) e Lc 17,12-16 (a cura de um leproso).

5) O contexto dos milagres é sempre religioso. Jesus valo­riza a fé de quem lhe roga, e incita a pessoa curada à penitên­cia ou conversão; cf. Jô 9,35-38; Mt 8,8-13.24-27; 9,2-7.21s. (28s). É por isto que a atenção dos Evangelistas não se prende aos pormenores dos episódios.

6) A discrição de Jesus corresponde à índole religiosa dos seus milagres. Jesus não os realiza para se pôr em evidên­cia: recusa a Herodes fazer o exibicionismo que este espera de Cristo (cf. Lc 23,8s); impõe o silêncio aos beneficiados (Mc 7,36; 9,920); depois da multiplicação dos pães, retirou-se a sós para a montanha, a fim de evitar a multidão que o queria acla­mar rei (Jô 6,15); antes de ressuscitar a filha de Jairo, diz: ”Ela dorme” (Mc 5,39), no intuito de tranqüilizar os assistentes.

7) Um confronto, ainda que sumário, com os Evangelhos apócrifos e com os relatos de prodígios da Antigüidade grega (de Epidauro, por exemplo) dá a ver, por contraste, a simpli­cidade e a sobriedade dos milagres de Jesus; cf. PR 110/1969, pp. 56-67. Os textos apócrifos apresentam um Jesus maravi­lhoso e portentoso que ostenta o poder de maneira arbitrária e fantasista; cf. PR 56/1962, pp. 346-356.

A Igreja antiga não pôde impedir que a imaginação popular divagasse em torno de Jesus taumaturgo; mas não reconheceu os Evangelhos apócrifos pelo fato mesmo de que os apócrifos, procurando descrever um Jesus maravilhoso, traíam o Evan­gelho. Na mensagem de Jesus, doutrina e milagres são insepa­ráveis uns dos outros (cf. Const. “Dei Verbum”2 e’4: “com palavras e com feitos Deus se revelou” mas o milagre serve apenas para ilustrar as palavras; sem os milagres que salvavam os corpos no tempo, os homens não teriam entendido que Jesus vinha trazer a salvação transcendental, eterna.

Resta agora examinar o

2.4. Critério da explicação necessária

Quem observa serenamente o fenômeno “Jesus Cristo” uma série de fatos ora mais, ora menos surpreendentes, que pedem uma explicação adequada. Assim

a) É preciso explicar, por exemplo, o fato de que os Apóstolos acreditaram na messianidade de Jesus ou na autori­dade de Jesus como Messias, Precisamente se Jesus foi tido pelos pósteros como sendo o Cristo ou o Messias, isto se deve ao fato de que os Apóstolos o apregoaram como tal.

b) É preciso explicar o fato de que Jesus foi considerado como um Grande Profeta (cf. Mc 8, 27-29) ou mesmo como o Profeta por excelência prometido por Moisés e aguardado por todo o povo de Israel (cf. Dt 18,18; Jo 6,14s).[3]

c) É preciso explicar o fato de que os sacerdotes de Israel e os fariseus quiseram eliminar Jesus, alegando que Ele reali­zava prodígios e constituía uma ameaça ao prestígio dos men­tores de Israel. Cf. Jo 12,47: “Os príncipes dos sacerdotes e os fariseus formaram conselho e disseram: Que faremos, visto que esse homem realiza tantos milagres? Se o deixarmos assim, to­dos crerão nele, e virão os romanos e destruirão o nosso templo e a nação”.

Eis os textos que vêm ao caso:

Dt 18,18: Disse o Senhor a Moisés: “Suscitarei ao povo um Profeta como tu, entre os seus irmãos; porei as minhas palavras na sua boca e ele lhes dirá tudo que eu lhes ordenar”.

Mc 8,27-29: “Jesus perguntou a seus discípulos: ‘Quem dizem os ho­mens que eu sou?’ Responderam-lhe: ‘Uns João Batista; outros Elias; e outros, que és um dos Profetas”.

Jo 6,14s: “Vendo aqueles homens o milagre que Jesus fizera (a multi­plicação dos pães), disseram: ‘Este é na verdade o Profeta que está para vir ao mundo’. Jesus, sabendo que viriam arrebatá-lo para fazê-lo rei, reti­rou-se novamente sozinho para o monte”.

d) É preciso explicar o entusiasmo do povo diante da figura de Jesus tanto durante o ministério de Cristo na Galiléia como por ocasião de sua entrada triunfal em Jerusalém. Obser­vem-se os seguintes textos:

Mc 7,36s: Depois da cura do surdo-mudo, “Jesus advertiu os presentes de que a ninguém revelassem o ocorrido; quanto mais, porém, o recomen­dava, mais intensamente o apregoavam. Cheios de admiração, diziam: ‘Tudo fez admiravelmente. Fez ouvir os surdos e falar os mudos”.

Lc 7,16s: Depois da ressurreição do filho da viúva de Naím, “o temor apoderou-se de todos e davam glória a Deus, dizendo: ‘Surgiu entre nós um Grande Profeta e Deus visitou o seu povo’. E a fama deste milagre espalhou-se pela Judéia e pelas regiões vizinhas”.

A entrada de Jesus em Jerusalém se encontra relatada em Mt 21,1-11; Mc 11,1-10. Lc 19,29-38. Seja destacado o texto de Lc 19,37s:

“Começou a multidão dos discípulos a louvar alegremente a Deus em alta voz por todos os milagres que tinham visto, dizendo: ‘Bendito seja o Rei que vem em nome do Senhor! Paz no céu e glória nas alturas!”

e) É preciso explicar o lugar importante que as narrações de milagres ocupam nos Evangelhos sinópticos e no de São João.

f) É preciso explicar o fato de que a pregação dos Após­tolos e discípulos de Jesus fazia constante alusão aos milagres de Jesus para apresentá-lo como Messias e Filho de Deus. Assim

At 2,22: “Disse Pedro aos homens de Jerusalém: ‘Homens de Israel, escutai estas palavras: Jesus de Nazaré, homem acreditado por Deus junto de vós com milagres, prodígios e sinais que Deus realizou no meio de vós por seu intermédio, como vós próprios sabeis…”

At 10,38s: Disse Pedro em casa do centurião Cornélio: “Sabeis como Deus ungiu com o Espírito Santo e com poder a Jesus de Nazaré, o qual andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo demônio, porque Deus estava com Ele. E nós somos tes­temunhas do que Ele fez no país dos judeus e em Jerusalém”.

Assim se encerra o Evangelho de João: “Muitos outros prodígios fez ainda Jesus na presença de seus discípulos, os quais não estão escritos neste livro” (Jô 20,30).

Em suma, todos estes fatos convergentes entre si exigem uma explicação adequada. Ora, caso se admita a realidade his­tórica e concreta dos milagres de Jesus, os diversos fatos recenseados se esclarecem e tornam compreensíveis. Em caso con­trário, ou seja, negada a historicidade dos milagres de Jesus, os fatos apontados ficam enigmáticos ou destituídos de explicação suficiente e proporcional.

Vê-se bem que os milagres de Jesus não são um fenômeno isolado ou periférico na vida do Mestre, mas fazem parte de uma constelação de sinais de igual grandeza. Em Jesus tudo é coerente e consistente: a pessoa, a mensagem e as obras. O valor ou a razão explicativa dessa constelação harmoniosa é a realidade do Filho de Deus, presente entre os homens, como sendo a Palavra e o Poder do Pai.

Estas páginas têm em mira apenas fornecer ao leitor ele­mentos para que reflita concretamente sobre os apregoados mi­lagres de Jesus Cristo. Compreende-se que, à primeira vista, a sã razão tenha suas reservas diante de qualquer portento. É importante, porém, que trate de averiguar e veja, no caso de Jesus, os fundamentos razoáveis em que se possa apoiar a crença nos portentos do Senhor.

Bibliografia:

Além dos livros indicados em PR 110 de 1969, p. 67, seja consignado aqui o estudo de René Latourelle: “Autenticità storica dei miracoli di Gesù. Saggio di criteriologia”. Pontíficia Università Gregoriana, Roma 1972/1973.

Serão úteis também os artigos seguintes:

X. Léon-Dufour, “Vocabulário de Teologia Bíblica”, v. “Milagre”, cols. 583-590. Petrópolis 1972.

A. van den Born, “Dicionário Enciclopédico da Bíblia”, v. “Milagre”, cols. 899s. Petrópolis 1971.

J. B. Bauer, “Dicionário de Teologia Bíblica” 11, v. “Milagre”, pp. 696-701. São Paulo 1973.

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NOTAS:

[1] A titulo de ilustração, sejam citados E. Käsemann, H. Conzelmann, N.A. Dahi, F. Mussner, N. Schürmann, X. Léon-Dufour, W. Trilling, F. Lentzen-Deis, S. Zedda, B. Rigaux, L. Cerfaux, H. K. Mc-Arthur, N. Perrin, J. de Ia Potterie, J. Jeremias, M. Lehmann, J. Caba, D. G. A. Calvert.

[2] Os milagres, no sentido teológico, nunca são mera ostentação do po­der de Deus; o Senhor não faz milagres somente para manifestar sua onipo­tência, mas sempre em vista de uma mensagem a comunicar ou a confirmar aos homens.

[3] Verdade é que o Dr. Marcos Hochheim, dentista de Porto Alegre, pu­blicou um livro intitulado “Cristo, o Hipnotizador”. O teor dessa obra pre­concebida e fantasiosa foi analisado em PR 134/1971, pp. 75-81.

[4] Eis os textos que vêm ao caso:

Dt 18,18: Disse o Senhor a Moisés: “Suscitarei ao povo um Profeta como tu, entre os seus irmãos; porei as minhas palavras na sua boca e ele lhes dirá tudo que eu lhes ordenar”.

Mc 8,27-29: “Jesus perguntou a seus discípulos: Quem dizem os ho­mens que eu sou?’ Responderam-lhe: Uns João Batista; outros Elias; e outros, que és um dos Profetas’“.