Nossa Senhora: a virgindade perpétua de Maria Santíssima

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 365/1992)

 

Em síntese: Aos 24/05/1992 o Papa João Paulo II proferiu importante alocução em Cápua (Itália), encerrando um Encontro de Estudos, por ocasião do 16.° Centenário do Concílio regional de Cápua (391-392). S. Santidade quis dissipar dúvidas atinentes à virgindade perpétua de Maria SS., frisando principalmente a virgindade no parto, que é um dos pontos mais discutidos do tema: João Paulo II retoma o testemunho de Concílios e da Tradição anterior, reafirmando que Maria ‘’deu à luz verdadeira e original­mente o seu Filho’’, conservando sempre a integridade da carne.

Tal fato não pode ser provado apoditicamente, mas pertence aos arti­gos fundamentais da fé. De certo modo é ilustrado por passagens bíblicas do Antigo Testamento, entre as quais a da sarça que ardia, mas não se consumia (ver Ex 3,2s), as narrativas da natividade extraordinária de Isaque, Sansão, Samuel, João Batista… (cf. Gn 17,17-22; Jz 13,2-7; ISm 1,1-23; Lc 1,5-25). Ademais a valorização da virgindade de Maria não deprecia a vocação ma­trimonial, santificada por um sacramento próprio. A virgindade hoje pouco estimada e vivenciada será sempre dom de Deus, que implica liberdade inte­rior para servir radicalmente ao Reino de Deus e lançar olhar muito perspi­caz sobre os bens transcendentais.

***

A virgindade de Maria SS., Mãe de Deus feito homem, é ponto nevrálgico no depósito da fé, para muitos cristãos. De modo geral, aceitam que Maria tenha sido virgem antes do parto e haja concebido virginalmente. Todavia mais dificilmente acreditam que tenha permanecido virgem após o parto.[1] Quanto à virgindade no parto, há quem a rejeite como algo de im­possível. Todavia a fé católica afirma a virgindade perpétua de Maria antes do parto, no parto e após o parto. Retomando o testemunho da Tradição anterior, o Papa Paulo IV em 7/8/1555 apresentou a perpétua virgindade de Maria entre os temas fundamentais da fé: “permaneceu Maria sempre virgem antes do parto, no parto e depois do parto” (Denzinger-Schdnmetzer, Enchi­ridion nº 1880 [993]).

Tal verdade tradicional tem sido amplamente debatida na bibliografia teológica. Principalmente a virgindade de Maria no parto vem questionada. – Ora a fim de esclarecer os fiéis católicos, o Papa João Paulo II quis pronunciar-se sobre o assunto, com a autoridade de quem deve confirmar seus irmãos na fé (cf. Lc 22, 31s). S. Santidade o fez aos 24/5/92 por ocasião de uma visita pastoral à arquidiocese de Cápua (Itália). Encerrava-se então um Encontro Internacional de Estudos, organizado pela Pontifícia Faculda­de Teológica Marianum de Roma, em colaboração com o Instituto Supe­rior de Ciências Religiosas de Cápua, por ocasião do 16º Centenário do Con­cílio regional de Cápua (391-392).

João Paulo II proferiu então uma alocução muito significativa, abor­dando as questões suscitadas em torno da temática. De tal pronunciamento destacamos os tópicos mais salientes.

I. A Palavra do Papa

“Um Concílio Importante

2. Era o ano de 392. Em Roma, a cátedra de Pedro era ocupada pelo Papa Sirício. Em Cápua celebrou-se um importante Concílio, que as fontes históricas qualificam como plenarium (cf. I. D. MANSI, Sacrorum Concilio rum nova et amplissima Collectio, III. Canones Conciliorum Ecclesiae Afri­canae, cân. 48, col. 738), pela participação dos Bispos provenientes de várias. regiões do Ocidente, e pela gravidade das questões que teve de enfrentar, en­tre as quais a composição do cisma de Antioquia e o exame da doutrina de Bonoso, que negava a perpétua virgindade da Santa Mãe do Senhor. Sabe­mos que o Papa Sirício acompanhou com vigilante atenção os trabalhos do Concílio, e que Santo Ambrósio de Milão deixou neles a marca da sua per­sonalidade forte e prudente (Ep. 71, De Bonoso episcopo: CSEL 82/3, pp. 7-10).

O tema então enfrentado oferece-nos o motivo para juntos refletir­mos sobre algumas condições prévias, que parecem indispensáveis para que o teólogo possa aprofundar, com a razão iluminada pela fé, o fato e o sig­nificado da virgindade da humilde e gloriosa Mãe de Cristo.

Na luz da encarnação do Verbo

3. Já os Padres da Igreja perceberam com clareza que a virgindade de Maria, antes de constituir uma questão mariológica, é um tema cristo­lógico. Eles faziam notar que a virgindade da Mãe é uma exigência derivante da natureza divina do Filho; é a condição concreta em que, segundo um livre e sapiente desígnio divino se efetuou a encarnação do Filho eterno, d’Aquele que é Deus de Deus (CONC. ECUM. CONSTANTINOP. I, Expo­sitio fidei CL Patrum seu Symbolum Nicaenum-Constantinopolitanum), só Ele é Santo, só Ele é o Senhor, só Ele é o Altíssimo (cf. Missale Romanum, Haymnus Glória in excelsis Deo). E consequentemente, para a tradição cristã, o seio virginal de Maria, fecundado pelo Pneuma divino sem inter­venção de homem (cf. Lc 1, 34-35), tornou-se, como o madeiro da cruz (cf. Mc 15, 39) ou as ligaduras do sepulcro (cf, Jo 20, 5-8), motivo e sinal para reconhecer em Jesus de Nazaré o Filho de Deus.

Com profundo sentido de veneração

5. Na reflexão adorante sobre o mistério da encarnação do Verbo, foi detectada uma relação particularmente importante entre o início e o fim da vida terrena de Cristo, ou seja, entre a concepção virginal e a ressurreição de entre os mortos, duas verdades que se ligam intimamente à fé na divindade de Jesus.

Elas pertencem ao depósito da fé, são professadas pela Igreja inteira e enunciadas expressamente nos Símbolos da fé. A história demonstra que dúvidas ou incertezas sobre uma repercutem inevitavelmente sobre a outra, como, ao contrário, a humilde e forte adesão a uma delas favorece o acolhi­mento cordial da outra.

No paralelismo, relativamente à geração de Cristo, alguns Padres res­saltam a concepção virginal, outros o nascimento virginal, outros a subse­qüente virgindade perpétua da Mãe, mas todos testemunham a convicção de que entre os dois eventos salvíficos – a geração-nascimento de Cristo e a sua ressurreição de entre os mortos – existe um nexo intrínseco que responde a um preciso plano de Deus: um nexo que a Igreja, guiada pelo Espírito, descobriu, não criou.

Os fatos

6. Na confissão de fé na virgindade da Mãe de Deus, a Igreja proclama como fatos reais que Maria de Nazaré:

– concebeu verdadeiramente Jesus, por obra do Espírito Santo, sem intervenção do homem;

– deu à luz, verdadeira e virginalmente’, o seu Filho, razão pela qual depois do parto permaneceu virgem; virgem – segundo os Santos Padres e os Concílios que trataram expressamente a questão (cf. CONC. ROMAN. LATERAN., cân. 3: I.D. MANSI. Sacrorum Conciliorum nova et amplíssi­ma Collectio, X, col. 1151; CONC. TOLET. XVI, Symbolum, art. 22) – também no que se refere à integridade da carne;

– viveu, depois do nascimento de Jesus, em total e perpétua virgin­dade; e, juntamente com São José, também ele chamado a desempenhar um papel primário nos eventos iniciais da nossa salvação, se dedicou ao ser viço da pessoa e da obra do Filho (cf. CONC. ECUM. VATICANO II, Const. dogmática Lumen gentium, 56).

7. No nosso tempo a Igreja sentiu a necessidade de evocar a realidade da concepção virginal de Cristo, fazendo notar que as páginas de Lucas 1, 26-38 e de Mateus 1, 18-25 não podem ser reduzidas a simples narrações etiológicas, para facilitar a fé dos fiéis na divindade de Cristo. Elas são antes, para além do gênero literário adotado por Mateus e por Lucas, expressão duma tradição bíblica de origem apostólica.

Afirmar a realidade da concepção virginal de Cristo não significa que, em referência a ela, se possa fornecer uma prova apolítica de tipo racional. Com efeito, a concepção virginal de Cristo é uma verdade revelada por Deus, que o homem acolhe em virtude da obediência da fé (cf. FIM. 16, 26). Só quem está disposto a crer que Deus age na realidade intramundana e que a Ele “nada é impossível” (Lc. 1, 37), pode acolher com devota gratidão as verdades da “kenosis” do Filho eterno de Deus e da sua concepção-nasci­mento virginal, do valor salvífico universal da sua morte na cruz e da ressur­reição verdadeira, no próprio corpo, d’Aquele que foi suspenso e morreu no madeiro da Cruz.

O Significado dos Fatos

9. Ora, na pesquisa do sentido oculto no fato, abre-se ao teólogo um campo de trabalho vasto, fecundo e exaltante. Se ele, com método rigoroso, com fidelidade à Palavra normativa, à Tradição universal, às diretrizes do Magistério, com atenção à experiência litúrgica investigar o evento salvífico da concepção e do nascimento de Cristo, bem como a virgindade perpétua de Maria, virá a encontrar-se, por assim dizer, em contato com a Escritura inteira: com a página em que Deus plasma o homem com a “terra virgem” (cf. Gn. 2, 4b-7); com os textos que narram as antigas Alianças, as profecias messiânicas, as promessas feitas a David, cujos ecos se ouvem distintamente na Aliança da Encarnação; com a narração dos gestos de Abraão, cuja fé obediente revive, intensificam, no fiat de Maria; com os relatos da materni­dade prodigiosa de algumas mulheres estéreis – Sara, a mulher de Manoach, Ana, Isabel – que se tornaram fecundas com o favor de Deus; com os tre­chos que descrevem o nascimento dos discípulos “do Alto”, “da água e do Espírito” (cf. Jo 3, 3-8), isto é, modelado no nascimento de Jesus no seio de Maria, por obra do Espírito Santo; com o episódio da maternidade pascal de Maria (cf. Jo 19, 25-27), ocorrida também ela na fé à palavra e na qual os Padres divisaram também uma dimensão virginal: o Filho, virgem, confia a Mãe virgem ao Discípulo virgem (cf. S. JERÔNIMO, Ep. 127, 5; CSEL 56, pp. 149-150; S. SOFRÔNIO, In lohannis Evangelium, 69-76; PG 78, 3, 3788); com a mesma literatura intertestamentária, na qual se sente, em pá­ginas de intenso lirismo, o pungente desejo de Israel de se tornar esposa pura e fiel, comunidade escatológica em que já não se ouça o lamento da dor do parto nem os cantos fúnebres da morte. São exemplos. Eles indicam que ex­pressões, tais como Theotokos ou Virgo Mater, se lidas em profundidade e com atenção às múltiplas vozes convergentes, são como que síntese da eco­nomia salvífica. . .

De modo íntegro e correto

11. A exatidão na exposição da doutrina exige que sejam evitadas po­sições unilaterais, exagerações ou distorsões. Por exemplo, a afirmação da virgindade de Maria deve ser feita de modo que em nada, direta ou indiretamente, apareçam diminuídos o valor e a dignidade do matrimônio, querido por Deus, por Ele abençoado, sacramento que configura o cristão a Cristo, via de perfeição e de santidade,. . . nem se banalize a mensagem que dela de­riva, relegando-a a um aspecto marginal do cristianismo.

De modo atento à cultura contemporânea

12. Certamente o clima cultural do nosso tempo nem sempre é sensí­vel aos valores da virgindade cristã. Não seria difícil enumerar as causas. Mas isto não deve desencorajar o teólogo no seu empenho. No tempo de Paulo, a cultura dominante não estava pronta a acolher o mistério da Cruz, mas ele, por fidelidade a Cristo, fez dele o fulcro da sua mensagem (cf. 1 Cor 2, 2; GI 3, 1;6, 14).

O teólogo deve ser animado pela confiança serena em que os valores, autenticamente evangélicos, são válidos para o homem e para a mulher con­temporâneos, mesmo quando estes os ignoram ou os transcuram.

A virgindade é dom e graça. Ela é um bem da Igreja, do qual partici­pam também aqueles – sem dúvida a maior parte -, que não são chamados a vivê-la na própria carne, mas embora sempre no próprio coração.

Compete ao teólogo indicar as razões que podem ajudar o homem e a mulher do nosso tempo a redescobrirem os valores da virgindade; ele deve determinar a linguagem mais apta para transmitir os valores evangélicos, dos quais ela é portadora, mostrar como em muitos casos a virgindade é sinal de liberdade interior, de respeito pelo outro, de atenção aos valores do Espíri­to, de capacidade de lançar o olhar para além dos confins do mundo temporal (cf. Mt 22, 30), de viver radicalmente ao serviço do Reino”.

II. REFLETINDO­…

Em suma, a alocução do S. Padre, que certamente visava a pôr termo às hesitações dos fiéis, afirma as seguintes proposições:

1) A virgindade de Maria vem a ser, antes do mais, um tema cristológico, no sentido de que é toda relativa a Cristo. Contribui para identificar o Senhor Jesus, indicando que não era mero homem (embora fosse verdadeiro homem); por ser também Deus Filho, Maria recebeu do próprio Deus o Fi­lho ao qual ela havia de dar a natureza humana.

2) A virgindade de Maria no parto tem seu paralelo no final da vida terrestre de Jesus: Este, ressuscitado, atravessava as paredes do Cenáculo sem as rasgar, como o fizera em relação a Maria SS. quando nasceu.

O principal objetivo da alocução de João Paulo II em Cápua foi preci­samente incutir o ponto mais delicado da temática, ou seja, a virgindade de Maria no parto. A recomendação deste traço ocupa notável porção do pronunciamento. O S. Padre renunciou a expor teorias biológicas que nos últi­mos tempos foram apresentadas para elucidar a partenogênese, como se se pudesse enquadrar o caso de Maria em alguma ocorrência conhecida pelas ci­ências médicas.

3) A Escritura do Antigo Testamento prepara o conceito do parto vir­ginal de Maria, conforme a interpretação dos Padres antigos e da Tradição. Com efeito; apontam-se textos bíblicos, em que a graça de Deus aparece a suprir as deficiências da natureza ou age ultrapassando as possibilidades da natureza. Assim é recomendada ao leitor a noção de que Deus pode fazer o que Ele quer com os elementos que Ele escolhe, por mais ineptos que pare­çam. É Deus quem toma a iniciativa de salvar o homem gratuitamente, e não é o homem que provoca Deus para realizar atos salvíficos.

4) A profissão da maternidade virginal de Maria em nada deprecia o es­tado conjugal consagrado pelo sacramento do matrimônio. Todo cristão é chamado a santificar-se nas condições de vida que Deus lhe assinala (virgin­dade ou matrimônio).

5) A virgindade ou a vida una e indivisa, hoje em dia pouco estimada e praticada, vem a ser penhor de liberdade interior, de olhar perspicaz sobre os valores transcendentais e de radical vivência a serviço do Reino de Deus. Por isto fica sendo, em nossos dias mesmos, um ideal ao qual podem e de­vem aspirar aqueles(as) a quem Deus concede tal graça.

___

NOTA:

[1] A questão da virgindade de Maria após o parto coincide com a dos “irmãos de Jesus”. Na verdade, a boa exegese dos Evangelhos mostra que, segundo a linguagem semita, estes eram primos de Jesus, isto é, filhos de Cleofas ou Alfeu, irmão de São José, casado com uma certa mulher, de no­me Maria, cf. Mt 27,56,- Jo 19,25. A propósito ver: E. Bettencourt, Diálogo Ecumênico, Ed. Lumen Christí, Caixa postal 20001-970 Rio (RJ).