Pecado: o pecado

(Revista Pergunte e responderemos, PR 418/1997)

por Frei Antônio Moser

 

Em síntese: O livro de Frei Antônio Moser sobre o pecado apresenta interessantes capítulos referentes à problemática do pecado hoje, à sua fundamentação nos escritos do Novo Testamento, à teologia dos Padres da Igreja. Em dois pontos, porém, merece sérias reservas: 1) no tocante ao pecado original, tema que o autor aborda de maneira insuficiente, re­ceando a clareza de certas afirmações, contidas nos documentos oficiais da Igreja; 2) no tocante ao pecado sócio-estrutural, área em que Frei Moser parece ceder ao dilema “ou oprimido ou opressor”, dilema professado por ideologias atualmente ultrapassadas. – O livro não é manual introdutório à temática do pecado, mas supõe preparo teológico da parte do leitor.

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Frei Antônio Moser é conhecido teólogo franciscano, professor de Teologia Moral e autor de vários livros. O estudo sobre o pecado que apre­sentou recentemente ao público[1], merece atenção, pois propõe afirma­ções que fazem pensar. – Vamos, a seguir, tecer-lhe algumas considera­ções.

1. O CONTEÚDO DA OBRA

A obra compreende dez capítulos, que começam expondo a proble­mática do pecado em nossos dias: é “desacreditado”, mas deve ser aprofundado. A seguir, o autor estuda o pecado original, a doutrina do Novo Testamento e da Tradição patrística e, finalmente, se detém longamente sobre o enfoque sócio-estrutural que ocupa dois capítulos do livro. No capítulo X o autor apresenta “grandes marcos estabelecidos pelo Magistério atual”, tendo em vista principalmente o pecado sócio-estrutu­ral. A impressão que o leitor colhe ao percorrer as páginas de tal livro, é a de que o autor usa uma linguagem erudita, está munido de bom conheci­mento bibliográfico, procura levar em conta o Magistério da Igreja, mas… não tem a coragem de dizer as coisas com clareza e nitidez; expõe sen­tenças diversas, manifesta peculiar interesse pelo pecado dito “social”… e deixa o leitor um tanto desorientado.

Tentaremos exemplificar esta impressão ao analisar, em particular, dois pontos da obra de A. Moser.

2. O PECADO ORIGINAL

O tema é considerado nos capítulos II e III do livro (pp. 45-119).

O autor considera o texto de Gênesis 2-3, que relata a queda dos primeiros pais. Interpreta-os no sentido que Carlos Mesters lhes atribuiu na obra Paraíso Terrestre, Saudade ou Esperança?, que Frei Moser cita explicitamente na nota 31 da pág. 93; na verdade, Frei Mesters julga que o episódio narrado em Gn 2-3 não se refere ao passado ou a uma bonança inicial do gênero humano perdida pela culpa dos primeiros pais, mas pinta a imagem do futuro ideal harmonioso, que atualmente é contraditado por guerras, injustiças e pecados vários; em suma, o paraíso terrestre não seria saudade, mas esperança. Ora Frei Antônio Moser parece endossar esta tese às pp. 93s do seu livro:

“Tudo está pronto para que seja ‘pintado’ o mundo querido por Deus e que deve ser a meta da humanidade: relacionamento harmônico com Deus, superação da morte, relações harmônicas entre homem e mulher, fertilidade da terra, trabalho alegre, convívio harmônico com toda a cria­ção. Os autores do Gênesis procedem assim como um bom arquiteto: pri­meiro preparam a maquete. A partir dela poder-se-á visualizar melhor como será a construção” (pp. 93s).

Confessamos que o texto não é claro: presta-se a mais de uma in­terpretação, principalmente porque recorre a linguagem metafórica (ar­quiteto – maquete). Como dito, parece estar-lhe subjacente a tese de Frei Mesters, citado explicitamente pelo autor à p. 93:

“Pode-se perceber que os autores têm objetivos muito claros:… in­cutir coragem para a transformação necessária, incutir esperança”. A nota 31 cita então C. Mesters, Paraíso Terrestre, Saudade ou Esperança? Vozes, Petrópolis, 10 a. edição, 1985, p. 28s.

Eis, porém, que, páginas adiante, o autor se refere ao Concílio de Trento (1545-1563) e escreve:

“Seja por recolher os dados anteriores, seja pela solenidade de seu empenho, devemos dizer que os decretos de Trento contêm praticamente tudo o que a Igreja oficial ensina e definitivamente mantém sobre esta ques­tão até hoje” (p.107).

Ora o Concílio de Trento declarou explicitamente:

“Se alguém não confessar que Adão, o primeiro homem, depois de transgredir o preceito de Deus, no paraíso, perdeu imediatamente a santida­de e a justiça em que havia sido constituído, e que pela sua prevaricação incorreu na ira e indignação de Deus e por isto na morte que Deus lhe havia ameaçado e – com a morte – na escravidão e no poder daquele que passou a ter o império da morte (Hb 2,14), a saber, o demônio, e que Adão, pela ofensa, se tornou pior quanto ao corpo e quanto à alma – seja exco­mungado” (Denzinger-Schönmetzer, Enquirídio n° 1511 [788]).

Mais: Frei Moser, pouco adiante, cita o Concílio do Vaticano II, tido como “sóbrio” no assunto;

“Constituído por Deus em estado de justiça, o homem, instigado pelo Maligno, desde o início da história, abusou da própria liberdade. Levantou-se contra Deus, desejando atingir seu fim fora dele” (Gaudium et Spes 13).

Às pp. 110s, Frei Moser refere-se ao Catecismo da Igreja Católica; julga que este “só diz o necessário”, como se os autores do Catecismo estivessem hesitantes a respeito da doutrina do pecado original. Ora nos §§ 386-389 o texto do Catecismo ensina não somente a queda dos pri­meiros pais, mas também a elevação prévia dos mesmos ao estado de justiça original, que compreendia os dons paradisíacos, dos quais o pri­meiro era a graça santificante, como participação da vida divina: “Enquanto permanecesse na intimidade divina, o homem não devia nem morrer nem sofrer. A harmonia interior da pessoa humana, a harmonia entre o homem e a mulher e finalmente a harmonia entre o primeiro casal e toda a criação constituíam o estado denominado ‘justiça original’” (n° 376). No § 388 lê­-se: “O pecado original – uma verdade essencial da fé”. E no § 389: “A Igreja, que tem o senso de Cristo, sabe perfeitamente que não se pode atentar contra a revelação do pecado original sem atentar contra o misté­rio de Cristo”.

Donde se vê que, conforme os Concílios e o Catecismo, a narrativa de Gn 2-3 não é apenas uma maquete do futuro, mas supõe um fato pretérito que repercute na história da humanidade até hoje. Esta posição doutrinária envolve uma verdade essencial da fé católica; não pode ser escamoteada sem que seja afetado o próprio patrimônio da fé.

Quanto à autoridade do Catecismo, o Santo Padre João Paulo II a formula nos termos da Constituição Apostólica Fidei Depositum, que apre­senta aos fiéis o Catecismo:

“Este Catecismo é dado aos Pastores da Igreja e aos fiéis, a fim de que sirva como texto de referência seguro e autêntico para o ensino da doutrina católica e, de modo muito particular, para a elaboração dos cate­cismos locais. É também oferecido a todos os fiéis que desejam aprofundar o conhecimento das riquezas inexauríveis da salvação (cf. Jo 8,32)… Por fim, é oferecido a todo homem que nos pergunte qual a razão da nossa esperança (cf. 1 Pd 3,15) e queira conhecer aquilo em que a Igreja Católi­ca crê”.

De resto, a questão do pecado original não é do alcance da Filoso­fia nem da arqueologia nem da historiografia, mas é estritamente um tema de fé, que se elucida à luz dos documentos da fé, aos quais correspondem de certo modo os dados da história antiga e atual da humanidade convul­sionada pela desordem moral.

Após referir-se de modo sumário e incompleto ao Catecismo da Igreja Católica, o autor Frei Moser expõe cinco “aspectos ressaltados pela Teologia atual”, seriam cinco teorias de teólogos propostas ao leitor sem alguma avaliação (como equivalentes entre si?). Antes de as propor, afir­ma Frei Moser que “nenhum teólogo sério, seja católico, seja protestante, vai ter a pretensão de negar aquilo que a Escritura e a Tradição da Igreja não cessam de recordar: ‘A presença e a universalidade do pecado na história do homem’. Muito menos alguém ousaria hoje negar a necessida­de de salvação em Cristo”(p. 112). Ora estes dados são muito pouco sig­nificativos como doutrina de fé; embora Moser transcreva do Catecismo (§ 401) a tese da ‘presença e da universalidade do pecado’, ele não pode esquecer que o Catecismo propõe muito mais elementos como perten­centes à doutrina da fé. Dito isto, seguem-se as cinco teorias existentes na bibliografia teológica dos últimos sessenta anos: a de inspiração de Teilhard de Chardin (pp. 114s), a de Piet Schoonenberg (pp. 115s), a de Flick-Alszeghy (pp. 116s), a que destaca a mensagem central do Cristia­nismo, que é de graça a salvação e… também a de “certo número de bons teólogos (Smulders, Rahner, Grelot, Schmaus…), segundo os quais “nem uma queda inicial, dado de fé, nem a historicidade de Adão podem ser descartadas. Adão seria uma personalidade coletiva, o primeiro dos ‘Pa­triarcas’ ou então um indivíduo, mas com função coletiva: transmitir a to­dos os descendentes a humanidade no estado que hoje conhecemos, através do princípio da solidariedade; nos planos divinos a humanidade deveria estar sempre revestida da graça; deveria conhecer o equilíbrio em si mesma, como conseqüência da comunhão com Deus; deveria co­nhecer o equilíbrio com toda a criação. Mas o pecado quebrou a unidade. Daí a conclusão de que o pecado original em nós comporta uma dimen­são ontológica. É algo de constitutivo do humano na sua presente condi­ção. Daí também o seu impacto sobre o pecado atual”(p. 113).

Afinal de contas, esta tese (que, aliás, Moser coloca à frente das quatro outras, sem, porém, a qualificar) é a única que corresponde ao Magistério da Igreja; todavia aparece justaposta, sem endosso algum, a teorias não condizentes com a doutrina da fé. Frei Moser, que tanto cita o Magistério da Igreja (ver cap. X, pp. 317-339), não o parece acatar como desejável.

Passemos a outro ponto importante do livro.

3. O PECADO SÓCIO-ESTRUTURAL

Ao abordar a temática das injustiças sociais (fato inegável), Frei Moser cita e endossa uma passagem do Pe. João Batista Libânio em seu livro “Pecado e Opção Fundamental”, p. 101. Eis o que se lê à p. 258 da obra de Moser:

“As omissões pessoais e de grupos, de maior ou menor influência, é que perpetuam condições pecaminosas.

Sendo assim, `não podemos viver como se os pecados históricos, os pecados das guerras, das torturas, da exploração calculada do pobre, da opressão do povo em relação ao povo, de classe em relação a classe, não nos dissessem respeito. São nossos pecados. Participamos neles, seja pelo nosso silêncio, nossa inércia, nosso conformismo, nosso con­sentimento tácito, nossa aceitação fatalista, como pela nossa cooperação direta, reforçando a situação com decisões pessoais’.[2] Ignorar é uma maneira de assumir”.

Estas afirmações lembram o dilema proposto por teólogos da liber­tação: quem não é oprimido, é opressor. Grande pecado seria não colabo­rar ativamente na reforma da sociedade. Ora a propósito convém citar palavras de D. Valfredo Tepe, Bispo Emérito de Ilhéus (BA), que escreve o Prefácio do livro de Moser:

“No plano político, eu posso não estar a favor de um regime ou siste­ma, sem ser obrigado à alternativa: estar contra ele. É um argumento cap­cioso do arsenal ideológico de uma análise de ruptura afirmar que aquele que não combate um regime, que não luta para derrubá-lo, estaria favore­cendo a ele ou estaria conivente com ele… Só onde se vê o demônio no sistema contrário, há esta alternativa radical. Quanto se relativiza a política partidária, pode-se ver que há o bem e o mal tanto na situação como na oposição. Vê-se que há possibilidade de conviver com muitos sistemas e tentar nesta convivência fazer o bem. Denunciando o que está errado, mas também apoiando o que é proveitoso para o povo. Muitas vezes um cristão conscientizado pode fazer um ‘bem político’ bem grande quando cumpre com fidelidade e com amor ao povo sofredor suas funções, talvez subalter­nas, numa repartição burocrática de qualquer regime”. (Estamos salvos. O cristão diante das ideologias, pp. 128s).

A relativização dos modelos sócio-político-econômicos é ilustrada outrossim pelo próprio testemunho da S. Escritura:

“O povo (de Israel), que foi libertado da opressão do Egito, por sua vez dominava e até exterminava cruelmente populações nativas. E era novamente explorado e escorchado pelos seus próprios reis, o que levou à divisão em dois reinos e mais tarde a um sem número de revoluções ‘palacianas’: todas em nome da libertação e luta contra a corrupção” (ibd. p. 131).

Estas proposições não devem dissuadir o cristão de se empenhar por um mundo histórico mais justo e fraterno. Ao contrário, a consciência de que é dentro das estruturas da sociedade contemporânea que se ini­cia o Reino, leva o cristão a trabalhar com pleno afinco pela remoção de todos os males da história, como o pedem os documentos oficiais da Igre­ja (cf. Constituição Gaudium et Spes do Concílio do Vaticano II; Docu­mento de Puebla). Todavia este esforço há de ser realista e iluminado pela fé:

“É ingenuidade progressista, evolucionista ou revolucionária pen­sar que as mudanças de estruturas trarão o paraíso à terra. O homem pratica o mal não só pela influência ou pelo contágio das estruturas injus­tas, mas por ‘geração espontânea’. Cada homem é ‘Adão’. Em cada um pode recomeçar a história da queda. Até o fim do mundo trigo e joio crecerão juntos… Até o fim dos tempos, o mal não será definitivamente julga­do e banido”(ibd. p. 71).

Não nos deteremos em analisar outros traços do livro de Frei Antô­nio Moser; o que foi dito até aqui revela que há restrições a fazer a tal obra: não se integra plenamente na doutrina da fé e se ressente ainda de teses da teologia da libertação (que perdeu um tanto da sua voga, mas deixou restos de si ainda presentes e nocivos em setores da Igreja).

Ao dizer isto, não podemos deixar de reconhecer o que haja de válido no livro de Antônio Moser: são interessantes os capítulos V e VI, que tratam respectivamente do pecado no Novo Testamento e na Teolo­gia dos Padres da Igreja; rico de informações é o capítulo II, que aborda o problema do pecado na Filosofia grega e na moderna… Mas mesmo nes­tes capítulos o livro não se destina a quem estuda a temática pela primei­ra vez; supõe sempre um certo preparo teológico para que o leitor possa acompanhar a linguagem e as posições de Frei Antônio Moser.

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NOTAS:

[1] O Pecado. Do Descrédito ao Aprofundamento, por Frei Antônio Moser – Ed.

Vo­zes, Petrópolis, 1996 (2a edição), 135 x 210mm, 372 pp.

[2] LIBANIO, J.B.. Pecado e Opção Fundamental. Vo­zes, Petrópolis 1975, p. 101.

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