Jesus Cristo: quem dizeis que eu sou?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 338/1990)

Em síntese: O presente artigo analisa os Evangelhos, nos quais se vai revelando aos poucos a figura de Jesus Cristo: era a de um judeu, em mui­tos pontos identificado com a sua gente, mas portador de uma mensagem singular, que Ele corroborava com os seus sinais, com a sua firmeza de caráter, seus predicados morais e seu profundo espírito religioso. Os Após­tolos, ao segui-lo, foram paulatinamente percebendo o mistério desse ho­mem, reconhecendo-o finalmente como o Filho do Deus vivo (cf. Mt 16, 16) ou como o próprio Deus feito homem para elevar os homens ao con­sórcio da vida divina. – Após o desaparecimento de Jesus, proclamaram esta Boa-Nova, associando-a indissoluvelmente à notícia da ressurreição de Jesus. Este anúncio, por mais rebarbativo e incrível que parecesse, foi atra­vessando os tempos e as perseguições. Tais fatos levam os homens retos a re­fletir e a pesquisar de mais perto o estranho fenômeno “Jesus Cristo e o Cristianismo”.

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A figura de Jesus, no tempo mesmo dos Apóstolos, suscitava interro­gações: alguns o aceitavam, outros não (cf. Jo 9, 29-34; 10, 39-42; 11, 45­54). Da í a pergunta do Senhor: “Quem, dizem os homens que eu sou?… Quem dizeis que eu sou?” (Mt 16, 13-15). Ora é oportuno, mesmo aos cristãos de hoje, recolocar tais perguntas, abstraindo de sua fé; procurem ponderar os prós e os contras referentes a Jesus. Disto só poderão resultar benefícios pa­ra a profissão cristã dos que já crêem, e luzes para os que não crêem. – É o que vamos fazer, considerando Jesus como mero homem, que viveu outrora e deixou marcas na história. Que tem a sua vida de significativo e caracterís­tico? A resposta será valiosa.

1. Quem é esse Jesus?

Há dois mil anos quase, um homem formulou a pergunta a seus ami­gos: “Quem dizeis que eu sou?” (Mt 16, 15). Através dos séculos a pergunta tornou a ser repetidamente colocada. Era então simplesmente um carpintei­ro que falava a um grupo de pescadores e a um cobrador de impostos. Ves­tia-se pobremente, e os que o acompanhavam, eram pessoas sem grande cul­tura. Não tinham títulos nem prestígio. Exprimiam-se em aramaico e nunca tinham saído do seu país natal. Aquele homem era tido como débil e manso pelos violentos; mas os tutores da ordem estabelecida o julgavam violento; os poderosos escarneciam sua loucura. Dedicava a Deus toda a sua vida, mas os sacerdotes o viam como um blasfemo e violador do sábado. Muitos o se­guiam quando pregava pelas estradas, mas a maioria se interessava mais pelos “feitos maravilhosos ou pelo pão que ele repartia” (cf. Jo 6, 26). Na verda­de, todos o abandonaram quando se levantou a tormenta contra ele, ficando-­lhe fiéis apenas sua mãe e um discípulo.

Na noite daquela sexta-feira, quando se fechou o túmulo sobre o seu cadáver, ninguém daria um centavo por sua memória; ninguém pensava que seu nome ainda seria recordado fora do coração daquela mulher – sua mãe – que se afundava nas trevas da noite e da solidão.

E, apesar de tudo, vinte séculos depois, a história se faz em função da­quele homem; os cronistas – mesmo os que se lhe opõem – afirmam que tal ou tal acontecimento se deu tantos anos antes ou depois dele. Uma terça parte da humanidade, interrogada sobre suas crenças, usa o nome desse homem para se identificar. Quase dois mil anos após a sua morte, continuam a ser publicados anualmente milhares de livros sobre a sua vida e a sua dou­trina. A história desse homem inspirou ao menos a metade das obras de arte que o mundo conhece desde a sua vinda. Todos os anos dezenas de milhares de homens e mulheres deixam a família para segui-lo, como fizeram os seus primeiros amigos.

Quem é esse homem por quem tantos entregaram a vida ou se entrega­ram às mais heróicas façanhas? Há quase dois mil anos, o seu nome está nos lábios de milhões de agonizantes como fonte de esperança. Quem é esse per­sonagem que suscita entrega total ou ódio radical até dentro da mesma famí­lia (cf. Mt 10, 34-37)? Será ele bálsamo que cura ou espada que fere ou mor­fina que aliena?

A resposta a estas perguntas se impõe a todo homem que pense. Com efeito; se esse homem é o que dizem seus discípulos, a existência de cada indivíduo toma rumo e sentido novos; se, porém, ele foi um impostor, gera­ções e gerações até hoje sacrificaram em vão o melhor da sua vida.

O mesmo não se dá com outros personagens da história. Que César (+ 44 a.c.) tenha atravessado o Rubicão ou não o tenha atravessado, pode ser verdade ou mentira, sem que algo mude no curso da vida de alguém. Que Carlos V (+ 1558) tenha sido Imperador da Alemanha ou da Rússia, isso na­da tem que ver com a auto-realização dos homens. Que Napoleão I (+ 1821) tenha morrido, após derrota, na ilha de Elba ou tenha terminado seus dias como Imperador, isto não move nenhum ser humano a deixar sua casa e suas comodidades para se tornar missionário na África ou na Oceania.

O homem, porém, do qual se trata aqui, exige respostas cabais ou ra­dicais. Ele diz que quem nele crê salva a sua vida, e quem o despreza, despre­za a sua própria vida (cf. Mt 10, 38; 16, 24; Jo 12, 25; Lc 9, 48). Por conse­guinte, os caminhos dos homens mudam de acordo com a resposta que dêem às perguntas atrás formuladas.

2. Num recanto do Império…

Quando nos voltamos para a época e o mundo de tal homem, a surpre­sa que experimentamos, é a de verificar que os poderosos de então mal tive­ram consciência da sua existência.[1]

Roma fizera de muitos povos uma grande família, num Império po­deroso e bem administrado. Após décadas de terrível violência, Augusto conseguira relativa paz, da qual falavam os poetas; a situação econômica pa­recia próspera; a cidade de Roma resplandecia de mármores. Mas através da máscara de um Império feliz grassava séria crise do mundo pagão; havia a po­lítica de “compadres”; a corrupção moral se associava ao ceticismo filosófi­co e religioso, de modo que ninguém acreditava em valores mais nobres.

Ora num rincão do Império estava situado o povo judeu, desprezado pelos romanos. Cícero (+ 43 a.C.) ria-se do Deus dos israelitas, dizendo que “devia ser um deus muito pequeno, pois lhes dera uma terra tão pequena como pátria”. Tácito (+ 120 d.C.) considerava os judeus “seres repulsivos e imbecis”. Apolônio de Tiana (+ 96 d.C.) os tinha como “os menos dotados de todos os bárbaros (= estrangeiros), razão pela qual não colaboraram com nenhuma invenção para o progresso da civilização”.

Esse pequeno país, que de fato não oferecera nenhuma invenção mate­rial ao mundo, ia contribuir com a maior novidade para a história do gênero humano: ia apresentar a mais pura noção de Deus e o mais belo programa re­ligioso; ia constituir-se em fronteira pela qual a humanidade se limitaria com a eternidade.

A Palestina não era um país de luxo: seu tamanho era tão pequeno que S. Jerônimo não ousava dizer sua extensão para não dar ocasião de zom­baria aos pagãos; tinha clima quente e, em parte, desértico. No setor político ainda menos motivos de entusiasmo apresentava: era a Palestina ocupada por um invasor que controlava até os centavos dos respectivos habitantes. A ten­são era grande: nas montanhas havia guerrilheiros, que de vez em quando atacavam os ocupantes; em suas andanças o jovem Jesus terá tido ocasião de encontrar cruzes das quais pendiam os revoltosos condenados. Em tais cir­cunstâncias, o povo judeu estava dividido: havia os puritanos ou nacionalis­tas, avessos aos romanos (fariseus), os grupos radicalmente violentos (os ze­lotas), os colaboracionistas (herodianos e saduceus) e os que esperavam a so­lução do problema por uma próxima intervenção de Deus (essênios). Fora dos Partidos, havia “o povo da terra”, ovelhas sem pastor (cf. Mt 9, 36).

3. A espera de Deus

Essa população dividida não deixava de ter, ao menos, uma nota co­mum: os judeus sabiam ser um povo diferente dos demais, porque, chamados por Deus para desempenhar importante tarefa. Eram depositários de uma Aliança, segundo a qual Deus não abandonaria seu povo, mas o faria berço de um Salvador, que daria a Israel a hegemonia sobre os demais povos.

Tratava-se, pois, de um povo sustentado pela esperança. Através dos séculos, profetas haviam surgido que anunciavam a vinda do Salvador. Os tempos em que Jesus viveu, foram um período em que fervilhava a expecta­tiva de Israel: os homens tentavam entrever a prometida figura do Messias que se aproximasse; por isto precipitavam-se atrás de um chefe que se disses­se Iluminado pelo Espírito: seria ele o Messias? Mais de uma vez foram enga­nados (cf. At 5, 36s); os propalados chefes eram políticos embusteiros. Mas Israel não perdia as esperanças. Continuava procurando.

4. Um Profeta à margem do Jordão

Naquela época apareceu à margem do Jordão um homem misterioso, ascético, chamado João, que impressionava pelo seu teor de vida e pela seve­ridade de sua pregação. Tinha abandonado a vida cômoda para estabelecer­-se no deserto, onde praticava a mais rigorosa pobreza. Isto não surpreendia os judeus, pois muito perto de João se encontravam os essênios, monges que levavam vida semelhante. A novidade que esse homem apresentava, era o anúncio de que o Messias estava às portas; ele mesmo não era o Salvador, pois o Salvador era muito maior do que João, a tal ponto que João não seria digno de desatar a correia da sandália do Messias (cf. Jo 1,27). Era, pois, necessário que todo o povo se preparasse, e preparasse os caminhos, para po­der receber o Esperado.

João praticava um rito singular: os fiéis entravam no rio Jordão em si­nal de arrependimento, e a água era derramada sobre suas cabeças como se os purificasse dos pecados.

Um dia, entre os candidatos ao Batismo, apareceu um homem que, à primeira vista, nada tinha que chamasse especialmente a atenção. Na idade de trinta anos, seu rosto era nobre, a estatura robusta, o olhar enérgico, es­pelho de grande força de vontade. Vestia-se, porém, como todos; falava a língua de todos, e desceu às águas como todos. Ao vê-lo, João perguntou: “Sou eu que devo ser batizado por ti, e tu vens a mim para que eu te bati­ze?” (Mt 3, 14). E pouco depois acrescentou: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29.36).

Era realmente o Anunciado, o Esperado, o Salvador? Um primeiro grupo de homens começou a segui-lo. Teve assim início a aventura que pro­vocaria a vertente da história.

5. O impossível retrato

Como era fisicamente o homem que João batizara e identificara? O mundo estaria interessado em possuir uma estátua dele, como possui as de Alexandre Magno, Sócrates, Platão, Aristóteles… Ele teria sido retratado pelos pintores ou escultores da época se tivesse nascido em Roma ou na Gré­cia. Mas, para os judeus, as imagens eram algo pouco usual e mal visto. Por isto, do homem mais apresentado na arte sacra de todos os tempos não te­mos uma só imagem que goze de autenticidade.

Os próprios evangelistas não se preocuparam com os traços físicos de Jesus: não nos dizem se era alto ou baixo, louro ou moreno, de estatura for­te ou débil. Muito se sabe a respeito do seu modo de pensar e sentir; ne­nhum traço, porém, do seu semblante… Apenas se pode dizer, segundo São Paulo, que se comportou exatamente como um homem em tudo, exceto no pecado (cf. FI 2, 7; Hb 2, 17; 4, 15). A descrição da face de Jesus atribuída a Flávio Lêntulo, procônsul romano, é medieval e espúria ou destituída de credibilidade.

O Sudário de Turim, cuja autenticidade continua muito provável, reve­la um Jesus majestoso em sua simplicidade de condenado à flagelação, à co­roação de espinhos e à morte de Cruz. Aliás, era necessário que fosse robus­to para poder palmilhar as estradas da Palestina de Norte a Sul e de Sul a Norte e para passar noites em oração ou abrigado em grutas ao redor de Jerusalém.

6. Estupendo equilíbrio

O corpo sadio daquele homem era vivificado por uma alma também sadia, resultando daí uma personalidade notavelmente equilibrada. Quem examina as páginas da história, verifica que quase todos os grandes homens tiveram algo de anormal, de louco ou de visionário. Ora nada disto aparece em Jesus. Vive sofrendo a constante oposição dos fariseus, mas não perde a calma interior. É membro de um povo passional, mas combina essa índole com impressionante serenidade que desconcerta seus inimigos; assim, por exemplo, quando estes o quiseram colher em armadilha: Jo 7, 53-8, 11 (os fariseus lhe apresentaram uma mulher adúltera, que eles queriam apedre­jar…); Mt 22, 15-22 (“é lícito pagar o tributo a César ou não?”); Mt 22, 23­33 (os saduceus perguntam de quem será esposa no dia da ressurreição a mulher que teve sete maridos sucessivos na vida presente); Lc 10, 25-37 (um legista quis embaraçar Jesus perguntando-lhe qual seria o maior manda­mento da Lei de Moisés…).

O escritor racionalista e crítico Adolf von Harnack assim se refere à fi­gura de Jesus Cristo:

“A nota dominante da vida de Jesus é a de um recolhimento silencio­so, sempre igual a si mesmo, sempre tendendo ao mesmo objetivo. Incumbi­do da mais elevada missão, tem sempre olhos e ouvidos abertos para todas as impressões da história que o cerca. Que prova de paz profunda e de absolu­ta segurança! Viagens e albergues para viandantes, festas de núpcias, ritos de enterro, os palácios dos vivos e os sepulcros dos mortos, o semeador, o ceifa­dor, o vinhateiro, os trabalhadores desocupados nas praças, o pastor à procu­ra das ovelhas, o mercador em busca de pérolas, a mulher no lar a lançar fer­mento na farinha para o pão, a que perdeu a sua dracma, a viúva que se quei­xa no tribunal perante o juiz iníquo, o alimento corporal e as relações entre Mestre e discípulos, a pompa dos reis e a ambição dos poderosos, a inocên­cia das crianças, a diligência maior ou menor dos servidores…, todas essas imagens davam vida aos seus discursos e os tornavam acessíveis a todos os ouvintes… Além disto, as suas palavras revelavam, em meio à maior tensão, paz interior e alegria espiritual tais como nenhum profeta as experimentara. Ele que não tinha uma pedra sobre a qual reclinasse a cabeça, não falava co­mo um homem que houvesse rompido com tudo, como um herói de ascese, como um profeta extático, mas como um indivíduo que conhece a paz e o repouso interior e pode dá-lo aos outros. Sua voz possui as notas mais pode­rosas; coloca os homens frente a uma opção decisiva, sem deixar escapatória e, não obstante, ele apresenta as coisas mais temíveis como se fossem as mais elementares e delas fala como se fossem o que há de mais natural; as mais terríveis verdades, ele as colocava dentro de linguagem semelhante à da mãe que fala ao seu filho”.

Na verdade, impressiona a firmeza que Jesus tem em si mesmo; baseia-­se em sua extraordinária lucidez de juízo e em sua inquebrantável força de vontade. Jesus é realmente um homem que sabe o que quer, e está disposto a realizá-lo sem oscilações. Em sua vida pode ter havido – no horto das Oli­veiras – um momento de temor, mas não de dúvida ou de incerteza. Sua vi­da foi uma flecha dirigida à sua meta, um Sim taxativo à sua missão.

É al­guém capaz de arrancar um olho seu se este olho o escandaliza (cf. Mt 5, 29s), alguém que não aceita quem põe a mão no arado e olha para trás (cf. Lc 9, 62). Já aos doze anos sentia-se envolvido pelas exigências de sua mis­são quando disse a Maria e José: “Não sabíeis que eu devo ocupar-me das coisas de meu Pai?” (Lc 2, 49). É oportuno pensar que o desfecho da prega­ção de Cristo era a morte atroz na Cruz conhecida e pressentida, para se ter noção mais nítida das dimensões da intrepidez da sua vontade.

Todos os seus anos de vida pública, Jesus os viveu entre os homens, cercado de discípulos, mas sempre só, porque não compreendido por eles. A sua figura era atraente e, ao mesmo tempo, misteriosa – o que criava certa distância em relação aos demais homens e lhes impunha uma espécie de res­peitoso temor.

Quem examina em profundidade a pessoa de Jesus, verifica que em seu coração tudo tinha seu tempo, sua oportunidade e sua medida; era vio­lento, quando necessário, e suave; temível aos inimigos, mas amigo das cri­anças; cheio de ternura para com os pecadores, mas nunca sentimental; dado a opções radicais, mas também realista e conhecedor da fraqueza humana. Parecia viver simultaneamente no tempo e na eternidade, de modo que se encontrava plenamente à vontade na oração, mas tinha os pés firmes na ter­ra; voltado para o transcendental, misterioso, mas nunca sonhador exaltado; impressionante por seus gestos, mas nunca teatral; diferente dos que o cerca­vam, mas nunca um exibicionista; amante da vida, mas disposto a entregá-la para não desdizer suas idéias; não suportava os hipócritas, mas era compre­ensivo para com todos os que pecavam por fraqueza humana.

7. Homem aberto

O equilíbrio psicológico de Jesus não era o de um estóico. Os filósofos de sua época proclamavam a apatia em relação a todos os possíveis afetos; tentavam dominar a si mesmos a ponto de nunca se emocionar. Tais homens tendiam à soberba e ao egoísmo. Ora Jesus era precisamente o contrário.

Os homens se dividem em egoístas e generosos, homens que têm o seu centro em si mesmos, fechados sobre si, e homens que o têm fora de si, aber­tos para outros valores. Nesse contexto, Jesus era totalmente aberto,… aberto para os demais homens e aberto para Deus.

A abertura para Deus é o que melhor define sua vida e sua figura; é a força motriz de toda a sua atividade. Ninguém jamais experimentou uma re­lação com Deus tão viva, tão pessoal quanto Jesus; a oração que ele realizava por vezes a noite inteira (cf. Lc 6, 12) era a expressão consciente do contato incessante com Aquele que o tinha enviado.

Aliás, o título de Enviado com que Jesus se identificava (cf. Jo 5, 36s; 6, 44-46. 57; 7, 16.28; 8, 16…) significava bem a sua origem transcendental e a identificação do seu pensar e querer com o Pai Celeste; isto aparece tanto no episódio do menino de doze anos atrás mencionado (cf. Lc 2, 41-50) quanto no final de sua vida, quando exclamou que “tudo estava consuma­do” (Jo 19, 30) ou que tudo de que fora incumbido se havia executado.

To­do o segmento de vida intermediária foi o cumprimento da vontade do Pai (cf. Jo 6, 38). Perante esta desapareciam os demais imperativos ou atrativos: as cadeias do dinheiro, as honras da sociedade, os aplausos dos homens, a fama dos milagres… O Pai lhe havia assinalado “a sua hora” e Jesus ia ao encontro desta como uma flecha dirigida ao seu alvo; cf. Jo 2, 4; 7, 30; 8, 20; 12, 23.27; 13, 1; 17, 1.

Realmente em toda a história da humanidade não se conheceu trajetó­ria tão decidida, tão constantemente voltada para o alto. Um Jeremias, um Paulo, um Agostinho, um Buda, um Maomé apresentaram desníveis, sacudi­delas violentas, mudanças e derrotas interiores. Somente a vida de Jesus se desenvolveu sem um deslize psicológico e sem um desvio moral. Tanto na sua infância quanto na sua vida pública e na morte brilhou incontestada no horizonte a luz da vontade de Deus.

8. O Homem para os Outros

Se Jesus teve tanto zelo pelas coisas de seu Pai, ainda teve tempo e in­teresse para ocupar-se com as necessidades e misérias dos homens que o cer­cavam?

A pergunta é importante, pois hoje em dia as pessoas devotas – espe­cialmente os cristãos – são acusados de tanto olhar para o céu que acabam por esquecer os que sofrem ao seu lado na terra. O homem moderno repudia a alienação ou a religião que desvie o indivíduo do cumprimento de suas ta­refas na terra.

Pode-se dizer que Jesus entrou decididamente dentro da massa e da miséria humana. Se foi aberto para Deus Pai, foi aberto também para os ho­mens, seus irmãos, e isto não à guisa de apêndice, mas em cumprimento de parte essencial de suas tarefas.

Com efeito, o dínamo da vida de Jesus era o amor, amor total e sem exceções. Um amor de realismo pleno, que não é nem o entusiasmo ingênuo de quem diviniza o humano, nem o fanatismo de quem o maldiz. Cf. Mt 12, 15-21; Mc 6, 34.

Muitos outros sábios e filósofos discorreram sobre a condição humana. Alguns a quiseram revolucionar, mas ninguém entrou tão a fundo na fragili­dade do homem como Jesus; ninguém assumiu tão radicalmente a dor do homem, o seu cansaço, as próprias conseqüências do pecado, que Jesus fez suas.

Em Jesus há surpreendente mistura de serviço a um elevado ideal e de atenção a minúcias. É freqüente entre os gênios mergulhar de tal modo na sua tarefa que chegam a ignorar aqueles que os cercam. Olham tão alto que pisam as formigas do caminho. Jesus não foi assim. Pensava tanto em con­verter o mundo, mudando o seu destino, quanto em acariciar crianças, em chorar por seus amigos ou em dar alimento aos que o seguiam para escutar sua palavra; cf. Lc 9, 11-17. Nunca um chefe de tão elevada categoria se ocu­pou com coisas tão comezinhas. Nunca alguém tão voltado para o espiritual deu tanta atenção aos problemas materiais Ele esteve realmente com os homens.

… E com todos os homens. Especialmente com os mais necessitados: dedicou-se muito especialmente aos sofredores, aos pecadores, a mulheres da vida, aos cobradores de impostos (cf. Mt 21, 3-15). Chefe que veio para ser­vir e não para ser servido (cf. Mt 20, 24-28) e que se ajoelhou, como escra­vo, para lavar os pés de seus discípulos (cf. Jo 13, 1-5).

O amor de Jesus aos homens não foi um vago amor à humanidade; foi amor a cada qual das pessoas que o cercavam. Para muitos grandes líderes, o amor vem a ser um vago humanitarismo. Declaram amor à humanidade in­teira, mas são insuportáveis para aqueles que vivem a seu lado. São mais preocupados com o rebanho humano do que com as ovelhas que o com­põem; julgam mesmo natural que as ovelhas sofram para servir à coletividade num hipotético futuro mundo melhor. Jesus é o Bom Pastor que conhece cada uma de suas ovelhas (cf. Jo 10, 1-18) e estaria disposto a deixar noven­ta e nove ovelhas felizes para recuperar a desgarrada; cf. Lc 15, 4-7.

9. Amar por amar

Outra característica que diferencia o amor de Jesus do que se costuma geralmente ver na sociedade, é o seu absoluto desinteresse de qualquer van­tagem pessoal. Jesus não é um político que serve ao povo para acabar servin­do-se dele. Foge das honrarias, pede aos discípulos que não se gloriem de seus feitos (cf. Lc 10, 20). Sabe, aliás, que dos homens não receberá outra resposta senão ingratidão, abandono e morte. Todavia isto não o impede de se dar generosamente. Amar era para Jesus tão natural quanto queimar o é para a chama. Era o irmão universal, que não podia não amar.

Por isto alguns escritores modernos definiram Jesus como “o homem para os outros”, o homem que não guardou para si nenhuma gota de seu sangue, que renunciou à própria vida para dar vida aos outros, o homem “expropriado para a utilidade pública”.

10. A Pergunta Decisiva

Assim chega o momento da pergunta decisiva: Esse homem extraordi­nário é simplesmente um homem ou quem examina a sua vida em profundi­dade se vê obrigado a concluir com o centurião que o viu morrer: “Real­mente esse homem era Filho de Deus!” (cf. Mc 15, 39)?. No começo destas reflexões afirmava-se que a resposta à pergunta: “Quem é Jesus?” é tão deci­siva que quem não encontrou a resposta é desafiado, pela história, a procurá­-la, pois o Sim ou o Não ditos a Jesus definem os caminhos dos homens.

Com efeito. Se Jesus não é mais do que um homem maravilhoso ou um gênio excepcional, um líder espiritual, bastará que os simpatizantes o admirem, acatem e aprendam seus ensinamentos. Mas, se é Deus na carne humana, tudo muda; altera-se o conceito de existência humana, e surge uma nova visão de Deus; já não será possível furtar-se a tomar partido por ele ou… contra ele.

Na verdade, diante de Jesus as posições dos pensadores variam. Os na­cionalistas do século XIX teceram uma autêntica teia de aranha em seus ar­gumentos sutis para se convencer de que o Evangelho é explicável por fato­res naturais sem contar com a loucura de que Deus se haja feito homem em Jesus de Nazaré.

Por isto, nos escritos de alguns racionalistas encontram-se calorosos elogios a Jesus-homem: foi o ser humano que aprofundou como nenhum outro o conceito de Divindade, o mais importante dos profetas, o mais ele­vado reformador moral que a história tenha conhecido. Conseqüentemente concluía Renan: “Quaisquer que sejam os fenômenos a se registrar no futu­ro, ninguém sobrepujará Jesus. O culto de Jesus rejuvenescerá constante­mente; a sua história continuará a suscitar lágrimas sem conta; o seu martí­rio enternecerá os corações mais nobres e todos os séculos proclamarão que entre os filhos dos homens ninguém nasceu que se lhe possa comparar”.

Tantos elogios parecem acumular-se precisamente para que os autores se furtem ao salto definitivo. Elogiam a humanidade de Jesus para não ter que reconhecer algo que reviraria a vida de quem elogiasse a realidade de Deus feito homem. Interessante é que quem em nossos dias relê as obras dos racionalistas do século passado, tem a impressão de que são mais imaginati­vas do que parecem ser os próprios Evangelhos. Para negar o sobrenatural em Jesus, vêem-se obrigados a tantos exercícios de retórica que os seus dizeres perdem credibilidade.

Para outros racionalistas, a história de Jesus seria a de um hábil chefe de bandoleiros revolucionários ou a de algum prestidigitador fascinante, a de um parapsicólogo arrebatador de massas ou a de um doente mental obceca­do por um sonho mirabolante ou a de um megalomaníaco que conseguiu seduzir uns tantos seguidores, também estes alucinados ou doentes mentais…

Acontece, porém, que esse doente obsessivo ou hábil prestidigitador foi o maior homem, o de maior repercussão na história universal, e as deze­nas de doentes mentais que o seguiram desencadearam o mais nobre e dinâ­mico movimento religioso, cultural e humanitário registrado em todos os séculos. Os milagres de Jesus, para os racionalistas, não foram milagres, mas milagrosamente Jesus, líder iludido e ilusor, tornou-se aceito e acreditado no mundo inteiro. Jesus, levado por sua “idéia fixa” de ser Filho de Deus, teria, na verdade, movido os homens para os mais nobres ideais éticos nunca antes e depois apregoados.

Não seria o caso de reformular a resposta racionalista à pergunta: “Quem é Jesus Cristo?”. E se fosse realmente o Filho de Deus ou Deus feito homem?…

11. Responde Jesus

A via mais simples para responder a tal pergunta será a de ouvir o pró­prio Jesus a respeito. Que dizia Ele de si mesmo? Como se definiu por suas palavras e por sua conduta de vida?

No começo de sua missão pública Jesus evitou exprimir com toda a clareza a sua Divindade, pois esta atitude teria parecido blasfema aos judeus, povo estritamente monoteísta. Todavia no decorrer da sua vida, principal­mente em suas últimas etapas, Jesus revelou gradualmente este traço de sua personalidade ou a sua radical unidade com Deus. Progressivamente apresen­tou-se como maior do que todos os profetas, como senhor do sábado (cf. Mc 2, 27) e mais nobre do que o Templo de Deus em Jerusalém (cf. Mt 12, 6), como alguém que podia demonstrar com milagres seu poder infinito so­bre a própria morte (cf. Jo 11, 41-43; Mt 9, 2-8; Lc 5, 17-26). Jesus centra­lizou em sua pessoa a sua própria mensagem (cf. Mt 16, 24s) e pediu radical adesão à sua pessoa, adesão tal que só a Deus se presta (cf. Mt 10, 37-39). Do compromisso dos homens frente a Jesus presente em cada irmão sofre­dor depende a sorte definitiva de cada um; Jesus é o critério de julgamento (cf. Mt 25, 31-46). Quem não cresse nele, seria julgado; quem cresse nele, salvaria a sua alma (cf. Jo 3, 18s). Com outras palavras ainda: Jesus tinha consciência de ser muito mais do que um homem, muito mais do que um super-homem. Procedia como só procederia quem soubesse ser um só com Deus (cf. o perdão dos pecados corroborado por um milagre em Mc 2, 1-12). É impossível exaltá-lo como homem sem reconhecer a sua Divindade; se era mero homem, deve-se dizer que era um louco, um orgulhoso, um megaloma­níaco. Toda a vida e a mensagem de Jesus perdem o seu sentido ou se con­vertem em arrogância despropositada se se nega a sua Divindade ou a sua consciência de ser um só com Deus.

Precisamente tal consciência de ser “o Unigênito do Pai” (cf. Jo 3, 16) foi causa das sérias altercações que Jesus teve com os doutores do judaísmo nas últimas semanas de sua vida. Exclamou então: “Meu Pai e eu somos um só” (Jo 10, 30); “Saí do Pai e vim ao mundo; de novo deixo o mundo e vol­to para o Pai” (Jo 8, 42; 16, 28); “Não estou só, mas o Pai que me enviou, está comigo”” (Jo 8, 16); “Se me conhecêsseis, conheceríeis também meu Pai” (Jo 14, 7); “Quem me vê, vê o Pai… Não crês que o Pai está em mim e eu estou no Pai?” (Jo 14, 9s); “Ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo 14, 6), porque “tudo o que o Pai tem, é meu” (Jo 16, 15).

Foi isto que Jesus pensou e proclamou. Porque o dizia, havia de mor­rer. Ora nenhum indivíduo sadio morre por um sonho.

Está claro que, se procurássemos no Evangelho fórmulas tão nítidas como as que se encontram nas definições de Concílios e nos tratados teoló­gicos, não as acharíamos; Jesus não disse em linguagem filosófica que há uma só natureza divina em três Pessoas e que Ele é a segunda Pessoa da SS. Trindade, consubstancial ao Pai; não disse que, além da natureza divina, ele possuía a natureza humana assumida no seio de uma Virgem Mãe… Todavia também é claro que a quem procura saber o que Jesus pensava a respeito de si mesmo, se impõe com muita evidência a conclusão de que Jesus sabia ser o Filho de Deus em sentido absolutamente único, pessoal e literal. – Con­seqüentemente um dilema se impõe: ou Ele era realmente o que dizia, ou era louco… Mas crer que um louco tenha conseguido impressionar de tal modo seus discípulos e revolucionar a história e a face da terra é simplório; é fuga da evidência; é postulado de um milagre maior do que o milagre de Deus feito homem. Mais plausível e racional é crer no mistério da Encarna­ção, que Jesus afirmava.

Eis as reflexões a que leva uma leitura atenta dos Evangelhos e a consi­deração dos fatos históricos ocorridos entre a vinda de Cristo e nossos dias.

12. Palavra final

Em suma, pode-se dizer que “o fenômeno Jesus Cristo” é o maior fe­nômeno da história. Isto se torna mais evidente ainda quando se pensa que a mensagem de Jesus Cristo sempre foi proclamada pelos seus discípulos associada à da sua ressurreição. Com efeito, diz São Paulo: “Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia é a vossa fé… Se Cristo não res­suscitou, ilusória é a vossa fé” (1Cor 15, 13.17). Ora a ressurreição era propo­sição dificílima para todos os pagãos que a ouviam. Diz Tertuliano (+ 220 aproximadamente) que mesmo os pagãos mais divergentes entre si se harmo­nizavam para contestar a noção de ressurreição de um morto. Não obstante, a mensagem de Jesus Cristo atravessou e superou essa oposição. Atravessou e superou duras perseguições até 313 (Edito de Milão, Paz concedida por Constantino aos cristãos), de tal modo que, quando Juliano o Apóstata ten­tou restaurar o paganismo em 361-363, teve que reconhecer finalmente: “Venceste, Galileu!”

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NOTA:

[1] Não há dúvida, citam-se documentos de Plínio o Jovem (112). Tácito (116) e Suetônio (120), escritores romanos que referem a existência de Cris­to e de seus discípulos. Ver a propósito Curso de Iniciação Teológica por Correspondência, Módulo 3, Caixa postal 1362, 20001 Rio (RJ).