Nossa Senhora: o terceiro segredo de Fátima

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 461/2000)

Em síntese: A 26 de junho pp. [2000], foi finalmente revelado o terceiro segredo de Fátima, que muito pavor despertava quando guardado na incógnita. Verifica-se que é uma visão de conjunto do século XX, século de mártires, vítimas do nacional-socialismo, do comunismo, da maçonaria… Contém um caloroso apelo à penitência ou à conversão. A Providência Divina acompanha os acontecimentos. No fim a mensagem de Fátima promete a vitória do Coração Imaculado de Maria.

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A 13 de maio de 2000 em Fátima foi parcialmente revelado o terceiro segredo de Fátima, por ocasião da Beatificação dos pequenos pastores Francisco e Jacinta. A 26 de junho pp. a Congregação para a Doutrina da Fé, a pedido do Santo Padre, publicou um fascículo portador de toda a documentação relativa ao terceiro segredo. Entre outras coisas, apresenta o fac-símile dos manuscritos em que Lúcia propõe o teor dos três segredos, fac-símile acompanhado de um impresso correspondente. Segue-se a interpretação do terceiro segredo elaborada pelo Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da mencionada Congregação. Diversas considerações teológicas e notícias históricas perfazem a íntegra do fascículo, que é precioso, pois comunica um caráter de seriedade a toda uma temática que foi levada para o campo da fantasia gratuita e do devaneio.

Não podendo transmitir (por falta de espaço) todo o conteúdo desse escrito, apresentaremos, a seguir, o teor dos três segredos e a interpretação dada ao terceiro pelo Cardeal Joseph Ratzinger.

Preliminarmente convém notar que o assunto não constitui artigo de fé. Está a critério de cada fiel católico avaliar a credibilidade dos fatos e dar-lhes ou não o seu assentimento. – Não se pode negar, porém, que, feita esta ressalva, a Igreja oficialmente tem atribuído certo peso à mensagem de Fátima não tanto por causa das suas figuras e seus pormenores, mas porque, em última análise, é o eco fiel e concreto do Evangelho, que sempre incitou os homens à penitência (conversão) e à oração. Podemos dizer, desde já, que são estes os dois traços característicos da mensagem de Fátima: conversão e oração.

1. O Teor dos três Segredos

Aos 31 de agosto de 1944, Lúcia escrevia a sua “Terceira Memória” destinada ao Sr. Bispo de Leiria-Fátima, na qual se lê o seguinte:[1]

“O que é o segredo?

Parece-me que o posso dizer, pois que do Céu tenho já a licença. Os representantes de Deus na terra, têm-me autorizado a isso várias vezes, e em várias cartas, uma das quais, julgo que conserva V. Excia Revma, do Senhor Padre José Bernardo Gonçalves, na em que me manda escrever ao Santo Padre. Um dos pontos que me indica é a revelação do segredo. Algo disse, mas para não alongar mais esse escrito que devia ser breve, limitei-me ao indispensável, deixando a Deus a oportunidade d’um momento mais favorável.

Expus já no segredo escrito a dúvida que de 13 de Junho a 13 de Julho me atormentou e que n’essa aparição tudo se desvaneceu.

Bem o segundo consta de três coisas distintas, duas das quais vou revelar.

A primeira foi pois a vista do inferno!

Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia estar debaixo da terra. Mergulhados em esse fogo os demônios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras, ou bronzeadas com forma humana, que flutuavam no incêndio levadas pelas chamas que delas mesmas saiam, juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faulhas em os grandes incêndios sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demônios distinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes e negros. Esta vista foi um momento, e graças à nossa boa Mãe do Céu; que antes nos tinha prevenido com a promessa de nos levar para o Céu (na primeira aparição) se assim não fosse, creio que teríamos morrido de susto e pavor.

Em seguida, levantamos os olhos para Nossa Senhora que nos disse com bondade e tristeza:

– Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores, para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção a meu Imaculado Coração. Se fizerem o que eu disser salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar, mas se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virdes uma noite, alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai a punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia a meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz, se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja, os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz”.

Aos 03 de janeiro de 1944 escreveu Ir. Lúcia o teor do terceiro segredo.

«J.M.J.

A terceira parte do segredo revelado a 13 de Julho de 1917 na Cova da Iria-Fátima.

Escrevo em ato de obediência a Vós Deus meu, que mo mandais por meio de sua Excia Revma o Senhor Bispo de Leiria e da Vossa e minha Santíssima Mãe.

Depois das duas partes que já expus, vimos ao lado esquerdo de Nossa Senhora um pouco mais alto um Anjo com uma espada de fogo em a mão esquerda; ao cintilar, despedia chamas que parecia iam incendiar o mundo; mas apagavam-se com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora ao seu encontro: O Anjo apontando com a mão direita para a terra, com voz forte disse: Penitência, Penitência, Penitência! E vimos n’uma luz imensa que é Deus: ‘algo semelhante a como se vêem as pessoas n’um espelho quando lhe passam por diante’ um Bispo vestido de Branco ‘tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre’. Vários outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz de troncos toscos como se fôra de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trêmulo com andar vacilante, acabrunhado de dor e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de joelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns trás outros os Bispos Sacerdotes, religiosos e religiosas e varias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de varias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois Anjos cada um com um regador de cristal em a mão, n’êles recolhiam o sangue dos Mártires e com ele regavam as almas que se aproximavam de Deus – Tuy-3-1 -1944».

Para colher dados que servissem à interpretação do terceiro segredo (simbolista como é), o Santo Padre enviou ao Carmelo de Coimbra Monsenhor Tarcisio Bertone, Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, que entrevistou a Irmã Lúcia sobre o significado do segredo. Eis o relato desse colóquio:

2. A Visita do Enviado Papal à Ir. Lúcia

«O encontro da Irmã Lúcia com Sua Excia Revma D. Tarcisio Bertone, Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, por encargo recebido do Santo Padre, e Sua Excia Revma D. Serafim de Sousa Ferreira e Silva, Bispo de Leiria-Fátima, teve lugar a 27 de Abril passado (uma quinta-feira), no Carmelo de Santa Teresa em Coimbra.

A Irmã Lúcia estava lúcida e calma, dizendo-se muito feliz com a ida do Santo Padre a Fátima para a Beatificação de Francisco e Jacinta há muito desejada por ela.

O Bispo de Leiria-Fátima leu a carta autógrafa do Santo Padre, que explicava os motivos da visita. A Irmã Lúcia disse sentir-se muito honrada, e releu pessoalmente a carta comprazendo-se por vê-la nas suas próprias mãos. Declarou-se disposta a responder francamente a todas as perguntas.

Então, o Senhor D. Tarcisio Bertone apresenta-lhe dois envelopes um exterior que tinha dentro outro com a carta onde estava a terceira parte do ‘segredo’ de Fátima. Tocando esta segunda com os dedos, logo exclamou: ‘É a minha carta’, e, depois de a ler, acrescentou: ‘É a minha letra’.

Com o auxílio do Bispo de Leiria-Fátima, foi lido e interpretado o texto original, que é em língua portuguesa. A Irmã Lúcia concorda com a interpretação segundo a qual a terceira parte do ‘segredo’ consiste numa visão profética, comparável às da história sagrada. Ela reafirma a sua convicção de que a visão de Fátima se refere sobretudo à luta do comunismo ateu contra a Igreja e os cristãos, e descreve o imane sofrimento das vítimas da fé no século XX.

À pergunta: ‘A personagem principal da visão é o Papa?’, a Irmã Lúcia responde imediatamente que sim e recorda como os três pastorinhos sentiam muita pena pelo sofrimento do Papa e Jacinta repetia: ‘Coitadinho do Santo Padre. Tenho muita pena dos pecadores!’ A Irmã Lúcia continua: ‘Não sabíamos o nome do Papa; Nossa Senhora não nos disse o nome do Papa. Não sabíamos se era Bento XV, Pio XII, Paulo VI ou João Paulo II, mas que era o Papa que sofria e isso fazia-nos sofrer a nós também’.

Quanto à passagem relativa ao Bispo vestido de branco, isto é, ao Santo Padre – como logo perceberam os pastorinhos durante a ‘visão’ – que é ferido de morte e cai por terra, a irmã Lúcia concorda plenamente com a afirmação do Papa: ‘Foi uma mão materna que guiou a trajetória da bala e o Santo Padre agonizante deteve-se no limiar da morte’ (João Paulo II, Meditação com os Bispos Italianos, a partir da Policlínica Gemelli, 13 de Maio de 1994).

Uma vez que a Irmã Lúcia, antes de entregar ao Bispo de Leiria-Fátima de então o envelope selado com a terceira parte do ‘segredo’, tinha escrito no envelope exterior que podia ser aberto somente depois de 1960 pelo Patriarca de Lisboa ou pelo Bispo de Leiria, o Senhor D. Bertone pergunta-lhe: ‘Por que o limite de 1960? Foi Nossa Senhora que indicou aquela data?’. Resposta da Irmã Lúcia: ‘Não foi Nossa Senhora; fui eu que meti a data de 1960 porque, segundo intuição minha, antes de 1960 não se perceberia, compreender-se-ia somente depois. Agora pode-se compreender melhor. Eu escrevi o que vi; não compete a mim a interpretação, mas ao Papa’.

Por último, alude-se ao manuscrito, não publicado, que a Irmã Lúcia preparou para dar resposta a tantas cartas de devotos e peregrinos de Nossa Senhora. A obra intitula-se ‘Os apelos da Mensagem de Fátima’, e contém pensamentos e reflexões que exprimem, em chave catequética e parenética, os seus sentimentos e espiritualidade cândida e simples. Perguntou-se-lhe se gostava que fosse publicado, ao que a Irmã Lúcia respondeu: ‘Se o Santo Padre estiver de acordo, eu fico contente; caso contrário, obedeço àquilo que decidir o Santo Padre’. A Irmã Lúcia deseja sujeitar o texto à aprovação da Autoridade Eclesiástica, esperando que o seu escrito possa contribuir para guiar os homens e mulheres de boa vontade no caminho que conduz a Deus, meta última de todo o anseio humano.

O colóquio termina com uma troca de terços: à Irmã Lúcia foi dado o terço oferecido pelo Santo Padre, e ela, por sua vez, entrega alguns terços confeccionados pessoalmente por ela.

A Bênção, concedida em nome do Santo Padre, concluiu o encontro».

O Santo Padre João Paulo II pediu à Congregação para a Doutrina da Fé que procurasse interpretar o terceiro segredo e seu significado. A tal tarefa aplicou-se o Cardeal Joseph Ratzinger, que, em sua sabedoria de profundo teólogo, elaborou o seguinte texto:

3. Uma tentativa de interpretação do segredo de Fátima

«A primeira e a segunda partes do ‘segredo’ de Fátima foram já discutidas tão amplamente por específicas publicações, que não necessitam de ser ilustradas novamente aqui. Queria apenas chamar brevemente a atenção para o ponto mais significativo. Os pastorinhos experimentaram, durante um instante terrível, uma visão do inferno. Viram a queda das ‘almas dos pobres pecadores’. Em seguida, foi-lhes dito o motivo pelo qual tiveram de passar por esse instante: para ‘salvá-las’ – para mostrar um caminho de salvação. Isto faz-nos recordar uma frase da primeira Carta de Pedro que diz: ‘Estais certos de obter, como prêmio da vossa fé, a salvação das almas’ (1, 9). Como caminho para se chegar a tal objetivo, é indicada de modo surpreendente para pessoas originárias do ambiente cultural anglo-saxônico e germânico – a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Para compreender isto, deveria bastar uma breve explicação. O termo ‘coração’, na linguagem da Bíblia, significa o centro da existência humana, uma confluência da razão, vontade, temperamento e sensibilidade, onde a pessoa encontra a sua unidade e orientação interior. O ‘coração imaculado’ é, segundo o evangelho de Mateus (5, 8), um coração que a partir de Deus chegou a uma perfeita unidade interior e, conseqüentemente, ‘vê a Deus’. Portando, ‘devoção’ ao Imaculado Coração de Maria é aproximar-se desta atitude do coração na qual o fiat- ‘seja feita a vossa vontade’ – se torna o centro conformador de toda a existência. Se porventura alguém objetasse que não se deve interpor um ser humano entre nós e Cristo, lembre-se de que Paulo não tem medo de dizer às suas comunidades: ‘Imitai-me’ (cf. 1 Cor 4,16; Fil 3, 17; 1Tes 1,6; 2Tes 3,7.9). No Apóstolo, elas podem verificar concretamente o que significa seguir Cristo. Mas, com quem poderemos nós aprender sempre melhor do que com a Mãe do Senhor?

Chegamos assim finalmente à terceira parte do ‘segredo’ de Fátima, publicado aqui pela primeira vez integralmente. Como resulta da documentação anterior, a interpretação dada pelo Cardeal Sodano, no seu texto do dia 13 de Maio, tinha antes sido apresentada pessoalmente à Irmã Lúcia. A tal propósito, ela começou por observar que lhe foi dada a visão, mas não a sua interpretação. A interpretação, dizia, não compete ao vidente, mas à Igreja. No entanto, depois da leitura do texto, a Irmã Lúcia disse que tal interpretação corresponde àquilo que ela mesma tinha sentido e que, pela sua parte, reconhecia essa interpretação como correta. Sendo assim, limitar-nos-emos, naquilo que vem a seguir, a dar de forma profunda um fundamento à referida interpretação, partindo dos critérios anteriormente desenvolvidos.

Do mesmo modo que tínhamos identificado, como palavra-chave da primeira e segunda parte do ‘segredo’, a frase ‘salvar as almas’, assim agora a palavra-chave desta parte do ‘segredo’ é o tríplice grito: ‘Penitência, Penitência, Penitência!’ Volta-nos ao pensamento o início do Evangelho: ‘Paenitemini et credite evangelio‘ (Mc 1,15). Perceber os sinais do tempo significa compreender a urgência da penitência, da conversão, da fé. Tal é a resposta justa a uma época histórica caracterizada por grandes perigos, que serão delineados nas sucessivas imagens. Deixo aqui uma recordação pessoal: num colóquio que a Irmã Lúcia teve comigo, ela disse-me que lhe parecia cada vez mais claramente que o objetivo de todas as aparições era fazer crescer sempre mais na fé, na esperança e na caridade; tudo o mais pretendia apenas levar a isso.

Examinemos agora mais de perto as diversas imagens. O anjo com a espada de fogo à esquerda da Mãe de Deus lembra imagens análogas do Apocalipse; ele representa a ameaça do juízo que pende sobre o mundo. A possibilidade de que este acabe reduzido a cinzas num mar de chamas, hoje já não aparece de forma alguma como pura fantasia; o próprio homem preparou, com suas invenções, a espada de fogo. Em seguida, a visão mostra a força que se contrapõe ao poder da destruição; o brilho da Mãe de Deus e, de algum modo proveniente do mesmo, o apelo à penitência. Deste modo, é sublinhada a importância da liberdade do homem; o futuro não está de forma alguma determinado imutavelmente, e a imagem vista pelos pastorinhos não é, absolutamente, um filme antecipado do futuro, do qual já nada se poderia mudar. Na realidade, toda a visão acontece só para chamar em campo a liberdade e orientá-la numa direção positiva. O sentido da visão não é, portanto, o de mostrar um filme sobre o futuro, já fixo irremediavelmente; mas exatamente o contrário; o seu sentido é mobilizar as forças da mudança em bem. Por isso, há que considerar completamente extraviadas aquelas explicações fatalistas do ‘segredo’ que dizem, por exemplo, que o autor do atentado de 13 de Maio de 1981 teria sido, em última análise, um instrumento do plano divino predisposto pela Providência e, por conseguinte, não poderia ter agido livremente, ou outras idéias semelhantes que por aí andam. A visão fala sobretudo de perigos e do caminho para salvar-se deles.

As frases seguintes do texto mostram uma vez mais e de forma muito clara o caráter simbólico da visão: Deus permanece o incomensurável e a luz que está para além de qualquer visão nossa. As pessoas humanas são vistas como que num espelho. Devemos ter continuamente presente esta limitação inerente à visão, cujos confins estão aqui visivelmente indicados. O futuro é visto apenas ‘como que num espelho, de maneira confusa’ (cf. 1 Cor 13,12). Consideremos agora as diversas imagens que se sucedem no texto do ‘segredo’. O lugar da ação é descrito com três símbolos: uma montanha íngreme, uma grande cidade meia em ruínas e finalmente uma grande cruz de troncos toscos. A montanha e a cidade simbolizam o lugar da história humana; a história como árdua subida para o alto, a história como lugar da criatividade e convivência humana e simultaneamente de destruições pelas quais o homem aniquila a obra do seu próprio trabalho. A cidade pode ser lugar de comunhão e progresso, mas também lugar do perigo e da ameaça mais extrema. No cimo da montanha, está a cruz, meta e ponto de orientação da história. Na cruz, a destruição é transformada em salvação; ergue-se como sinal da miséria da história e como promessa para a mesma.

Aparecem lá, depois, pessoas humanas: o Bispo vestido de branco (‘tivemos o pressentimento que era o Santo Padre’), outros bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas e, finalmente, homens e mulheres de todas as classes e posições sociais. O Papa parece caminhar à frente dos outros, tremendo e sofrendo por todos os horrores que o circundam. E não são apenas as casas da cidade que jazem meio em ruínas; o seu caminho é ladeado pelos cadáveres dos mortos. Deste modo, o caminho da Igreja é descrito como uma Via Sacra, como um caminho num tempo de violência, destruições e perseguições. Nesta imagem, pode-se ver representada a história dum século inteiro. Tal como os lugares da terra aparecem sinteticamente representados nas duas imagens da montanha e da cidade e estão orientados para a cruz, assim também os tempos são apresentados de forma contraída: na visão, podemos reconhecer o século vinte como século dos mártires, como século dos sofrimentos e perseguições à Igreja, como o século das guerras mundiais e de muitas guerras locais que ocuparam toda a segunda metade do mesmo, tendo feito experimentar novas formas de crueldade. No ‘espelho’ desta visão, vemos passar as testemunhas da fé de decênios. A este respeito, é oportuno mencionar uma frase da carta que a Irmã Lúcia escreveu ao Santo Padre no dia 12 de Maio de 1982: ‘A terceira parte do ‘segredo’ refere-se às palavras de Nossa Senhora: ‘Se não, [a Rússia] espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas’.

Na Via Sacra deste século, tem um papel especial a figura do Papa. Na árdua subida da montanha, podemos sem dúvida ver figurados conjuntamente diversos Papas, começando de Pio X até ao Papa atual, que partilharam os sofrimentos deste século e se esforçaram por avançar, no meio deles, pelo caminho que leva à cruz. Na visão, também o Papa é morto na estrada dos mártires. Não era razoável que o Santo Padre, quando, depois do atentado de 13 de Maio de 1981, mandou trazer o texto da terceira parte do ‘segredo’, tivesse lá identificado o seu próprio destino? Esteve muito perto da fronteira da morte, tendo ele mesmo explicado a sua salvação com as palavras seguintes: ‘Foi uma mão materna que guiou a trajetória da bala e o Papa agonizante deteve-se no limiar da morte’ (13 de Maio de 1994). O fato de ter havido lá uma ‘mão materna’ que desviou a bala mortífera demonstra uma vez mais que não existe um destino imutável, que a fé e a oração são forças que podem influir na história e que, em última análise, a oração é mais forte que as balas, a fé mais poderosa que os exércitos.

A conclusão do ‘segredo’ lembra imagens, que Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé. É uma visão consoladora, que quer tornar permeável à força santificante de Deus uma história de sangue e de lágrimas. Anjos recolhem, sob os braços da cruz, o sangue dos mártires e com ele regam as almas que se aproximam de Deus. O sangue de Cristo e o sangue dos mártires são vistos aqui juntos: o sangue dos mártires escorre dos braços da cruz. O seu martírio realiza-se solidariamente com a paixão de Cristo, identificando-se com ela. Eles completam em favor do corpo de Cristo o que ainda falta aos seus sofrimentos (cf. Cl 1, 24). A sua própria vida tornou-se eucaristia, inserindo-se no mistério do grão de trigo que morre e se torna fecundo. O sangue dos mártires é semente de cristãos, disse Tertuliano. Tal como nasceu a Igreja da morte de Cristo, do seu lado aberto, assim também a morte das testemunhas é fecunda para a vida futura da Igreja. Deste modo, a visão da terceira parte do ‘segredo’, tão angustiante ao início, termina numa imagem de esperança: nenhum sofrimento é vão, e precisamente uma Igreja sofredora, uma Igreja dos mártires torna-se sinal indicador para o homem na sua busca de Deus. Não se trata apenas de ver os que sofrem acolhidos na mão amorosa de Deus como Lázaro, que encontrou a grande consolação e misteriosamente representa Cristo, que por nós Se quis fazer o pobre Lázaro; mas há algo mais: do sofrimento das testemunhas deriva uma força de purificação e renovamento, porque é a atualização do próprio sofrimento de Cristo e transmite ao tempo presente a sua eficácia salvífica.

Chegamos assim a uma última pergunta: O que é que significa no seu conjunto (nas suas três partes) o ‘segredo’ de Fátima? O que é que nos diz a nós? Em primeiro lugar, devemos supor, como afirma o Cardeal Sodano, que ‘os acontecimentos a que faz referência a terceira parte do ‘segredo’ de Fátima parecem pertencer já ao passado’. Os diversos acontecimentos, na medida em que lá são representados, pertencem já ao passado. Quem estava à espera de impressionantes revelações apocalípticas sobre o fim do mundo ou sobre o futuro desenrolar da história, deve ficar desiludido. Fátima não oferece tais satisfações à nossa curiosidade, como, aliás, a fé cristã em geral, que não pretende nem pode ser alimento para a nossa curiosidade. O que permanece – dissemo-lo logo ao início das nossas reflexões sobre o texto do ‘segredo’ – é a exortação à oração como caminho para a ‘salvação das almas’, e no mesmo sentido o apelo à penitência e à conversão.

Queria, no fim, tomar uma vez mais outra palavra-chave do ‘segredo’ que justamente se tornou famosa: ‘O meu Imaculado Coração triunfará’. Que significa isto? Significa que este Coração aberto a Deus, purificado pela contemplação de Deus, é mais forte que as pistolas ou outras armas de qualquer espécie. O fiat de Maria, a palavra do seu Coração, mudou a história do mundo, porque introduziu neste mundo o Salvador graças àquele ‘Sim’, Deus pôde fazer-Se homem no nosso meio e tal permanece para sempre. Que o maligno tem poder neste mundo, vemo-lo e experimentamo-lo continuamente; tem poder, porque a nossa liberdade se deixa continuamente desviar de Deus. Mas, desde que Deus passou a ter um coração humano e deste modo orientou a liberdade do homem para o bem, para Deus, a liberdade para o mal deixou de ter a última palavra. O que vale desde então, está expresso nesta frase: ‘No mundo tereis aflições, mas tende confiança! Eu venci o mundo’ (Jo 16, 33). A mensagem de Fátima convida a confiar nesta promessa.

Joseph Card. Ratzinger

Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé»

Como se vê, o segredo de Fátima, com suas três partes, nada tem de previsões sobre o fim do mundo ou catástrofes e flagelos. É, antes, uma exortação para o tempo presente, que chama os cristãos à conversão ou a uma vivência ainda mais coerente com o Evangelho, acompanhada de oração, especialmente a do Santo Rosário. – É para desejar que tal mensagem cale fundo nos corações de quantos dela venham a ter conhecimento, disseminando paz e confiança na Infinita Misericórdia de Deus.

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Nota:

[1] Será respeitada a grafia do texto autógrafo da ir. Lúcia, ainda que sujeita a pequenas falhas de linguagem.