Jesus Cristo: quem dizem os homens que é o Filho do Homem?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 174/1974)

Em síntese: A figura e a mensagem de Cristo estão, hoje em dia, muito em foco não somente entre jovens, mas também entre teólogos. Estes, nem sempre satisfeitos com as clássicas fórmulas da Cristologia, têm pro­curado penetrar o assunto com o auxílio de dados da filosofia contempo­rânea, visando a tornar-se mais compreendidos pelo homem de hoje.

Em conseqüência, podem-se assinalar sete orientações cristológicas em nossos dias, a maioria das quais surgiu em ambientes protestantes:

a) a síntese teândrica (que é fiel ao Concilio de Calcedônia, 451) e corresponde até hoje ao pensamento oficial da Igreja Católica;

b) a Cristologia teocêntrica de Karl Barth e Emil Brunner

c) a Cristologia existencialista de Paul Tillich e Rudolf Bultmann;

d) a Cristologia secularista de Dietrich Bonhoeffer, Jolhn Robinson, Paul van Buren, Piet Schoonenberg;

e) a Cristologia histórica de Oscar Cullmann, Wolfhart Pannenberg; f) a Cristologia escatológica de Jürgen Moltmann e Karl Braaten;

g) a Cristologia política de Johannes Baptista Metz e Richard Schaull.

A raiz desta diversidade de orientações é o problema gnoseológico: deve-se ilustrar o mistério de Cristo somente com a razão ou somente com a fé? Quem adota o primeiro alvitre, cai no neo-positivismo e se detém quase exclusivamente sobre o aspecto humano de Jesus Cristo. Quem opta pelo outro alvitre, incide no fideísmo e não leva em conta suficiente o as­pecto humano de Cristo.

Na verdade, somente a síntese entre razão (instrumento de base, indis­pensável) e documentos da fé (que têm valor decisivo) pode permitir a ela­boração de autêntica Cristologia. É o que faz ainda hoje a síntese teândrica recenseada neste artigo.

***

Comentário: A figura de Jesus Cristo está hoje em dia muito em foco não somente entre os jovens, mas também entre os teólogos católicos e protestantes. Estes, incitados pelo espírito crítico e as correntes filosóficas atuais, procuram exprimir para o mundo a figura de Cristo da maneira que o homem moderno melhor compreenda. Em conseqüência, os fiéis cató­licos se vêem diante de livros ou dizeres novos a respeito de Jesus Cristo, sem saber como se orientar. Eis por que parece útil oferecer ao leitor uma visão de conjunto das diversas

posi­ções dos teólogos contemporâneos concernentes a Jesus Cristo. É principalmente nos ambientes protestantes que as sentenças se multiplicam; todavia elas não deixam de influir ora mais, ora menos sensivelmente sobre o pensamento católico. Foi pre­cisamente este fato que motivou a Declaração «Mysterium Filii Dei» da Congregação para a Doutrina da Fé a respeito da SS. Trindade e da Encarnação, com data de 21 de fevereiro de 1972.

Distinguiremos sete posições cristológicas que encontram seus arautos entre os estudiosos do século XX: 1) a teândrica; 2) a teocêntrica; 3) a existencialista; 4) a secularista; 5) a histórica; 6) a escatológica; 7) a política.

Estamos conscientes de que toda esquematização corre o risco de ser rígida demais. Dado o estilo geral de PR, as páginas que se seguem, terão que se limitar ao essencial.

Pro­curaremos evitar vocábulos demasiado técnicos – o que toda­via não será de todo possível.

1. Cristologia teândrica

1. Esta é a posição católica tradicional, definida pelo Concílio de Calcedonia (451), após quase 150 anos de disputas teológicas, em que o arianismo, o apolinarismo, o nestoria­nismo e o monofisismo lançavam teses errôneas a respeito de Jesus Cristo. O Concílio de Calcedonia afirmou que Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, não porque em Cristo haja dois Eu ou duas pessoas, mas, sim, porque a segunda Pes­soa da SS. Trindade (Deus Filho), sem perder a natureza di­vina, se uniu à natureza humana: deu-se assim um tipo de união dita «hipostática» (ou união de duas naturezas em uma só pessoa, hypóstasis, em grego), união também chamada «teândrica» (Theós = Deus; anér, andrós = homem, em grego).

2. Entre os teólogos católicos modernos, que mais se têm dedicado à Cristologia,

assinala-se o Cardeal Pedro Parente, autor de livros como «L’io di Cristo», Brescia 1951; «Itinerario teologico ieri e oggi», Florença 1968; «Teologia di Cristo», 2 vols., Roma 1970/71.

Adotando a fórmula de Calcedônia («duas naturezas e uma só pessoa» em Cristo), o Cardeal Parente afirma que não se pode ilustrar satisfatoriamente o mistério da Encarnação se se utiliza apenas o conceito psicológico de pessoa, muito comum na filosofia contemporânea (a pessoa reduzir-se-ia à consciência de si mesma ou à liberdade de arbítrio). Por isto recorre à noção ontológica de pessoa, proposta pelos escolásticos. Esta inclui entre os seus elementos constitutivos: natureza específica e subsistência

Em síntese, eis o pensamento de Parente:

“Absolutamente um é o sujeito, o Eu, que fala e age em Cristo, ora como Deus, ora como homem. Esse Eu misterioso, sem solução de conti­nuidade, passa do divino ao humano, do humano ao divino, atribuindo a si as ações próprias do divino e do humano; Ele mostrava estar em casa própria tanto na esfera do Divino como na esfera do humano. Nada há no Evangelho que leve a admitir em Cristo um sujeito[1] humano, subsistente em si, autônomo, no qual viva um sujeito divino como Hóspede invisível… Por conseguinte, Cristo, segundo o Evangelho, é um Ser Teândrico, no qual a dualidade da natureza divina e da humana conflui na unidade de uma só Pessoa, que só pode ser a divina pessoa do Verbo” (“Teologia di Cristo”. Roma 1970, vol. I, p. 224).

Entre os outros teólogos ocidentais que adequadamente ex­planaram o teandrismo de Cristo, citam-se ainda Romano Guar­dia [2] e Marie D. Chenu.[3]

Entre os orientais ortodoxos (separados de Roma), merece destaque Georges Florovski, que toma como base de seus estu­dos a fórmula de Calcedônia. Insiste em que a humanidade de Cristo não tinha sua personalidade própria, mas subsistia pela segunda Pessoa da SS. Trindade; em Cristo, portanto, havia um só Eu (divino), que se exprimia ora como Deus, ora como homem. Por conseguinte, pode-se dizer que Deus morreu na cruz, não como Deus, mas mediante a natureza humana por Ele assumida. Mais: a morte de cruz não foi imposta a Jesus, nem pela traição de um discípulo, nem pela fúria da plebe, nem pela covardia de Pilatos, mas veio a ser simplesmente a conse­qüência de uma decisão livremente tomada por Jesus.

Eis, porém, que muitos estudiosos contemporâneos julgam que a linguagem do Concílio de Calcedônia é estranha e incom­preensível ao homem de hoje. Por isto procuram exprimir o mistério de Cristo a partir de novos enfoques filosóficos e teo­lógicos.

Vejamos, pois, as sentenças ditas «de Cristologia teocêntrica».

2. A Cristologia teocêntrica

São assim chamadas as posições que em Cristo acentuam com ênfase preponderante a Divindade. Karl Barth e Emil Brunner, protestantes, chegaram a conceber tais sentenças em reação contra o protestantismo liberal do século XIX, que, detendo-se demasiadamente na humanidade de Jesus, tendia a reduzir a figura de Cristo à de um personagem religioso excep­cional ou à de um grande moralista.

2.1. A posição de Karl Barth († 1968)[4]

Este pensador calvinista suíço esmerou-se, através de seus escritos, em realçar a transcendência e soberania absoluta de Deus. O homem, afirma Barth, não pode conhecer o Criador através da razão natural ou pelo espelho das criaturas. Da mesma forma, não pode perceber a Divindade de Cristo me­diante a consideração da humanidade de Jesus. Adotando o conceito pessimista que Lutero e Calvino tinham da natureza humana, Barth conclui que esta é pecadora ou mesmo «peca­do»; também em Cristo a natureza humana era «carne» ou «pecado». Por conseguinte, deve-se dizer que Deus, em Cristo, se revelou velando-se; a Palavra de Deus se manifestou ocul­tando-se. Donde se segue que ninguém reconhece a Divindade de Cristo a não ser por gratuito dom do Pai celeste ou pela fé.

Postas estas premissas, Barth aceita tranqüilamente tudo o que a S. Escritura refere a propósito de Cristo: nascimento virginal, milagres, ressurreição. O nascimento virginal, diz ele, significa, para nós homens, que Deus se revela gratuita e libe­ralmente, sem que o homem se possa vangloriar de haver con­corrido para tanto.

2.2. Emil Brunner (* 1889­ )

Este teólogo protestante alemão, em sua obra «Mittler» (Mediador), Zürich 1928, afirma que, para conhecer Cristo, é preciso, antes do mais, reconhecer a sua Divindade, pois cons­titui o segredo da sua personalidade: «É tese capital da fé cristã que o eterno Filho de Deus assumiu a natureza humana, e não que o homem Jesus recebeu a Divindade» («Mittler», p. 281). Por conseguinte, Brunner expõe primeiramente a dou­trina relativa à Divindade de Cristo; a seguir, trata da Encar­nação e, por fim, da humanidade do Filho de Deus. Quem se decide em favor de Cristo, só o faz movido pela fé, assevera Brunner.

Todavia o pensamento deste autor evoluiu, chegando mesmo a se exprimir em termos radicalmente opostos. Cf. «Dogmatik», vol. II: «Die christliche Lehre von Schõpfung und Erlõsung», Zürich 1950.

3. Cristologias existencialistas

A primeira Guerra Mundial (1914-1918) concorreu para lançar descrédito sobre os sistemas filosóficos dos últimos sé­culos: idealismo, voluntarismo, positivismo, intuicionismo, espi­ritualismo, pragmatismo… Em lugar destes, o existencialismo veio a ser a atitude filosófica mais comum, atitude que bem exprimia a angústia em que se debatiam os povos acabrunha­dos pela guerra. O existencialismo rejeita elevadas considera­ções metafísicas, assim como a tendência a construir sistemas de pensamento; concebe, antes, a filosofia como minuciosa análise da experiência de cada dia em todos os seus aspectos (individuais e sociais, teóricos e práticos.. .).

Em breve, alguns teólogos julgaram que não podiam ficar à margem da nova atitude filosófica. Se quisessem continuar a exprimir a mensagem cristã mediante categorias de pensa­mento idealista, realista, historicista,… arriscar-se-iam a não ser entendidos em futuro próximo. Eis por que surgiram nas escolas protestantes alguns novos ensaios de Cristologia inspi­rados por posições filosóficas existencialistas.

Examinemos, para começar,

3.1. O pensamento de Rudolf Bultmann (* 1884 …)[5]

Bultmann propôs a si mesmo a tarefa de descobrir o núcleo central da Cristologia e reexprimilo em categorias de filosofia moderna existencialista.

Quanto ao primeiro ponto, conclui que pouco ou nada podemos dizer a respeito da personalidade e da vida de Jesus de Nazaré, pois os antigos cristãos não se interessaram por narrações objetivas, históricas e dignas de crédito, mas expri­miram o seu pensamento concernente a Jesus em linguagem popular, pré-científica ou mesmo mítica. Essa linguagem, o homem do séc. XX não a aceita; ademais ela encobre ou se­pulta a autêntica imagem de Cristo. E preciso, portanto, pro­ceder a uma demitização.

E qual o resultado desse processo de demitização?

– Para Bultmann, tal processo não leva a reconstituir um núcleo histórico que corresponda ao que Jesus foi, disse e fez. Mas, fiel às suas premissas existencialistas, Bultmann exprime esse resultado nos seguintes termos: as múltiplas narrações que lemos nos Evangelhos, não querem senão incutir um veemente apelo de Deus a que os homens passem de uma vida não-autêntica (não desabrochada, não traduzida em atos livres) para uma vida autêntica (vida que responda às interpelações do momento). A resposta do homem ao apelo que o Evangelho assim formula, não é o Credo ou o conjunto dos doze artigos de fé, mas decisão, ou seja, um gênero de vida que decidida­mente assuma as suas responsabilidades e procure exercer as possibilidades que lhe tocam. Diz Bultmann:

“O significado mais profundo da pregação mitológica[6] de Jesus é o seguinte: estarmos abertos ao futuro de Deus, futuro que, para cada um de nós, é imanente; estarmos preparados para receber esse futuro, que pode sobrevir como um ladrão durante a noite, no momento em que menos o esperamos; estarmos prontos, porque esse futuro será o

julga­mento de todos os homens que estão apegados ao mundo e não estão nem livres nem abertos ao futuro de Deus” (“Jésus”. Paris 1968, pp. 201s).

Em suma, Bultmann reconhece como algo de inegável a existência histórica de Jesus Cristo. Nega, porém, o seu nas­cimento virginal, os seus milagres, a sua ressurreição e ascen­são… O que de Jesus fica inabalável para nós, é um apelo à decisão em favor de uma vida nova e autêntica, apelo a que o cristão deve responder por um comportamento vivencial, ca­paz de o desprender das seduções deste mundo. O existencialis­mo de Bultmann leva-o a esvaziar o Evangelho de sua densi­dade ontológica e histórica, para fazer dele a proclamação de um novo estilo de vida, novo estilo de vida que consiste em desapego e se há de definir e configurar segundo as situações por que passe cada cristão.

3.2. Paul Tillich († 1965) [7]

Tillich tem em comum com Bultmann o ceticismo em re­lação à história, a preocupação de demitizar e o recurso ao existencialismo. Todavia, em vez de seguir o existencialismo de Heidegger (que Bultmann adota), constrói a sua modalidade de existencialismo, recorrendo às categorias de «Fundamento do Ser» e «Novo Ser»; a primeira, segundo Tillich, designa Deus, e a segunda Jesus Cristo.

Tillich parte da consideração de que o homem é um ser vitimado pela hybris (soberba), pela libido (concupiscência) e pela incredulidade. Em tal situação, ele experimenta angústia e desespero. Ora, por si mesmo, o homem não pode sair desse estado. Tal possibilidade, porém, lhe é oferecida por Jesus Cristo.

Jesus é o homem no qual as forças desagregadoras da existência – a soberba, a angústia, a cupidez e o desespero – foram vencidas. Precisamente por causa desta vitória tornou-se Ele o Cristo. Segundo Tillich, não se deve dizer, como habi­tualmente, que Cristo é Deus que se fez homem, mas, sim, que é um homem que se tornou Deus ou, melhor, um homem no qual Deus se tornou visível, manifesto. Esta manifestação de Deus em Cristo tem um poder salvifico universal: Cristo salva, regenera, justifica e santifica todos os homens.

Estas idéias que, para Tillich, constituem o núcleo essen­cial da mensagem cristã, perderam grande parte da sua credi­bilidade, segundo o mesmo pensador, porque não são expressas de maneira acessível ao homem moderno. Este recusa-se a crer em seres divinos que desçam sobre a terra. Por isto não se lhe deve, de modo nenhum, falar de Jesus como sendo Filho de Deus, Deus Verbo Encarnado, Homem-Deus, mas de «Novo Ser»; este conceito, sim, é válido também para o homem de nosso século.

São palavras de Tillich:

“Se me pedissem que resuma a mensagem cristã em duas palavras para os nossos tempos, eu diria com São Paulo: é a mensagem de uma ‘nova criação’… O Cristianismo é a mensagem da Nova Criação, do Novo Ser (New Being), da Nova Realidade, que se manifestou em Jesus. Por este motivo – e só por este -, Jesus é chamado o Cristo. Porque o Cristo, o Messias, o Pré-escolhido, o Ungido é aquele que traz a nova ordem de coisas” (“Systematic Theology”, p. 15).

Em suma, o pensamento de Tillich no tocante a Cristo fica sendo ambíguo. Tenham-se em vista ainda os seguintes dizeres:

“Há símbolos que permanecem, como o do rei, que é central na Bíblia. Cristo foi o representante de Deus na terra. Era o filho do rei, o soberano: Deus. Ele nasceu e recebeu a unção. O símbolo do rei é muito antigo. Os egípcios tinham um Deus-rei” (transcrito de “Les théologiens de Ia mort de Dieu”. Paris 1969, p. 65).

A reviravolta efetuada por Bultmann nos estudos cristológicos mediante a tese da demitização marcou profundamente os estudos posteriores. Em continuidade com Bultmann, desen­volveu-se a linha secularista, que nas suas expressões mais ex­tremadas nega explicitamente a Divindade de Cristo,[8] ao passo que, em reação a Bultmann, foi sendo cultivada a linha histó­rica, que reivindica o caráter histórico dos episódios salvíficos narrados pelos Evangelhos (caráter histórico, que vem a ter repercussão pública, social e política) e aceita a Divindade de Jesus.

Examinaremos sucessivamente uma e outra dessas orien­tações, começando pela primeira.

4. Cristologias secularistas

Após a segunda Guerra Mundial (1939-1945), o fenômeno do ateísmo assumiu proporções extraordinariamente vultosas, de modo que houve quem afirmasse estarmos vivendo uma era pós-cristã.

Em tais circunstâncias, alguns pensadores protestantes jul­garam inútil continuar a falar de Cristo nos termos tradicionais (Cristo Deus e Homem), visto que Deus nada mais parecia significar ao homem de hoje. Eis por que resolveram empreen­der de maneira radical e coerente a secularização da figura de Cristo: haveriam de silenciar os aspectos transcendentais de Jesus para pôr em relevo tão somente o significado secular, isto é, ético e social da figura e das palavras de Cristo. Assim – pensavam – Cristo poderia continuar a despertar o inte­resse dos nossos contemporâneos.

Vejamos os principais expoentes desse modo de pensar.

4.1. Dietrich Bonhoeffer († 1945)

Pastor luterano encarcerado pelos nacional-socialistas em 1944, Bonhoeffer morreu em campo de concentração aos 9 de abril de 1945.

Nas suas «Cartas de Prisão», publicadas com o título «Re­sistência e Submissão» (em tradução brasileira), Bonhoeffer desenvolve o seu pensamento nos seguintes termos:

O homem moderno julga-se adulto e autônomo em relação a Deus: a filosofia, a ciência, a política, o direito são cultivados sem a mínima referência a Deus (etsi Deus non daretur, como se Deus não existisse); Deus, que era o «tapa-buraco» da ignorância e da insuficiência dos homens, já não é necessário ao cidadão evoluído da era tecnológica.

Conseqüentemente, a linguagem teológica e piedosa já não tem audiência junto aos homens de hoje. Passou-se o tempo da religião em geral; caminhamos para uma época totalmente irreligiosa. Não podemos mais supor, como outrora supúnha­mos, que os nossos ouvintes tenham senso religioso.

Uma vez postas estas premissas, Bonhoeffer pretende cons­truir uma Cristologia secular ou sem referência a Deus, a qual se pode compreender em duas proposições

1) Quem é Cristo? – Haveremos de apresentá-lo como o «homem-para-os-outros» por excelência. A fé em Cristo será então participação desse «ser-para-os-outros» de Cristo. Os va­lores «transcendentais» não serão senão aqueles que o próximo nos apresenta.

2) Os conceitos bíblicos hão de ser interpretados de ma­neira radicalmente diversa da clássica, ou seja, em função da vida do homem sobre a terra. Assim a ressurreição não será entedida como um acontecimento «ultra-mundano», mas como «libertação do homem em relação às preocupações, a miséria, às angústias, ao pecado e à morte». A redenção cristã deve resolver os problemas do homem aquém, e não além, dos limi­tes da morte.

É de notar que, embora assim falasse, Bonhoeffer não intencionava negar a Divindade de Cristo; apenas julgava que a devia silenciar, a fim de exprimir a mensagem de Cristo em termos acessíveis e aceitáveis para o cidadão de hoje. Como luterano, Bonhoeffer era um homem de fé (entendida no sen­tido fiducial ou de fé-confiança de Lutero).

Os escritos de Bonhoeffer tiveram ampla repercussão e exerceram notável influência não somente sobre pensadores protestantes, mas também sobre católicos. Todavia devem-se fazer a respeito sérias observações

A afirmação de que o homem de hoje é irreligioso, é su­mária demais. Se no setor das ciências, o homem julga poder dispensar os conceitos religiosos, no setor da psicologia ele se manifesta cada vez mais sequioso do Eterno, do Absoluto, ou seja, de Deus. A inquietação e a angústia que acompanham o cidadão beneficiado pela mais esmerada técnica, são sinais de que o homem sente a carência do Infinito que ele julgou poder eliminar de suas cogitações. Por conseguinte, silenciar o nome de Deus e os valores transcendentais (Encarnação, vitória sobre a morte, perspectiva de vida eterna), que o Cristianismo ensina e que Bonhoeffer aceitava em seu intimo, vem a ser, em mui­tos casos, uma traição ou um desserviço ao homem moderno. E possível e necessário dizer-lhe explicitamente tudo o que a fé cristã ensina; apenas se requer que o teólogo o faça de modo a mostrar o significado concreto que tais verdades têm para o cidadão do séc. XX.

4.2. John A. T. Robinson (contemporâneo) [9]

Robinson, por sua vez, também julga defasada a noção de Encarnação «segundo a qual Deus, em seu Filho, veio à terra, nasceu, viveu e morreu neste mundo como homem.. . Por graça divina, teria entrado no cenário desta terra alguém que não lhe pertencia e que, não obstante, viveu a autêntica vida dos homens» («Um Deus diferente», p. 82).

Robinson, portanto, prefere dizer que, segundo a exegese do Novo Testamento, Jesus não é Deus, mas o homem através de quem, de modo exclusivo, «Deus falava e agia; um encontro com ele era encontro com Deus – com o Deus que julga e salva… Na vida, na morte e na ressurreição desse homem os Apóstolos experimentaram a obra de Deus; e na linguagem de seu tempo confessaram como o centurião diante da cruz: ‘Real­mente este homem era Filho de Deus!’ Era, sim, mais do que um simples homem; era uma janela aberta para Deus, me­diante o seu agir» (ib. 90s).

«Em Jesus, e somente em Jesus, não se vê nada mais de próprio, mas apenas o extremo e incondicionado amor de Deus. No momento em que ele se esvaziou de si mesmo até o fundo, ele se tornou o portador do `nome que está acima de todo nome’, o Revelador da glória do Pai, porque aquele nome e aquela glória são simplesmente Amor… Ao anular-se e ao subme­ter-se totalmente aos outros no amor, Jesus abre e revela o fundamento mesmo do ser do homem, isto é, o Amor» (ib. pp. 94s).

O livro «Honest to God» provocou veemente celeuma na Inglaterra. Mas marcou a fundo, embora por vezes com mati­zes, a mentalidade de grande número dos estudiosos posterio­res. Paul van Buren desenvolveu e radicalizou mais ainda as idéias de Robinson. Este, posteriormente, chegou a lamentar não ter sido suficientemente radical.

4.3. Paul van Buren (contemporâneo)[10]

Pastor da Igreja Episcopal norte-americana e professor da Universidade de Temple de Filadélfia, van Buren adota as premissas do neopositivismo inglês. Isto implica, para ele, que a Cristologia deve ser formulada de tal modo que possa resistir aos testes da filosofia analítica. Para tanto, deve despojar-se de toda expressão do sobrenatural e ocupar-se exclusivamente com a humanidade de Cristo.

Da figura humana de Jesus, van Buren aponta, como ca­racterística principal, a liberdade: «Cristo era livre da ansie­dade, era livre principalmente para o próximo… Era um homem livre para dar-se aos outros, quem quer que fosse. Para isto viveu ele e foi por isto condenado à morte» («The secular Meaning of the Gospel». London 1963, p. 102).

A fé em Cristo consiste, pois, em que nos tornemos livres com Ele. Na Páscoa, a liberdade de Jesus se tornou «conta­giosa» para os discípulos e os transformou, tornando-os livres. Eles saíram pelo mundo a pregar a mesma liberdade a todos os homens,… também aos do século XX.

O pensamento de van Buren se exprime com grande cla­reza no diálogo que teve com Ved Metha, abaixo reproduzido

Van Buren: “Estou a trabalhar sobre um assunto importante: in­vestigar se o Cristianismo é, essencialmente, algo que concerne a Deus ou que concerne ao homem. Com outras palavras, e de forma mais abrupta, estou tentando mostrar que, essencialmente, o Cristianismo concerne ao homem,… que a sua linguagem a respeito de Deus é apenas um meio, e um meio historicamente datado, entre outros, de dizer o que o Cristianismo tem a nos dizer sobre o homem, sobre a vida humana e sobre a história humana. Na medida em que eu for compreendendo a natureza e a evolução da Cristologia na história do Cristianismo, eu quisera mostrar que o que o Cristianismo fundamentalmente tem em mira, é uma certa forma de vida, um modelo de existência humana, uma norma para as atitudes, as disposições e o comportamento moral do homem.

Ved Metha: Mas um cristão não diria que Deus é indispensável à forma de vida de que o Sr. fala?

Van Buren: Não, pois eu poderia dizer a mesma coisa colocando-me do ponto de vista humanista.

Ved Metha: Mas então por que, afinal, se tem necessidade do edifício do Cristianismo?

Van Buren: Para mim, não vejo o que há a perder ou a ganhar quando se diz que uma resposta é cristã ou não cristã. O que eu quero dizer, é que o Cristianismo, a partir da figura de Cristo (figura, aliás, notoriamente reinterpretada pelas gerações), elaborou uma certa imagem do homem e das relações humanas. Tudo isso poderia ter sido tão bem elaborado, e foi realmente elaborado, na tradição do humanismo ocidental. Se, e em que medida, esse humanismo foi influenciado pelo Cristianismo, é talvez questão secundária. Mas, se o Sr. quer realmente encostar-me à parede, eu teria provavelmente que dizer que eu não me preocupo com o essencial do Cristianismo mais do que com o nome que lhe dão. Se alguém quisesse discutir a respeito desse nome, então creio que eu deveria admitir que eu não sou propriamente cristão” (“Les théologiens de ta mort de Dieu”. Paris 1969, p. 83s).

Estas declarações dispensam comentário, pois o autor mesmo professa já não se importar com o âmago da mensa­gem cristã.

Este é o expoente extremo do secularismo; só vê as re­percussões humanas que a mensagem de Cristo possa ter.

Entre os teólogos católicos, as idéias do secularismo não tiveram a mesma veemência; contudo alguns ensaios de Cristologia em escolas católicas procuraram levar em conta a mente secularizada ou mesmo secularista do homem contemporâneo. Uma das tentativas mais relevantes nessa linha é a do teólogo holandês.

4.4. Piet Schoonenberg S. J. (contemporâneo)

Schoonenberg julga que, para se fazer entender pelo homem de hoje, tem de renunciar à fórmula do Concílio de Calcedônia e raciocinar nos seguintes termos:

Em Cristo há uma só pessoa (um só Eu), que é humana. A originalidade de Cristo em relação aos outros homens con­siste no fato de que Deus lhe está presente de maneira singular e inconfundível; em Cristo, pois, não existe atividade alguma que não seja, de certo modo, influenciada pela presença de Deus. Este fato confere a Cristo uma transcendência que deve ser dita «escatológica». Em suma, diz Schoonenberg: «Deus está em Cristo inteiramente, e se manifesta nele como amor por nós. O traço mais significativo desse amor é que ele não conhece limitação alguma» («Un Dio di uomini». Brescia 1971, p. 113).

Ao propor tais idéias, o Pe. Schoonenberg tenciona apenas exprimir a fé constante e perene da Igreja em termos novos. Deve-se dizer, porém, que a formulação é ambígua e sujeita a equívocos; não realça suficientemente o fato de que Jesus é tão Deus quanto é homem; na verdade, Jesus não é apenas um homem «divinizado» ou um homem acidentalmente unido a Deus, mas é Deus eterno que assumiu tudo o que é do homem, sem perder o que é próprio da Divindade.

Vêm agora em consideração as teses que realçam o valor histórico dos episódios concernentes a Jesus, em oposição à linha de Bultmann e discípulos.

5. As Cristologias históricas

Recensearemos as sínteses de Cullmann e Pannenberg.

5.1. Oscar Cullmann (contemporâneo) [11]

Como dito, este teólogo protestante suíço desenvolve o seu pensamento em oposição a Bultmann, afirmando que a Reve­lação de Deus aos homens se fez por acontecimentos reais e históricos.

Com efeito, afirma Cullmann, a Revelação é o resultado de dois elementos convergentes: 1) os fatos históricos, de que nos falam os livros do Antigo e do Novo Testamento, 2) a

in­terpretação desses fatos históricos dada pela própria Sagrada Escritura. Em outros termos: Deus quis falar aos homens não por manifestações particulares ou secretas, nem pela luz da razão apenas, mas, sim, por acontecimentos reais, que o povo de Deus presenciou e dos quais deduziu, sob a guia do próprio Deus, a mensagem respectiva. Fatos e significado dos fatos acham-se consignados nas páginas da Bíblia.

O acontecimento central da Revelação é Jesus Cristo mes­mo. Isto quer dizer que todos os acontecimentos do passado tendiam para Cristo e que em função deste se realizam o pre­sente e o futuro da história. Cristo obteve, em princípio, a vitó­ria sobre as forças do mal; esta vitória deve consumar-se pau­latina e progressivamente até o fim dos séculos.

Longe de recorrer à filosofia para penetrar no mistério de Cristo, Cullmann examina os vários títulos que o Novo Tes­tamento atribui a Jesus (Profeta, Servidor Padecente, Sumo Sacerdote, Lógos, Filho de Deus, Deus…) para fazer uma síntese objetiva e fidedigna. Cristo aparece assim como o Re­velador do Pai aos homens e o Salvador de todos através da sucessão dos séculos.

Como se vê, a síntese cristológica de Cullmann procura ser essencialmente bíblica. Embora não dispense os critérios e as conclusões da exegese científica, Cullmann não faz da filo­sofia e de preconceitos racionalistas as premissas da sua posição cristológica. Em conseqüência, nos escritos de Cullmann o pensamento católico encontra numerosos elementos da au­têntica fé cristã.

5.2. Wolfhart Pannenberg (contemporâneo) [12]

Também este autor afirma que Deus se revelou por fatos históricos e objetivos, que não podem ser rejeitados como pro­dutos da imaginação de almas piedosas. Esta conclusão, para Pannenberg, não decorre somente dos estudos da crítica his­tórica, mas é também uma profunda exigência da própria fé. Com efeito, se a história da salvação não tivesse valor objetivo, mas fosse ficção, a fé se apoiaria apenas na vontade e no ca­pricho dos homens. Os sucessivos acontecimentos da história da salvação só podem ser entendidos à luz do fim ou da con­sumação dos séculos.

Quanto à figura de Cristo, Pannenberg tenta, também ele, deixar de lado a fórmula de Calcedônia, para recorrer ao con­ceito hegeliano de pessoa; esta seria ao abandono de si mesmo a outrem». Em Jesus, o «ser pessoa» consistia em entregar-se de modo perfeito ao Pai pela obediência. Eis as palavras mes­mas do autor:

“No abandono (Hingabe) ao Pai, Jesus vive a sua pessoa de Filho. Se esta afirmação é verídica, a Divindade de Jesus não é uma segunda substância em Jesus homem, acrescentada à sua humanidade. Por isto, precisamente na medida em que é este homem, Jesus é Filho de Deus e Deus mesmo. Em conseqüência, ele deve ser entendido não como uma sín­tese do divino e do humano; nele a união de homem e Deus é algo de muito mais profundo do que aquilo que o conceito de síntese exprime. Dessa união não resulta algo de novo ou uma terceira realidade, nem se segue que a humanidade seja absorvida pela Divindade a ponto de desa­parecer. Ao contrário, é precisamente na sua humanidade peculiar que Jesus é o Filho de Deus” (“Grundzüge der Christologie”, p. 334).

Faz-se mister agora registrar a posição da

6. Cristologia escatológica

Partindo do pressuposto – muito generalizado – de que hoje em dia não se podem mais apresentar a figura e a mensa­gem de Cristo nos moldes tradicionais, alguns teólogos alemães, desde 1960, procuraram apresentar uma Cristologia de espe­rança e de escatologia ou consumação. A diferença dos secularistas, afirmam que Deus faz parte integrante da figura de Cristo; não deve, pois, ser silenciado o conceito de Deus numa autêntica elaboração cristológica. Mas é preciso encontrar uma fórmula aceitável ao homem moderno, que está profundamente embebido da visão marxista do mundo, da sociedade e da his­tória. Ora o homem marxista professa otimismo e esperança em relação ao futuro, pois alimenta o sonho de construir uma sociedade perfeita constituída pelo homem novo, libertado. – Essa visão otimista, dizem os teólogos da esperança, pode ser tomada como ponto de referência para se elaborar um novo ensaio de Cristologia.

O principal representante deste modo de pensar é

Jürgen Moltmann (contemporâneo) [13]

Moltmann, teólogo protestante, desenvolve a sua Cristologia enfatizando não o que já aconteceu, mas o que ainda deve acontecer. Isto quer dizer: Cristo veio confirmar e revalidar as promessas feitas por Deus aos Patriarcas bíblicos, mas essas promessas ainda aguardam o seu cumprimento… Cumpri­mento, isto é, realização plena e consumada, e não apenas re­velação ou queda de véus (como se tudo já estivesse cumprido, mas ainda se achasse em estado latente ou encoberto). A reali­dade nova que os cristãos esperam, é a ressurreição dos mortos, a plena senhoria do Crucificado e a restauração da ordem e da harmonia no conjunto das criaturas.

Assumindo a escatologia (ou a consumação da história) como princípio de hermenêutica (ou de interpretação da men­sagem bíblica), Moltmann assim entende o fato histórico da ressurreição de Cristo

“A revelação de Cristo ressuscitado não é uma forma de epifania (manifestação) do eterno presente; ela exige, antes, que a revelação seja compreendida como apocalipse do futuro prometido pela verdade” (‘Teolo­gia della speranza”. Brescia, p. 81).

De resto, o pensamento de Moltmann será ulteriormente exposto sob o título 7 deste artigo.

A Cristologia escatológica ou da esperança e consumação também é proposta por Karl Braaten, jovem teólogo luterano dos Estados Unidos, e Wolfhart Pannenberg, de quem já fa­lamos à p. 237 deste artigo.

Em poucas palavras, pode-se dizer a respeito que não se deve enfatizar demais a distinção entre presente e futuro na visão cristã da história. A eternidade e seus valores já estão presentes entre nós sob forma de semente. Feita esta observa­ção, reconheça-se que é realmente oportuno acentuar a espe­rança e a tendência para a plenitude ou consumação como notas características do Cristianismo. A cultura do homem de hoje está toda voltada para o amanhã,… amanhã cheio de pro­messas e esperanças. Ora é certo que o Cristianismo tem um significado e uma mensagem grandiosa para tal atitude de espírito.

Resta agora examinar uma corrente cristológica assaz pró­xima à escatológica:

7. Cristologias políticas

O fenômeno social e político, que no século XIX muito in­teressou aos cientistas e filósofos, nos últimos decênios mereceu cada vez mais a atenção dos teólogos. Estes, em conseqüência, elaboraram um conjunto de sínteses novas como a teologia do desenvolvimento, a teologia da libertação, a teologia da paz, a teologia da revolução, a teologia política. .. Em tais sínteses, os pensadores têm procurado na figura e na mensagem de Cristo os elementos inspiradores de uma nova ordem social e política. Dai o surto das chamadas «Cristologias políticas», cujos principais arautos são Metz, Schaull, Cox, Moltmann, Peukert, Rendtorff, Rubem Alves, brasileiro, de confissão religiosa pres­biteriana, Gutierrez… Abaixo proporemos apenas o pensa­mento de Cox, Moltmann e Metz, os fundadores da teologia po­lítica, e o de Schaull, o expoente máximo da teologia da re­volução.

7.1. Harvey Cox, Jürgen Moltmann e Johannes Baptista Metz (contemporâneos)

a) Harvey Cox é um pastor batista, professor da Harvard University (U. S. A.), que se tornou famoso por seu livro «The Secular City» (London 1965), traduzido para o português com o título «A Cidade do Homem» (Rio de Janeiro 1968). É Harvey Cox quem põe as bases de uma teologia política, sublinhando o caráter público e social da mensagem cristã.

Com efeito, diz Cox, já está ultrapassado o tempo de apre­sentar a mensagem cristã em categorias metafísicas ou em categorias existenciais e personalistas: «Pois que o mundo su­perou o páthos e o narcisismo do existencialismo, os esforços teológicos feitos para atualizar a mensagem bíblica, como os de Bultmann, já não merecem atenção. A sua falência não é devida ao fato de que são radicais demais, mas ao fato de que o são pouco demais. Dão uma resposta do século XIX a um dilema do século XX» («The Secular City», p. 252). Por con­seguinte, em lugar da metafísica clássica e do existencialismo moderno, Cox propõe que se adote a linguagem política, pois «na sociedade moderna a política tomou o lugar da metafísica. Ela dá unidade e significado à vida e ao pensamento dos ho­mens» (ib. 254).

Conseqüentemente, segundo Cox, os cristãos devem hoje em dia renunciar a professar publicamente a sua fé. Será opor­tuno mesmo que renunciem a pronunciar o nome de Deus; tal­vez a evolução dos tempos lhes sugira outro vocábulo que não Deus, para designar o Ser Supremo. A missão do cristão há de ser exatamente a mesma que a dos demais homens: construir a Cidade do Homem neste mundo; os valores ditos «transcen­dentais» se acham nas criaturas mesmas. O mundo presente, com suas iniciativas e realizações, satisfaz plenamente aos inte­resses do homem secularizado.

Na base de tais premissas, Cox interpreta a Bíblia, con­cluindo que

– o relato da criação em Gen 1-3 significa a «seculariza­ção da natureza». A Bíblia ensina que não há forças ocultas nem mágicas neste mundo, nem existem semi-deuses

identifi­cados com as forças da natureza; Deus é o único Criador de todos os seres que vemos;

– o livro do Êxodo (7,1-14,31), narrando a libertação de Israel cativo no Egito, dá a ver que não há monarcas ou gover­nantes divinos (tais eram os Faraós egípcios, na concepção de seus súditos). A Bíblia preconizou assim a «dessacralização da política»;

– o livro do Êxodo (13,35-24,8), narrando a libertação de Israel cativo, a entrega da Lei a Israel ao pé do monte Sinai, e prescrevendo, entre outras coisas, a destruição dos ídolos, propõe a «desconsagração dos valores». Não há valores abso­lutos neste mundo; todos são «obra da mão do homem». Como se depreende do desenrolar geral da tese, Cox tem em vista principalmente os valores religiosos.. .

– finalmente, o Reino de Deus, tão apregoado pelos Evan­gelhos, não será senão uma nova ordem de coisas na terra, em que o homem se emancipará de «tabus» das épocas anteriores (no tocante tanto à ciência como à moral). «O equivalente mo­derno do arrependimento é o uso responsável do poder» («A Cidade do Homem», p. 137); a vinda do Reino de Deus signi­fica «transformação social» (ib. 135). Já não tem sentido en­tender o Evangelho como apelo à união com Deus e à vida interior.

b) Jürgen Moltmann, na sua «Teologia da Esperança», afirma que o relacionamento da Igreja com a sociedade tem índole essencialmente política: a Igreja deve anunciar e pre­parar o Reino de Deus, que não diz respeito apenas aos indiví­duos tomados isoladamente, mas envolve a sociedade global­mente. A fé cristã, fortemente marcada por sua tendência es­catológica, é chamada a exercer uma ação política, isto é, deve transformar a pólis, a cidade, a sociedade. O Reino de Deus, com sua mensagem de salvação, põe em xeque as instituições presentes ainda contaminadas pelo pecado e exige que os cris­tãos as transformem em vista do futuro. Tenha-se em vista principalmente o último capítulo do livro «Theologie der Hoff­nung» (Teologia da Esperança).

c) Johannes B. Metz, teólogo católico, rejeita qualquer interpretação do Evangelho que se confine apenas ao foro pes­soal e particular de cada cristão, sem levar em conta os deveres deste na esfera sócio-política. Uma fé destituída de dinamismo social, diz o autor, vem a ser puro jogo de palavras e não corresponde ao teor da mensagem bíblica. Esta não nos apre­senta Jesus como personagem particular a anunciar uma sal­vação particular: «A proclamação dessa salvação arrastou Jesus para um conflito mortal com os poderes públicos do seu tempo. A cruz de Jesus não foi erguida no privatissimum do espaço individual, nem no sanctissimum do espaço unicamente religioso, mas… ela foi colocada fora do recinto do puramente religioso, … fora segundo a fórmula da Carta aos Hebreus

(13,12). O véu do Templo se rasgou para sempre (cf. Mt 27,51) » («Teologia del rinnovamento». Assis 1969, pp. 268s).

Em conseqüência, diz Metz, a teologia deve despertar as consciências para a tarefa que a Palavra de Jesus há de exe­cutar em meio às realidades sócio-políticas. A Igreja está pre­sente ao mundo como uma instituição crítica: «Ela se ergue contra qualquer tentativa de considerar a pessoa humana em função apenas de uma evolução social dirigida pela técnica» (ib. 277).

A posição de Metz suscitou reações, por vezes, contradi­tórias.

Foi aplaudida por aqueles que a entenderam como a pro­clamação de que não pode haver autêntica transformação polí­tica sem participação decisiva do Cristianismo. Mas sofreu crí­tica da parte dos estudiosos que julgam que os termos-chaves da teoria («teologia política, instituição crítica, fim da meta­física, praxe. .. ») têm sentido abstrato e indeterminado nos escritos de Metz. Os opositores reconhecem que a mensagem cristã tem, sem dúvida, dimensões sociais, mas que nem por isto se podem derivar da política os princípios de interpretação da mensagem bíblica e da Cristologia; a imagem do Messias político, tão acalentada pelos judeus, foi definitivamente supe­rada por Jesus Cristo.

7.2. Richard Schaull (contemporâneo)

Este teólogo protestante americano tornou-se o pioneiro da modalidade de teologia política dita «teologia da revolução».

Schaull julga que, nas atuais circunstâncias de injustiça e opressão acarretadas pelo capitalismo burguês, só se pode apre­goar devidamente a Palavra de Deus, proclamando a revolução. Para levar adiante a revolução, afirma ele, o cristão encontra inspiração na sua própria fé. «Na verdade, os símbolos e as imagens bíblicas acentuam a descontinuidade, a condenação, o fim do mundo e a irrupção de algo absolutamente novo» [14].

Mais ainda: a revolução é a mais certa expressão da auto­-revelação de Deus na história, pois o Deus que faz saltar as velhas estruturas para criar as condições de uma existência mais humana, está Ele mesmo em meio à luta.

É evidente que a posição de Schaull é extremada e, por isto, insustentável. E isto, por mais de um motivo: dá ao con­ceito bíblico de «novidade» e «renovação» um sentido exagera­damente político e sociológico; certo interesse político (que associava o Reino de Deus e a restauração da monarquia do rei Davi) estava em foco direto nas concepções do Antigo Tes­tamento; mas esta perspectiva foi focalizada de novo modo pelo Evangelho, de sorte que o próprio Cristo pôde dizer: «O meu reino não é deste mundo» (Jo 18,36) e «Dai a César o que é de César, e dai a Deus o que é de Deus» (Mt 22,21). A política interessa certamente ao cristão e ao Reino de Deus, mas subordinadamente a outros valores.

Mais: é ilusório crer que a revolução violenta seja o único remédio para os males do sistema sócio-político vigente, como se a revolução não fosse também ela causa de opressões e como se o ódio não gerasse ódio. Por fim, a tese de Schaull não leva em conta suficiente o lugar central e definitivo que Cristo ocupa na história da salvação, pois o autor parece aguardar para o futuro novos acontecimentos salvíficos de valor decisivo.

8. Conclusão

1. Outros nomes de pensadores, com seus matizes doutri­nários, poderiam ser acrescentados à panorâmica acima pro­posta; recenseá-los todos nos levaria muito longe. Como quer que seja, as páginas antecedentes já oferecem uma visão que pode ser tida como suficientemente fiel à realidade das corren­tes cristológicas contemporâneas.

Perguntamo-nos: que dizer a propósito? Como julgar tão ampla escala de posições teológicas?

a) Em termos positivos, reconheçamos que os novos en­saios de penetração do mistério de Cristo produziram seus re­sultados de interesse e valor. Com efeito, concorreram para que se evidenciasse mais ainda a função central e fundamental da Cristologia em relação aos outros tratados da teologia; deram ocasião a que se aprofundasse o significado da missão de Cristo em relação a todos os homens, à sociedade e à his­tória dos povos em geral; simultaneamente explanaram-se questões de psicologia humana, a fim de aplicá-las ao mistério de Cristo.

b) Todavia a variedade de tantas posições crístológicas exige ulterior reflexão.

Examinando mais a fundo o quadro das Cristologias contemporâneas, verificamos que, em última análise, a raiz da di­versidade das mesmas vem a ser a posição gnoseológica que cada um dos respectivos autores assume. – Com outras pala­vras: a questão fundamental, na Cristologia de hoje, é saber se se deve penetrar na figura de Cristo com a luz da razão apenas ou se, a razão sendo incapaz para tanto, somente a fé ilustra o mistério de Cristo. No primeiro caso, tem-se o que se poderia chamar o neo-positivismo como base da Cristologia; no outro caso, professa-se o fideismo. O neo-positivismo leva ao secularismo dos chamados «cristãos ateus» ou às teses pró­ximas do secularismo (linhas 3 e 4 do panorama atrás propos­to); provoca também as reações contra tais posições (linhas 5, 6 e 7). O fideísmo leva ao sobrenaturalismo de Barth (linha 2), o qual desvaloriza o papel da razão e do estudo cien­tífico na penetração da mensagem de Cristo.

Diante da situação assim configurada, trata-se, pois, de formular com clareza os meios de que dispomos hoje para com­preender e ilustrar a figura de Jesus Cristo. É o que vamos tentar fazer agora.

2. Antes do mais, leve-se em conta que Jesus foi um per­sonagem histórico, que viveu em determinada época e realizou feitos históricos (nenhum crítico consciencioso o nega hoje em dia). Por conseguinte, a primeira etapa que o estudioso, diante da realidade «Jesus Cristo», deve percorrer, há de ser o estudo científico dos documentos antigos – bíblicos e não bíblicos – que abordam o tema Jesus Cristo e concorrem para ilustrá-lo. Entre os instrumentos de trabalho, citem-se os recursos da lin­güística, da paleografia, da arqueologia e das disciplinas afins, que deverão ser utilizadas, a fim de proporcionar ao estudioso clareza científica e racional a respeito da figura e da mensa­gem de Cristo.

A segunda etapa mobiliza a fé. Se o estudioso é cristão (como o querem ser quase todos os autores recenseados nas páginas precedentes), compete-lhe consultar os outros documen­tos da fé atinentes a Jesus Cristo, isto é, as obras dos antigos escritores cristãos e as declarações do Magistério da Igreja. E – diga-se de passagem – só existe uma Igreja instituída por Cristo: aquela que foi confiada a Pedro e ao colégio dos Após­tolos, aos quais Jesus prometeu assistência infalível até o fim dos tempos; cf. Mt 28, 18-20.

Os documentos da fé – principalmente os que provêm do magistério da Igreja – têm importância decisiva para se jul­garem os resultados do estudo científico concernente a Cristo. Não pode haver conflito real entre uns e outros; dado, porém, que haja discrepância aparente, faça-se a revisão da pesquisa em foco. Os assuntos de fé se esclarecem, em última instância, pelos documentos da fé que a Igreja, assistida por Cristo, promulga.

Assim, pois, não há dilema entre razão e fé no estudo da Cristologia. Tanto aquela como esta devem esmerar-se por pe­netrar no tema. É o que faz que a linha 1 do panorama atrás apresentado seja a linha certa. É ela que corresponde ao pensamento oficial da Igreja e à genuína doutrina da fé em Cristo.

Na confecção deste artigo, muito nos valemos da obra de Battista Mondin: “Le Cristologie Moderne. Un panorama”, Roma 1973.

­­____

NOTAS:

[1] Sujeito = Eu. – A nota é do redator destas páginas.

[2] Em tradução italiana: “II Signore” (Der Herr), Milão 1949, e “La fi­gura di Gesù Cristo nel Novo Testamento” (Das Bild Jesu im Neuen Tes­tament), Brescia 1950.

[3] “La parole de Dieu”, Paris 1946.

[4] “Roemerbrlef”, Munique2 1922. “Kirchliche Dogmatik”, Zürlch 1938.

[5] “Jesus” 1929. “Offenbarung und Heilsgeschlchte” 1941. “Theologle des Neuen Testamentes” 1948. “Glaube und Verstehen” 1952.

[6] “Mitológica” quer dizer para Buitmann: … expressa em linguagem figurada e arcaica.

[7] Obra principal: “Systematic Theology”, em três volumes, Chicago 1951, 1957 e 1963 respectivamente. É no 29 volume (“Existence and the Christ”) que Tillich expõe explicitamente a sua posição cristológlca.

[8] Aliás, o próprio Bultmann, conseqüente consigo mesmo, não pode aceitar a Divindade

[9] “Honest to God”, Londres 1963. Em tradução portuguesa, “Um Deus diferente”, Lisboa 1967.

[10] “The secular Meaning of the Gospel”, New York 1963.

[11] Em tradução italiana temos: “Cristo e il tempo”, Bolonha 1965. “La Cristologia dei Nuovo Testamento”, Bolonha 1970.

[12] “Grundzüge der Christologie”, Gütersloh 1964. Em tradução italiana: “Rivelazione come storia”, Bologna 1969. “La teologia e il regno di Dio”, Roma-Brescia 1971.

[13] “Theologie der Hoffnung”, München 1966. Em tradução brasileira, “A teologia da esperança”.

[14] “Dibattito sulla teologia della rivoluzione: La fede cristiana come scandalo in un mondo tecnologico”, Brescia 1970, p. 53.